A decisão da 2.ª Turma do Supremo Tribunal Federal (STF), que na terça (27) anulou pela primeira vez uma sentença da operação Lava Jato, pode levar à anulação de pelo menos um processo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
No julgamento de terça – quando anularam sentença contra o ex-presidente da Petrobras Aldemir Bendine –, os ministros entenderam, por 3 votos a 1, que quando há delatores no processo, eles devem apresentar alegações finais antes dos demais réus acusados pelo Ministério Público. O entendimento do STF não está previsto no Código de Processo Penal, nem na lei de 2013 que regulamenta as delações premiadas.
Em pelo menos um processo da Lava Jato, a defesa de Lula pediu expressamente a mesma coisa e, agora, pode tentar reverter a condenação do ex-presidente.
Trata-se do processo em que Lula foi condenado pela juíza Gabriela Hardt – que substituiu o ex-juiz federal Sergio Moro – a 12 anos e 11 meses de prisão por corrupção e lavagem de dinheiro no caso do sítio em Atibaia (SP). O processo já está tramitando em segunda instância, mas ainda não foi julgado pelo Tribunal Regional Federal da 4.ª Região (TRF-4). Se a sentença for anulada, o processo volta para a fase de alegações finais, em primeira instância.
No dia 19 de novembro de 2018, a defesa de Lula protocolou um documento pedindo para apresentar alegações finais no processo “após a apresentação de réus colaboradores e réus que estão em tratativas para celebrar acordos de colaboração”. O pedido foi negado pela juíza Gabriela Hardt no dia 21 de novembro.
“O pedido para que a concessão de prazo para alegações finais seja aberto para a defesa apenas após a apresentação de alegações finais pela defesa dos acusados colaboradores e de réus que intentam celebrar acordo não tem qualquer base legal, motivo pelo qual resta indeferido”, argumentou a magistrada. Ela ainda argumentou que “a Defesa do acusado colaborador não é Acusação. Não cabe fazer distinção entre acusados colaboradores e acusados não-colaboradores, outorgando vantagem processual a uns em detrimento de outros”.
O que a 2.ª Turma do STF decidiu
Os ministros do STF anularam a condenação de 11 anos de prisão imposta pelo ex-juiz Sergio Moro ao ex-presidente da Petrobras, Aldemir Bendine. Ele havia pedido para entregar alegações finais depois dos delatores, mas o processo foi negado. O caso de Bendine já havia sido confirmado em segunda instância. Agora, volta a tramitar em primeira instância e terá de fazer todo o caminho novamente até o TRF-4.
As alegações finais são a última palavra das defesas para tentar convencer o juiz da inocência dos réus. No documento, as defesas rebatem todas as acusações feitas aos clientes.
Atualmente, o juiz abre prazo para alegações finais para o Ministério Público, depois para o assistente de acusação e, por fim, para todas as defesas ao mesmo tempo. O Supremo, no caso de Bendine, entendeu que os delatores devem apresentar o documento antes de se abrir prazo para as demais defesas, para que os réus que não são colaboradores possam rebater acusações dos delatores.
E o caso do tríplex?
O ex-presidente Lula também foi condenado em primeira instância no caso do tríplex no Guarujá. Esta foi a primeira condenação dele na Lava Jato, e já foi confirmada pelo TRF-4 e pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ). Se a sentença em primeira instância for anulada, por qualquer motivo, as demais também serão automaticamente canceladas. Com isso, o petista deverá deixar a prisão em Curitiba, pois ele está preso com base na condenação em segunda instância deste processo, cumprindo pena.
Este caso é mais nebuloso que o de Atibaia, mas, para o advogado especialista em Direito Processual Penal Francisco Monteiro, também haveria possibilidade de anulação da sentença de Moro. No processo, havia dois réus que tentavam firmar acordo de delação premiada – os executivos da OAS Leo Pinheiro e Agenor Franklin Magalhães Medeiros –, mas o acordo deles até hoje não foi homologado pelo STF.
A defesa de Lula argumentou em suas alegações finais que houve cerceamento de defesa, pois foi negado a ela acesso ao procedimento do acordo de colaboração dos executivos da OAS. Os advogados também alegaram ter o direito de defesa cerceado porque não puderam fazer questionamentos a “alguns dos criminosos colaboradores ouvidos como testemunhas”.
