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Agora filiado ao Podemos, Deltan Dallagnol, ex-coordenador da extinta força-tarefa da Lava Jato, pretende concorrer ao cargo de deputado federal pelo estado do Paraná nas eleições de 2022 com uma pré-candidatura "independente". Em entrevista à Gazeta do Povo, ele diz que, neste momento, não deve participar da campanha de nenhum presidenciável, embora tenha defendido que seu correligionário Sergio Moro, ex-juiz da Lava Jato, é o pré-candidato mais "preparado" e "equilibrado" entre as opções que se apresentam.
"Eu tenho uma vida independente, uma linha independente e minhas próprias causas, e eu vou defender as minhas causas. Eu não vou defender um político A ou B", diz Deltan ao ser perguntado sobre o papel que teria na campanha do ex-juiz. "Eu vou fazer campanha para a causa [anticorrupção]", completa.
"A gente vive em um país polarizado e eu quero incentivar as pessoas a refletirem por elas mesmas neste momento histórico. Quero que cada um avalie as pautas que mais importam para elas e que avaliem quais são os candidatos que melhor atendem essas pautas. Então, neste momento, estou me apresentando como uma pessoa que tem candidatura própria, independente, que é alinhado com causas."
O ex-procurador deixou o Ministério Público Federal (MPF) no começo de novembro e, pouco mais de um mês depois, se filiou ao Podemos, mesmo partido de Sergio Moro. Deltan conta à Gazeta da Povo que tomou a decisão de entrar para a política há cerca de dois meses e meio, refuta alegações de que sua incipiente carreira na política prova que ele foi parcial no comando da operação Lava Jato e dá mais alguns detalhes sobre sua proposta suprapartidária de tentar eleger 200 deputados e senadores que estejam comprometidos com a democracia, combate à corrupção e preparação política.
"Para lutar contra a corrupção, precisamos ocupar posições de poder", diz. "É lá no Congresso que tem que ser aprovadas as mudanças de lei que vão mudar as decisões do Supremo [Tribunal Federal] e reconstruir o combate à corrupção que o próprio Congresso Nacional derrubou." Deltan propõe que os candidatos ao Parlamento assinem "um compromisso básico com a democracia" e com uma série de propostas de combate à corrupção, como a prisão em segunda instância, fim do foro privilegiado e criminalização do enriquecimento ilícito, "sob pena de infidelidade partidária, ou seja, pode perder o cargo se descumprir". Os signatários dessa proposta também se comprometeriam a fazer "pelo menos 100 horas de preparação e reciclagem política a cada quatro anos".
Ao diferenciar a sua ideia da já existente Frente Parlamentar Anticorrupção, que reúne mais de 200 deputados e senadores no Congresso, Deltan diz que "tem muita gente que é boa no discurso contra a corrupção, mas que na prática não luta contra a corrupção". "Na Frente Parlamentar de Combate à Corrupção, entra qualquer senador que queira 'combater a corrupção' e que 'apoia a causa contra a corrupção'. Mas a maior parte deles tem esse compromisso da boca para fora", acrescenta, citando como exemplo que apenas 67 deputados desse grupo votaram contra a reforma da Lei de Improbidade – que, segundo o ex-procurador, foi destruída pelos parlamentares.
Deltan também conta que tem outras causas, além do tripé já citado. Diz que defenderá as pessoas com deficiência, os valores da família, o livre mercado e causas que se relacionem com a dignidade da pessoa humana e a proteção da vida, "que é algo que é muito forte na minha história" – Deltan é cristão evangélico batista.
Críticas a decisões do STF também não faltam na entrevista. O ex-procurador afirma que um dos principais retrocessos do combate à corrupção no Brasil foi uma decisão do Supremo, de 2019, que mudou para a Justiça Eleitoral a competência do julgamento de casos envolvendo políticos. "Não só eles mudaram a regra do jogo para o futuro, o que dificulta muito o trabalho contra a corrupção no futuro, porque a Justiça Eleitoral não é aparatada e nem especializada nisso. Mas, pior ainda, o Supremo permitiu que essa regra fosse aplicada, revendo tudo que já foi feito e julgado", diz Deltan, citando que casos como o do superfaturamento da refinaria de Pasadena (nos EUA, que era da Petrobras), o mensalão mineiro do PSDB, as condenações do ex-presidente da Câmara dos Deputados Eduardo Cunha, entre outros, foram derrubados e anulados por causa dessa decisão.
