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O ministro da Justiça, Flávio Dino, anunciou na manhã de segunda-feira (24), com grande apelo midiático e forte conotação política, a delação premiada feita pelo ex-policial militar Élcio de Queiroz à Polícia Federal (PF) e ao Ministério Público do Rio de Janeiro (MP-RJ), acerca de detalhes do assassinato da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes. Os resultados dessa delação não serviram ainda para identificar os mandantes do crime, mas evidenciaram a contradição de membros e aliados do governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) em relação ao uso da delação premiada como instrumento de investigação, além da disposição do Planalto em seguir explorando politicamente os episódios relacionados.
Na delação anunciada como mérito do governo atual, Queiroz apenas confessa a participação no crime da qual já era acusado e pelo qual vem cumprindo pena provisória desde 2019, e ainda confirma Ronnie Lessa, ex-policial aposentado, como autor dos 13 disparos que mataram Marielle e Gomes. Lessa também está há quatro anos preso pelas mesmas razões. Com base nas informações fornecidas por Élcio de Queiroz, a PF realizou a prisão de Maxwell Simões Corrêa, conhecido como Suel, que já era suspeito de colaborar com o atentado de 14 de março de 2018, mas respondia em liberdade.
Movida por receios de traições e represálias de comparsas, a delação de Queiroz foi firmada sem o consentimento de seu então advogado, Henrique Telles. Ao aceitar fazer a delação sobre as mortes de Marielle e Gomes, o ex-PM obteve benefícios ao confessar a participação no crime. Pelo acordo firmado, além dos quatro anos que está preso, ele deverá cumprir mais oito em penitenciária estadual, totalizando 12 anos de prisão em regime fechado. Outra vantagem obtida é que Queiroz não irá a júri popular, ao contrário de Ronnie Lessa. Além disso, a família dele receberá proteção policial.
Acordo com delator depende de novas provas, diz procurador
De acordo com o procurador do Ministério Público do Paraná (MP-PR) e doutor em Direito de Estado Processual, Rodrigo Chemim, a colaboração premiada é um instituto válido e incentivado em tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário, como a Convenção da ONU de Palermo, contra o crime organizado, e Convenção da ONU de Mérida, contra a corrupção. Ele enfatiza que a Lei 12.850/2013 regula o instrumento usado primordialmente em favor da defesa, uma vez que só ocorre se o investigado ou réu quiser colaborar. “Se a colaboração premiada foi útil para a Operação Lava Jato, também pode ser aplicada ao caso Marielle”, observou.
Chemim destaca a importância de conhecer mais detalhes sobre os termos do acordo para uma avaliação mais aprofundada do caso. No entanto, ele ressalta que qualquer acordo de delação presume que o delator apresente informações que levem à descoberta de novas provas, pois o delator não é, por si só, meio de provas, mas um meio de obtenção de provas. “Sem produzir esse efeito, o acordo perde sua razão de existir, já que sua validade está atrelada à obtenção de provas que corroborem afirmações do colaborador”, observou.
Após a divulgação de que a delação premiada está sendo utilizada na investigação do assassinato da vereadora, o senador e ex-juiz Sergio Moro (União-PR) e o ex-deputado e ex-procurador federal Deltan Dallagnol (Podemos-PR) lembraram que, em outras ocasiões, o PT costumava reprovar esse instrumento quando era empregado pela Lava Jato. Em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo, o ex-juiz da operação afirmou: "A colaboração premiada, apesar de ser demonizada pelo PT, foi fundamental para revelar as irregularidades na Petrobras durante o governo Lula", disse Moro. “A esquerda, os garantistas de ocasião e os prerrogativistas todos festejarão o que até ontem eles criticavam na Lava Jato. Hipócritas”, afirmou Dallagnol no Twitter.
Já a presidente nacional do PT, a deputada Gleisi Hoffmann (PR), rebateu as declarações de Dallagnol e Moro sobre o caso. Gleisi afirmou que as informações obtidas com a delação “corroboram as provas já existentes”, diferente da “'República de Curitiba' que prendia e depois quando não encontrava provas, forçava confissões”.