O que diz a Lava Jato
Logo após a decisão, a força-tarefa do Ministério Público Federal (MPF) emitiu uma nota à imprensa afirmando ver com “imensa preocupação” a decisão. Os procuradores disseram ter receio de que a decisão cause um efeito dominó em outras sentenças proferidas ao longo dos últimos cinco anos.
Em nota, a força-tarefa da Lava Jato afirmou que o entendimento do Supremo não está previsto no Código de Processo Penal ou na lei que regulamentou as delações premiadas. “Se o entendimento for aplicado nos demais casos da operação Lava Jato, poderá anular praticamente todas as condenações, com a consequente prescrição de vários crimes e libertação de réus presos”, entende a força-tarefa.
José Augusto Vagos, procurador regional da República e integrante da força-tarefa da Lava Jato do Rio do Janeiro, também criticou a nova interpretação do STF. Em entrevista ao O Globo, ele disse que "a decisão vai na contramão do expresso no Código de Processo Penal, e também na jurisprudência do próprio STF, no sentido de que não se reconhece nulidade onde não há prejuízo para a defesa". Segundo Vagos, "julgar contra disposição expressa de lei traz uma insegurança jurídica enorme". A Procuradoria-Geral da República (PGR) analisa recurso à decisão do Supremo sobre o caso.
Risco de efeito dominó
Dois especialistas em direito processual penal ouvidos pela Gazeta do Povo afirmam que não haverá um efeito dominó sobre os processos da Lava Jato. Para eles, o entendimento do STF só será replicado em casos em que as defesas tenham argumentado desde o início que as alegações finais devem ser entregues em momentos diferentes em casos com delatores.
“Por enquanto, o efeito é só para esse caso [do Bendine]. Você não pode chegar direto no STF se isso nunca foi discutido no seu processo”, explica o advogado Francisco Monteiro. “Não consigo vislumbrar como isso traria um efeito dominó, exceto se em todos os casos isso foi arguido”, completa.
“A parte tem que mostrar que teve prejuízo com esse procedimento”, explica o advogado João Rafael Oliveira. “Se a defesa não alegou em nenhum momento e for trazer só agora [esse argumento], provavelmente a Suprema Corte não vai reconhecer essa nulidade”, diz.
Questionada sobre o argumento dos advogados, a força-tarefa sustentou sua interpretação inicial. Segundo os procuradores, os réus podem levar em habeas corpus argumentos novos, e podem protocolar pedidos no TRF-4 que, eventualmente, chegarão ao Supremo, com os mesmos argumentos usados por Bendine.
Para o promotor de Justiça do Rio Grande do Sul, Ronaldo Lara Resende, a decisão do STF não só pode, como vai gerar um efeito cascata nos casos da Lava Jato, caso o Plenário não mude o entendimento. "Não tem como o juiz de primeiro grau agir imaginando como o Supremo vai reagir amanhã, o juiz segue o rito que está no Código de Processo Penal (CPP). O CPP não prevê nada disso e a Lei 13.850/2013, da delação premiada, também não trata disso", afirma o promotor.
Princípio da ampla defesa
Para Monteiro, a decisão do Supremo está fundamentada no princípio da ampla defesa. “Estamos com processos penais que têm agora a figura do delator, a legislação é recente e não terá como prever todas as hipóteses. Então tem que seguir princípios fundamentais do processo penal e da Constituição, dentre os quais a ampla defesa”, explica o advogado. “A ampla defesa é a pessoa ter direito a se defender de tudo aquilo que é acusada”, completa.
Para Oliveira, o delator não pode ser considerado acusado como os demais réus do processo. “Na base [da decisão do STF], tem um princípio constitucional da ampla defesa, o contraditório, que permite como garantia ao acusado falar sempre por último. Quando tem a figura do delator, essa posição do delator não é uma posição de acusado, e também não é a posição de testemunha de acusação, mas ele traz elementos que vão na direção da acusação, para corroborar a acusação, então ele de fato precisa falar antes daqueles que não colaboram”, defende.
Já Resende ressalta que "na lei em nenhum momento é atribuída ao acusado delatado uma posição proeminente em relação ao delatores, a ponto de ele ter esse privilégio de ser ouvido depois dos outros."