O ex-procurador da Lava Jato também critica o fim da prisão em segunda instância e a suspeição de Moro no processo contra o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
Sobre a possibilidade de o petista concorrer às eleições para presidente em 2022, Deltan diz que as anulações dos processos de Lula "são absurdas", mas que as questões que levaram à condenação do ex-presidente serão debatidas pela sociedade brasileira. "Existem vários valores em jogo. Esperamos que a sociedade possa debater isso intensamente, sobre o que a gente quer para o nosso futuro, em relação aos diferentes projetos que os candidatos vão apresentar."
Quando perguntado sobre a prisão do deputado Daniel Silveira – por ordem do ministro do STF Alexandre de Moraes sob a acusação de cometer crimes contra a honra do Poder Judiciário e dos ministros do Supremo –, Deltan não quis falar do caso específico, mas defendeu a liberdade de expressão, principalmente a de senadores e deputados. "Os deputados e senadores têm que ter uma liberdade maior para criticar o que o presidente faz, o que o ministro do STF faz, sem medo de serem punidos, justamente porque eles estão na área de atrito político e por isso tem que ter uma proteção maior", diz Deltan sobre a imunidade parlamentar material.
Confira a seguir a entrevista completa em áudio e transcrita:
O presidente Jair Bolsonaro publicou um vídeo no fim de semana em que ele afirma que o senhor tentou entrar em contato com ele, ainda em 2019, para tentar marcar uma reunião, porque o senhor estaria de olho no cargo de procurador-geral da República. O que o senhor tem a dizer sobre essa alegação do presidente? E também queria saber se, em algum momento, o senhor pensou em ser procurador-Geral da República, se tinha esse desejo.
Deltan – Essa declaração do presidente Jair Bolsonaro é completamente equivocada. Aliás, eu acabei de assistir a um vídeo do presidente Jair Bolsonaro em que ele mesmo, em 2019, afirma textualmente que eu nunca o procurei com esse objetivo. Ele mesmo afirmou, naquela época de escolha do procurador-geral... [Ele] vai diante das câmeras dizer: "o Deltan Dallagnol foi considerado, em um determinado momento do passado, mas ele nunca me procurou com esse objetivo". Ou seja, o próprio Jair Bolsonaro de 2019, da época dos fatos, mostra que a declaração de ontem [domingo, dia 12], do Jair Bolsonaro de 2021, está absolutamente equivocada. E de fato nunca procurei o presidente Jair Bolsonaro para conversar.
Alguns interlocutores do Palácio do Planalto me sondaram naquela época sobre se eu aceitaria ir a uma reunião no Palácio do Planalto e, eu consultei outros procuradores, e nós entendemos que seria equivocado a gente ir numa reunião do Palácio do Planalto, do mesmo modo como nós entendemos que seria equivocado ter aceito um convite do presidente [Michel] Temer em 2016 para que a gente fosse ao Palácio do Jaburu. Em ambas as ocasiões nós compreendemos que a nossa ida para conversar com o presidente da República seria inadequada porque isso alimentaria especulações infundadas sobre a Lava Jato, que sempre foi uma investigação e um trabalho técnico, imparcial e apartidário.
Então foi uma afirmação infeliz e equivocada. E o que nos deixa triste é que a notícia falsa acaba tendo uma repercussão maior do que a resposta, do que o esclarecimento e do que aquilo que é fato.
Então essa declaração do presidente Bolsonaro foi feita visando às eleições do ano que vem?
Deltan – Algumas pessoas no entorno do presidente Jair Bolsonaro veem a minha saída para o mundo político como um endosso à candidatura de um político A ou B. E vemos que infelizmente muitas pessoas do ambiente político estimulam ataques pessoais quando, a meu ver, isso é absolutamente equivocado por duas razões. Primeiro, porque nós deveríamos focar em causas e não em pessoas. Eu não saí do Ministério Público por um político A ou B. Saí pelo Brasil. Defendo a causa anticorrupção, assim como outras causas que, a meu ver, contribuem para uma sociedade mais justa, livre e democrática. Em segundo lugar, isso é equivocado porque na política, assim como em tudo na vida, os fins não justificam os meios. Acredito que devemos debater de um modo leal os temas que são do interesse público, sempre com respeito, tolerância, inclusive amor, com pessoas que se consideram nossas adversárias. E gostaria de alcançar as pessoas que nos veem como adversários para a causa anticorrupção, porque essa causa não tem lado, de esquerda, direita, de cima ou de baixo. É uma causa do brasileiro, do país mais justo para todos nós.