Especialista aponta exageros na federalização das investigações
Para o coronel Fernando Montenegro, militar da reserva que comandou a ocupação do Complexo do Alemão no Rio de Janeiro em 2010 e especialista em segurança urbana, a federalização do caso Marielle foi um exagero. “A única coisa que a PF fez até agora foi conseguir a delação premiada do Élcio Queiroz, que já estava preso há quatro anos”, disse. Ele também acha curioso ter sido apresentado como principal resultado da delação até agora o anúncio da prisão de alguém que já havia sido preso anteriormente.
Ele considera especialmente exagerada a alegação de incompetência da Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro, quando se sabe que foi a Delegacia de Homicídios (DH) do Rio a responsável por ter prendido há anos tanto Ronnie Lessa, quanto Élcio Queiroz e até mesmo o ex-bombeiro. “A DH do Rio até pediu um sonar da Marinha pra tentar buscar as armas no mar e, também, requereu a prisão da esposa do Lessa, além de ter checado os dois mil carros Cobalt (modelo usado no crime) em todo o estado”, frisou.
Para Montenegro, não se pode descartar que membros do governo federal tentem associar a investigação à figura do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL). Isso porque as investigações federais podem se focar em circunstâncias que levaram Ronnie Lessa a obter uma perna mecânica por intermédio da ajuda do então deputado Bolsonaro, que afirma que pouco o conhecia.
PT tenta limitar o alcance das colaborações de réus desde 2018
Apesar do esforço do governo em destacar os avanços nas investigações do "caso Marielle" por meio dessa delação, a divulgação confirma uma evidente contradição do PT. O partido do presidente Luiz Inácio Lula da Silva vinha tentando impor limites a esse instrumento de investigação nos últimos anos, apesar dos avanços evidentes que ele trouxe. Uma ação proposta pela legenda nesse sentido foi negada pela Advocacia-Geral da União (AGU) no início de 2022, em parecer enviado ao Supremo Tribunal Federal (STF). Curiosamente, os acordos de colaboração premiada estão previstos na Lei 12.850/2013, sancionada pela então presidente Dilma Rousseff (PT).
No passado, quando ainda era deputado federal, o atual secretário de Defesa do Consumidor do Ministério da Justiça, Wadih Damous (PT), apresentou três projetos de lei entre 2016 e 2018 para restringir a delação premiada no Brasil. Após a Operação Lava Jato, líderes petistas criticaram o uso desse instrumento em operações policiais. Damous sugeriu que a delação premiada só seria válida se houvesse a participação do delegado responsável pela operação, do investigado e de seu defensor. Se essa interpretação estivesse em vigor, a delação de Élcio de Queiroz não teria valor jurídico.
No contexto atual, a delação premiada de Queiroz resultou na prisão preventiva de Suel, o proprietário do carro utilizado para esconder as armas que foram encontradas no apartamento de Ronnie Lessa. Queiroz foi acusado de ter ajudado a jogar o armamento no mar e, em 2021, foi condenado a quatro anos de prisão por obstruir as investigações. Segundo a delação, o PM apontou que Suel também ajudou a preparar o crime, incluindo o monitoramento da rotina de Marielle.
Dino vê presença de milicianos no crime como algo indiscutível
A aparente mudança de postura do PT e de seu governo, ao reconhecer tardiamente a delação como um instrumento valioso para desvendar crimes, contrasta com a visão anterior, na qual esse mecanismo era visto como excessivo e violador de direitos fundamentais, associado até a um Estado fascista. Apesar da divulgação da delação, que não trouxe fatos novos para um crime ocorrido em 2018, surgem questionamentos sobre o interesse de Dino e do governo em produzir resultados que apenas justifiquem avanços na área de Justiça em relação aos governos anteriores. Isso também lança luz sobre a verdadeira crítica do PT, que parece ter sido direcionada não aos métodos adotados com sucesso pela Operação Lava Jato em si, mas sim aos seus alvos.
De acordo com a PF, a delação premiada de Élcio de Queiroz pode resultar em novas descobertas, pois pode encorajar outros investigados a também colaborarem com a justiça por meio de de acordos de delação. Dino afirmou que é "indiscutível" o envolvimento das milícias do Rio de Janeiro no caso do assassinato de Marielle e que novas etapas da investigação revelarão até onde esse envolvimento se estende.