A recente homologação da delação premiada do tenente-coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordens do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), pelo ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), após uma negociação com a Polícia Federal (PF), está provocando estranhezas do meio jurídico e promete ser alvo de debates políticos. Especialistas consultados pela Gazeta do Povo destacam que a decisão de Moraes contraria entendimentos anteriores do STF e do próprio ministro, que confirmam a possibilidade de a PF negociar o acordo de colaboração, mas este somente teria validade legal com a concordância do Ministério Público Federal (MPF).
A Procuradoria-Geral da República (PGR), contudo, emitiu parecer contrário à proposta de delação do ex-ajudante de ordens de Bolsonaro. O titular do órgão, Augusto Aras, criticou o acordo da PF com Mauro Cid, comparando-o a outros negociados no âmbito da Operação Lava Jato, como os de Antonio Palocci (ex-ministro dos governos Lula e Dilma) e Sérgio Cabral (ex-governador do Rio de Janeiro), que foram rejeitados pelo STF justamente por falta de concordância do MPF. “A PGR não aceita delações conduzidas pela Polícia Federal”, reiterou o procurador-geral.
Rodrigo Chemim, procurador do Ministério Público do Paraná, observa que em 2021 o plenário do STF decidiu que o acordo de colaboração com a PF somente seria válido com a anuência do MPF, o que levou à anulação do acordo de Sérgio Cabral por falta desse respaldo.
“Portanto, a notícia de um acordo de Mauro Cid nos mesmos termos, contrariando uma decisão anterior do Supremo, soa contraditória. Naquele ano, curiosamente o próprio ministro Moraes votou a favor de invalidar o acordo de colaboração, atendendo ao pedido da PGR para considerar a negociação entre a polícia e o ex-governador inválida sem a aprovação do MPF”, observou.
Em seu voto, Moraes havia sublinhado que o acordo de Cabral com a PF continha "graves vícios", "que não permitem sua homologação, uma vez que o referido ajuste não cumpre os requisitos legais". Ele, porém, não negou a possibilidade de a PF celebrar acordos de colaboração premiada com réus, mas a corte entendeu que o MPF precisa ser consultado.
Segundo Cláudio Caivano, advogado que representa investigados em outros inquéritos abertos por Alexandre de Moraes, a jurisprudência estabelecida pelo próprio STF torna a homologação dependente de critérios adicionais, além da Polícia Federal, com revisão do MPF. "Apesar disso, alguns juristas ainda fazem referência a jurisprudências anteriores, que já foram questionadas e revogadas”, acrescentou.
Mauro Cid manifestou a intenção de colaborar com as investigações do chamado inquérito das milícias digitais, que está vinculado a várias apurações envolvendo o ex-presidente Bolsonaro, como suspeitas de ataques às urnas eletrônicas, de orquestração de golpe de Estado, de fraudes no cartão de vacinação do ex-presidente e de desvio de joias da Presidência da República. Preso desde 3 de maio, o tenente-coronel foi libertado no sábado (9) pelo ministro Moraes, que considerou desnecessária a manutenção da prisão preventiva após várias diligências da PF e três interrogatórios. A soltura se deu mediante uso de tornozeleira eletrônica e outras medidas restritivas.
A homologação permite ao ministro Alexandre de Moraes tomar várias medidas com base na colaboração, incluindo quebras de sigilo, busca e apreensão e prisões preventivas. Indícios obtidos nessas etapas podem pressionar o MPF a agir e considerar a delação.
Augusto Aras está próximo do fim do seu mandato na PGR e o seu sucessor, a ser escolhido em breve pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), poderá revisar a sua postura. Aras deve deixar o cargo em 26 de setembro, e, se não houver definição até lá, a subprocuradora-geral Elizeta Ramos assumirá interinamente. Lula já indicou que não deixará a transição em aberto e acelera conversas com candidatos ao cargo de grande relevância para interesses do governo.
Decisão pode abrir precedentes perigosos, dizem os especialistas
Especialistas alertam que a decisão de Moraes pode abrir precedentes, encorajando acordos diretos entre a defesa dos réus e a PF, independentemente da anuência do MPF. Isso poderia impactar investigações envolvendo políticos e criminosos comuns. O ministro da Justiça, Flávio Dino, recentemente afirmou que a PF está alinhada com o governo Lula e suas causas. Além disso, o ministro Gilmar Mendes, do STF, criticou em anos anteriores o abuso da prisão preventiva para forçar delações premiadas, comparando essa prática à tortura, uma crítica que está sendo explorada por aliados de Bolsonaro no caso de Mauro Cid. A decisão de Moraes de libertar o ex-ajudante de ordens não menciona o acordo de colaboração premiada, mas ela veio a público no mesmo dia da homologação da delação.
A professora de Direito Constitucional Vera Chemim concorda que um eventual acordo de colaboração premiada feita por Mauro Cid com o delegado da Polícia Federal sem a participação do Ministério Público pode até ser considerado constitucional, tal qual decidiu o STF, no âmbito da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5508, em 2018. Mas, de acordo com aquela mesma decisão, “os benefícios eventualmente propostos ao colaborador pelo delegado só serão concretizados pelo Poder Judiciário e o Ministério Público deve, obrigatoriamente, opinar sobre o acordo e, na sequência, o juiz deverá homologar ou não".
“Considero fundamental a manifestação do Ministério Público sobre os termos do acordo de colaboração premiada, independentemente de sua formulação ter sido feita por uma autoridade policial, pois o MP integra o Sistema de Justiça previsto na Constituição e deveria participar de todos os procedimentos pré-processuais de forma vinculante e obrigatória”, defendeu.
Ela lembra que o Ministério Público pode até deixar de oferecer a denúncia se a proposta de colaboração premiada remeter a uma infração da qual ele não tenha tido conhecimento prévio. Além disso, mesmo após a homologação do acordo pelo juiz, o colaborador poderá ser ouvido pelo MP.
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