Ainda falando sobre esse vídeo do presidente Bolsonaro, ele indicou que as pessoas assistissem a um vídeo do Kim Paim, que é comentarista da Hora do Strike aqui na Gazeta do Povo, em que ele relaciona a Lava Jato com um plano de poder. E uma das alegações que consta no vídeo é que a Lava Jato teria blindado o senador Alvaro Dias, que hoje está no mesmo partido do senhor. O que o senhor diz sobre isso? E também, para explicar para o nosso leitor, quando nasceu essa sua vontade, esse projeto de entrar para a política, e quando veio o convite do Podemos?
Deltan – Essa alegação de que a Lava Jato protegeu um senador não tem pé nem cabeça. Porque o senador tem foro privilegiado. Senadores não eram investigados ou processados pela Lava Jato em Curitiba, mas sim perante o Supremo Tribunal Federal. Então, simplesmente, estavam totalmente fora da nossa alçada. É uma alegação que não tem pé nem cabeça, mas não consigo conversar com mais profundidade porque não assisti a esse vídeo do Kim Paim. Priorizei estar com a família depois de uma semana bastante intensa de trabalhos.
Aliás, nós sempre fomos contra o foro privilegiado e seria bom que todas as pessoas nos apoiassem nessa importante causa, desde o presidente da República até os congressistas, porque sem eles é muito difícil a gente avançar nessas importantes causas.
E, sobre a Lava Jato ter um projeto de poder, isso também não é coerente com os fatos. Porque se a Lava Jato tivesse um projeto de poder, nós teríamos saído para concorrer às eleições em 2018. E teríamos saído em massa: uns 15 ou 20 procuradores, os muitos delegados da Polícia Federal, vários julgadores, quando a Lava Jato estava no seu auge.
A verdade é que eu nunca tive pretensão política. Pelo contrário, eu sempre tive um compromisso, uma vocação de serviço à sociedade. Quando me perguntavam ao longo da história se eu queria sair para a política, eu dizia que meu foco estava exclusivamente na operação e que, naquele momento, eu conseguia ainda produzir um trabalho precioso para a sociedade, colocando corruptos atrás das grades, inibindo o crime da corrupção.
Isso foi verdade durante muito tempo, mas deixou de ser ao longo desses últimos anos, porque o combate à corrupção foi desmontado, as regras foram mudadas para que uma Lava Jato não se repita e hoje a gente se vê amarrado, não conseguimos mais combater a corrupção, nem mesmo criticar o desmonte do combate à corrupção, até porque corria o risco de punição no Conselho Nacional do Ministério Público. Os dois únicos processos administrativos disciplinares que tive na minha história no MP foram por criticar as decisões lenientes do Supremo Tribunal Federal com a corrupção e por criticar o senador Renan Calheiros (MDB-AL).
Então chegou um momento em que eu não conseguia mais contribuir com a causa pela qual eu estava lutando, dentro do Ministério Público. E, se nós queremos uma mudança em relação a essa causa, precisamos ir para a arena em que os retrocessos estão acontecendo, que é a arena política. Então eu decidi dar esse passo que, para mim, não é nenhum pouco confortável. É um passo em que eu estou abrindo mão de uma estabilidade, de uma aposentadoria, de uma liberdade maior de tempo, de um salário maior. Mas é um passo que faz sentido quando a gente coloca em vista um propósito maior de servir a sociedade, de construir um país melhor para nós e nossos filhos.
Quando veio o convite para entrar no Podemos?
Deltan – Desde 2016, não só o Podemos, mas vários partidos nos convidam, nos sondam. E sempre ouvimos isso, ponderamos, refletimos sobre isso, assim como eu refleti sobre a possibilidade de outras carreiras, como sair para a advocacia, mercado de compliance, sair para ser professor.
Mas, ao longo da Lava Jato, sempre tivemos confiança de que o melhor lugar que eu poderia servir a sociedade era por meio do meu trabalho na coordenação dos trabalhos da Lava Jato, porque a gente conseguiu algo que antes era considerado impossível: punir corruptos, recuperar bilhões [de reais, para os cofres públicos] e expandir investigação, romper a impunidade das pessoas poderosas que saqueiam o nosso país.
Então, estávamos tendo uma oportunidade de fazer justiça que nunca tivemos na história. E, quando comecei a considerar isso [entrar na política], foi apenas muito recentemente. Porque eu saí da lava Jato em 2020, quando a gente identificou um problema de desenvolvimento da minha filha e eu fui estudar esse problema para conhecer mais profundamente e ver como eu poderia contribuir para o desenvolvimento dela. E só agora, quando as terapias estabilizaram e o tratamento entrou em voo de cruzeiro, com terapias semanais, em julho, mais ou menos, que eu poderia começar a voltar a cogitar enfrentar outros desafios.
E mais recentemente, cerca de dois meses e meio atrás, em um domingo, o senador Alvaro Dias me ligou e me fez o convite para sair para lutar contra a corrupção e as causas em que eu acredito. E, a partir daí, passei a refletir e orar em família, com minha esposa, passei a ouvir uma série de conselheiros. E todas as pessoas com quem eu conversei, mais de dez, me disseram que eu teria que dar esse passo para seguir lutando pela transformação do Brasil.
No evento da sua filiação ao Podemos, o senhor fez várias críticas a decisões tomadas pelo STF e pelo Congresso que, segundo o senhor, acabaram impactando negativamente o combate à corrupção. Nesses últimos anos, quais foram os principais retrocessos no combate à corrupção? E de quem é a culpa, na sua opinião?
Deltan – Muita coisa está sendo feita para o desmonte do combate à corrupção. No começo de 2019, vimos uma decisão do Supremo Tribunal Federal que mudou a regra do jogo – como um juiz que, antes de apitar o final da partida, ele muda a regra do jogo, anula os gols e muda o resultado. Isso ocorreu em março de 2019, quando o Supremo determinou que casos da política não são mais da Justiça Federal, mas são da Justiça Eleitoral. Quando você define qual a Justiça que julga, se você julgou na "Justiça errada", anula todo o caso criminal. Esse é um problema da nossa Justiça, porque discussões de competência são técnicas, as pessoas discordam sobre isso. Tanto que a decisão do Supremo foi por 6 a 5. O ministro [Luis Roberto] Barroso, na ocasião [do julgamento] disse: 'Como é que a gente vai explicar para a sociedade essa decisão? Porque o combate à corrupção nunca funcionou e agora que tá funcionando a gente vai mudar a regra do jogo?'.
Agora, não só eles mudaram a regra do jogo para o futuro... o que dificulta muito o trabalho contra a corrupção no futuro, porque a Justiça Eleitoral não é aparatada e nem especializada nisso. Mas, pior ainda, o Supremo permitiu que essa regra fosse aplicada, revendo tudo que já foi feito e julgado, de acordo com outro regra anterior que valia, que era nesse tipo de situação de corrupção política, que o caso de corrupção ficava na Justiça Federal e o caixa dois eleitoral, ficava na Justiça Eleitoral. E, quando o Supremo mandou rever isso, começaram a cair todos os casos. E pode derrubar tudo desde Paulo Roberto Costa [ex-diretor da Petrobras, primeiro delator da Lava Jato], porque ele falava que parte da propina ia para campanhas eleitorais. Mas como os tribunais estão analisando um caso por vez, estão derrubando um caso por vez. Mas o prédio inteiro tende a ruir. Derrubaram o caso [da refinaria de] Pasadena, com superfaturamento de R$ 700 milhões. Derrubaram o caso Integração, que envolveu o PSDB do Paraná. Derrubaram as condenações de [Antonio] Palocci e [João] Vaccari, envolvendo o PT. Derrubaram duas condenações de Eduardo Cunha, do PMDB. Derrubaram, fora da Lava Jato, o caso do PSDB do mensalão mineiro, e o caso envolvendo o governo da Paraíba, do PT, que é o caso Operação Calvário. E todo dia aí vai pipocar a notícia de um caso derrubado. Aí a gente pergunta: os promotores erraram? Não. Os juízes erraram? Não. Eles seguiram as regras que valiam. Não tinha como ter uma bola de cristal e adivinhar o que iria acontecer no futuro. Então, digamos que a gente siga a nova regras, julgando os casos na Justiça Eleitoral, alguma coisa nos garante que daqui a quatro anos eles não vão mudar de novo a regra do jogo? Não. E esse tipo de crítica eu faço, com todo o respeito às instituições. Mas elas precisam funcionar para entregar o serviço público. O nosso Judiciário é um dos mais caros do mundo e não entrega justiça que a gente espera que ele entregue. Mas essa crítica eu não poderia fazer se estivesse no Ministério Público, porque se fizesse tenho certeza que no dia seguinte iria se instaurar um processo no Conselho Nacional do Ministério Público e ia ter uma imensa pressão política em cima dos conselheiros, que passam pela aprovação do Senado Federal, para que eles cortassem minha cabeça ou me punissem. Então o sistema está todo trabalhando para moer as conquistas históricas da sociedade brasileira dos últimos 30 anos, em especial da Lava Jato. E a questão é: você vai ficar parado? Eu decidi que não vou ficar parado. Mas sozinho não vou conseguir. E não estou falando da pré-candidatura do Deltan. Nós precisamos fazer essa mudança, invadir democraticamente o Congresso Nacional com centenas de pessoas para mudar essa realidade.
Podemos adicionar à lista o fim da prisão em segunda instância e a suspeição do Moro?
Deltan – O fim da prisão em segunda instância institucionalizou a impunidade da corrupção política no país. Porque todo o político corrupto tem advogados bons, que vão permitir interpor infinitos recursos ao longo de quatro instâncias – nós somos o único lugar do mundo que tem quatro instâncias de julgamento. E, quando você não tem a prisão após condenação em segunda instância, isso significa que esses julgamentos vão acontecer depois de dez, de 20 anos. O caso do mensalão mineiro, do PSDB, ocorreu em 1997/98/99. E estava sendo julgado agora em 2021. E, quando saiu a decisão do Supremo mudando a regra do jogo da competência eleitoral, isso gerou a anulação desse caso agora, um caso que estava tramitando há 20 anos. Ao longo desse tempo, há espaço para cravar uma prescrição e uma nulidade com base em mudança de regras.
Sobre a suspeição do Moro, ela não teve efeitos sistêmicos, mas foi muito importante em razão do quão simbólico foram esses casos. O STF não anulou o caso do ex-presidente Lula dizendo que o ex-juiz Sergio Moro teve uma relação promíscua com o Ministério Público. Mas levou em consideração a entrada do Moro no Ministério da Justiça [do governo Bolsonaro], liberou o áudio de interceptação envolvendo a então presidente Dilma [Rousseff] sobre o termo de posse de ministro para o ex-presidente Lula para que ele tivesse foro privilegiado e não fosse investigado ou processado na Lava Jato, teve também a condução coercitiva do ex-presidente Lula, a liberação dos termos de colaboração do Palocci. Mas essas decisões seguiram o padrão da Lava Jato. Elas só tornam o juiz suspeito se ele fugiu do padrão, se não fez o que fazia em todos os casos. Mas, nesse caso, ele fez o que fazia em todos os casos. A condução coercitiva do ex-presidente Lula, por exemplo, foi a 118.ª. Já tinha ocorrido 117 [prisões] antes. Ou seja, a condução dele seguiu o padrão Lava Jato de ser. Tratamos todo mundo igual. O ex-presidente Lula, por mais importante que tenha sido a função que ele desempenhou, a nossa visão sempre foi de colocar todo mundo debaixo da mesma lei, como todo o cidadão quer que aconteça. E sobre a saída do ex-juiz Sergio Moro para o Ministério da Justiça, isso não tem a menor razão de ser. Lá, em 2017, na época da condenação do ex-presidente Lula, não existia Jair Bolsonaro como candidato viável à Presidência da República. São narrativas que vão sendo criadas. Para determinar que um julgamento foi imparcial, você olha se o julgamento se deu com base em fatos, provas e na lei. É isso que você olha, se o tratamento foi igual para todo mundo. E o caso do ex-presidente seguiu as leis, as provas. Tanto que a condenação foi emitida pelo juiz de primeira instância, confirmada por desembargadores [da segunda instância, o TRF-4] e depois confirmada por quatro ministros indicados pelos governo do PT [no Superior Tribunal de Justiça, STJ]. Eles não podem nem reclamar disso. Foi um julgamento técnico, imparcial, em três instâncias que confirmaram as condenações. E, por essas razões todas, eu discordo veementemente da decisão do STF, assim como eu discordo de várias outras decisões do Supremo que tem, infelizmente, desmontado o combate à corrupção no nosso país.
Como o senhor se sente sabendo que o ex-presidente Lula está livre para concorrer às eleições para presidente em 2022?
Deltan – A questão é justiça. Não gosto das anulações que foram feitas. As anulações são absurdas. As condenações deveriam ter sido mantidas. Existiam provas para isso. Mas, quando derruba tudo, pela lei, ele se torna elegível. São as anulações que eu discuto, e não a elegibilidade dele em si. Mas todas essas questões serão debatidas pela sociedade brasileira. Existem vários valores em jogo. Esperamos que a sociedade possa debater isso intensamente sobre o que a gente quer para o nosso futuro, em relação aos diferentes projetos que os candidatos vão apresentar.
Tem algum projeto em tramitação no Legislativo ou alguma ação no Judiciário que te preocupa, que pode ser mais um golpe no combate à corrupção?
Deltan – Há vários. Tem a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 5, que iria mudar a composição do Conselho Nacional do Ministério Público. Porque, até hoje, o Conselho Nacional não havia expulsado, demitido ninguém da força-tarefa [da Lava jato], porque não tem fundamento; nosso trabalho foi legal. Eles receberam dezenas e dezenas de reclamações e eles fazem o exame de viabilidade, instauram um processo disciplinar quando eles veem que tem um indicativo sério de que houve irregularidades. E eles fizeram isso em relação às minhas críticas ao Supremo Tribunal Federal e a Renan Calheiros. E me puniram debaixo de uma forte pressão política. Mas eles não têm como inventar. Mas, não contente, o Congresso queria mais espaço para ingerência política no Conselho, para colocarem pessoas com predisposição para ir mais além e tentar nos punir. Isso não iria só prejudicar as pessoas que trabalham na Lava Jato, mas todo o combate à corrupção. Isso daria a políticos corruptos instrumentos para retaliar os promotores e procuradores. A PEC 5 não passou porque a sociedade se mobilizou. Mas vimos declarações do presidente da Câmara [Arthur Lira - PP] dizendo que ele quer colocar a proposta em votação de novo.
Além disso, tem um projeto de lei que muda a lavagem de dinheiro, que deturpa completamente a Lei de Lavagem de Dinheiro, que é um importante instrumento de proteção da sociedade.
A gente tem no STF a discussão sobre as cooperações internacionais. Existem ministros do STF, talvez por desconhecimento absoluto sobre como funcionam cooperações internacionais, que querem dizer que a cooperação internacional não poderia ocorrer por meio de conversas, reuniões e ligações, mas só por meio de cartas do Ministério da Justiça. Ora, aí a gente volta para a época do descobrimento do Brasil, quando se comunicava com outras autoridades do exterior só por carta. E, assim, não teremos novas apurações [da corrupção transnacional]. Isso contraria todas as leis, recomendações e tratados, nacionais e internacionais, que tratam de cooperação [de órgãos de investigação de diferentes países], que falam que, para se ter uma investigação eficiente de dinheiro que é lavado internacionalmente, você precisa ter uma cooperação intensa, precisa sensibilizar a autoridade estrangeira quanto a importância do teu caso. Mas tem ministro do Supremo que quer mudar essa regra, derruba a Lava Jato e impede que novas investigações frutifiquem no futuro
O senhor criticou algumas decisões do STF em casos de corrupção. E eu gostaria de trazer para a nossa conversa outras decisões do Supremo envolvendo liberdade de expressão. Qual é a sua opinião sobre as prisões do deputado Daniel Silveira (PSL-RJ), dos inquéritos das fake news e atos antidemocráticos? Na sua opinião, essas decisões foram razoáveis?
Deltan – Mais do que a minha opinião, a Constituição está do lado da liberdade de expressão. A liberdade de expressão tem primazia constitucional sobre os demais direitos constitucionais e fundamentais, porque ela é um pilar da democracia. Todo mundo que estuda liberdade de expressão diz isso. A liberdade de expressão, pela qual eu fui punido ao criticar o supremo e o senador Renan Calheiros sem ofender ninguém – o que eu acho um absurdo –, tem primazia sobre outros direitos constitucionais e fundamentais porque ela é pilar da democracia, porque a democracia se constrói pela pluralidade de ideias, pelo exercício da crítica, pelo debate. Mas isso não significa que ela é absoluta Existem outros direitos que devem ser compatibilizados, respeitados. E onde está a linha que separa? Uma boa linha é a da lei, que proíbe que você calunie, difame e xingue alguém – e isso vale para todas as pessoas, cidadãos comuns. Mas, quando se trata de um parlamentar, a lei dá uma proteção ainda maior para que essas pessoas não sejam punidas nem por injúria, nem por calúnia, nem difamação, pelo menos no exercício da sua função parlamentar. Porque os deputados e senadores têm que ter uma liberdade maior para criticar o que o presidente faz, o que o ministro do STF faz, para que ele tenha uma possibilidade maior de criticar sem ter medo de ser punido, justamente porque ele está na área de atrito político e por isso tem que ter uma proteção maior. Me parece que a liberdade de expressão deles tem que ser algo quase sagrado. Posso discordar do conteúdo do que um parlamentar disse, mas quero que aquela proteção maior que existe para deputado e senadores seja preservada, porque isso é um pilar da nossa democracia. Esse é o contexto maior em que eu vejo esse assunto e a importância que a liberdade de expressão tem.
O senhor lançou uma proposta suprapartidária de eleger em 2022 mais de 200 deputados e senadores que estejam comprometidos com a democracia, o combate à corrupção e com a preparação política. Poderia dar mais detalhes para a gente desta carta de compromisso, e em que ela vai se diferenciar da Frente Parlamentar contra a Corrupção que existe atualmente no Congresso?
Deltan – Para lutar contra a corrupção, precisamos ocupar posições de poder para mudar esse problema, porque é lá no Congresso que tem que ser aprovadas as mudanças de lei que vão mudar as decisões do Supremo e para reconstruir o combate à corrupção que o próprio Congresso Nacional derrubou. Precisamos levar 200 pessoas para a Câmara dos Deputados e mais senadores de diferentes partidos que tenham três compromissos básicos: com a democracia, que é a base do nosso pacto comunitários; com o combate à corrupção, com cláusulas específicas, sob pena de infidelidade partidária; e em terceiro lugar é preciso que essas pessoas se comprometam com a preparação política, com a reciclagem, porque nós precisamos melhorar o nível de debate das políticas públicas no Parlamento.
Na Frente Parlamentar de Combate à Corrupção, entra qualquer senador que queira "combater a corrupção e que apoia a causa contra a corrupção". Mas a maior parte deles tem esse compromisso da boca para fora. Eu tenho base para dizer isso: é só você olhar a votação [neste ano] que destruiu a Lei de Improbidade Administrativa, um dos instrumentos centrais do combate à corrupção que existe desde a década de 1990. Só 67 deputados [da frente] votaram para não destruir essa lei. A Frente Parlamentar tem mais de 200 deputados. Só para se ter uma ideia do impacto da alteração na lei, vão cair por terra a cobrança de mais de 30 ações de improbidade que cobram mais de R$ 40 bilhões na Lava Jato. Todas serão destruídas porque, como mudaram a regra de prescrição, e quando a ação dura mais do que quatro anos, elas caem por terra. E todas essas [ações de reparação de valores aos cofres públicos da Lava Jato] duram mais de quatro anos e ainda estão pendentes de julgamento. Tem muita gente que é boa no discurso contra a corrupção, mas que na prática não luta contra a corrupção.
Nossa proposta é que as pessoas que vão concorrer ao Parlamento façam um compromisso básico com a democracia, com pelo menos 100 horas de preparação e reciclagem política a cada quatro anos, e no combate à corrupção que faça um termo escrito, clausulado, sob pena de infidelidade partidária – ou seja, pode perder o cargo se descumprir – com compromissos com a prisão em segunda instância, fim do foro privilegiado, com a criminalização do enriquecimento ilícito do agente público, com as novas medidas contra a corrupção e uma série de outros compromissos escritos, sob pena de responsabilidade de perda do cargo. É um instrumento muito mais forte. Mas é um primeiro passo. Precisamos construir grandes adesões em estados, por causa do coeficiente eleitoral. Também precisamos construir regras de finalidade partidária dentro dos partidos para garantir esses compromissos.
Os seus colegas do Podemos disseram, no evento de filiação, que o senhor vai concorrer ao cargo de deputado federal pelo Paraná. Mas o senhor não falou isso no seu discurso de filiação. A gente já pode considerar que o senhor é pré-candidato a esse cargo?
Deltan – No meu discurso eu não mencionei porque o ponto central é a causa, não é o Deltan. Mas agora, questionado, essa é a tendência: pré-candidato a deputado federal [pelo Paraná]. Por que não senador? Porque já temos um senador muito bom que vai concorrer à reeleição, que é o senador Alvaro Dias. E eu não estou saindo [para a política] para fazer soma zero – sair um que é contra a corrupção e entrar outro que também é. Eu estou saindo [para a política] para tirar pessoas que não são contra a corrupção. Por isso a minha preocupação das pessoas de todos os partidos aderirem a esses compromissos básicos, porque se não o candidato A acaba elegendo o candidato B que não tem esses compromissos básicos.
A sua plataforma será o combate à corrupção. Mas o que mais o político Deltan Dallagnol vai defender? Qual é a sua agenda política para além da Lava Jato?
Deltan – Minha principal agenda política é tripla: democracia, combate à corrupção e preparação política. Mas eu também defendo a causa das pessoas com deficiência. Nós temos no Brasil 2 milhões de autistas e, para eles terem um bom desenvolvimento intelectual, precisam de 15 a 40 horas de terapia semanais. Se não, eles terão alguma deficiência intelectual, em grande medida, e dependência do pai e da mãe para fazer o básico dentro de casa. No SUS, em praticamente todo o Brasil, essas crianças têm menos de uma hora semanal de terapia. Quando você olha a curva do desenvolvimento intelectual das crianças que fazem [terapia] e das que não fazem tratamento, é absurda a diferença. E o nosso SUS não proporciona isso. É algo pelo qual a gente tem que lutar: pelas crianças, pelos pais, mães, famílias, pelas pessoas do entorno e pela sociedade, para termos uma economia mais próspera, porque isso se relaciona também com a economia, pessoas economicamente ativas.
Sempre vou defender também os valores da família, o livre mercado, a saúde, a educação. Mas, mais do que defender cláusulas gerais, precisamos de compromissos mais concretos e isso eu vou desenvolver ao longo do tempo, é um compromisso que eu tenho. E vou defender causas que se relacionem com a dignidade da pessoa humana e a proteção da vida, que é algo que é muito forte na minha história. Eu tenho uma cosmovisão cristã, tenho uma identidade cristã, sou evangélico batista. Então é natural que eu tenha pautas como a vida, os valores da família.
Mas a minha pauta central é melhorar o nível do debate no Congresso Nacional para que a gente tenha um Congresso que combata a corrupção, que é um pressuposto, e preparado para enfrentar os principais desafios do país. O combate à corrupção é importante porque, sem ele, não haverá os recursos nem interesse para atacar os principais problemas e desafios do país.
Qual será o seu papel, a sua atuação, na campanha do ex-juiz Sergio Moro à Presidência? Dizem que o senhor vai buscar uma aproximação da comunidade evangélica com Moro. É verdade?
Deltan – Eu tenho uma vida independente, uma linha independente e minhas próprias causas. E eu vou defender as minhas causas. Eu não vou defender um político A ou B. Defendo as causas e meu incentivo é que sempre as pessoas olhem para as causas. Agora, quem quer que apoie a causa anticorrupção de verdade, essa pessoa estará avançando a causa e é natural que, quando estiver defendendo essa campanha, para a gente poder eleger e levar para o Congresso Nacional pessoas comprometidas com essa causa, eu vou ter contato com uma série de lideranças nacionais e vou sempre estar defendendo a causa. E as pessoas naturalmente vão identificar quais são os políticos que, na perspectiva delas, têm a melhor condição de defender essa causa. Então eu me coloco como uma candidatura independente e que quer construir uma causa de um país mais justo, mais próspero, um país com menos corrupção, com menos impunidade e que tenha um Congresso mais preparado para atender os desafios do país.
Pelo que entendi, não vai fazer campanha para o Sergio Moro. É isso?
Deltan – Eu vou fazer campanha para a causa. Mesmo quando eu saio do Ministério Público, eu não estou saindo pelo Deltan. Eu não tenho um projeto de poder; eu tenho um projeto de causa. Agora, claro que, ao longo da jornada, a gente vai identificar quem são as pessoas que contribuem para as causas e cada um vai alinhar o seu voto, sua decisão, de acordo com as pessoas que melhor contribuem para as causas. Mas a gente vive em um país polarizado e eu quero incentivar as pessoas a refletirem por elas mesmas neste momento histórico. Quero que cada um avalie as pautas que mais importam para elas e que avaliem quais são os candidatos que melhor atendem essas pautas. Então, neste momento, estou me apresentando como uma pessoa que tem candidatura própria, independente, que é alinhado com causas. O meu lado é o lado do brasileiro. Alguém que quer estimular a melhoria do debate político e a reflexão por todos os eleitos sobre quem são os candidatos que melhor atendem às suas pautas básicas e essenciais.
Me coloco como independente, como candidato ao Legislativo, mas se me perguntar minha opinião, Moro é o mais preparado, mais equilibrado, mais alinhado com o respeito às pessoas, minha visão pessoal. Mas estimulo cada um a lutar pelo que acredita e ver quem se alinha mais ao que acredita.