Ouça este conteúdo
O Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) pode julgar nesta terça (8) dois processos disciplinares contra o procurador Deltan Dallagnol, que na semana passada anunciou sua saída da força-tarefa da Lava Jato no Paraná. As ações haviam sido travadas em agosto pelo ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal (STF), mas foram liberadas na última sexta-feira (4) pelo ministro Gilmar Mendes.
Ao revogar a liminar do decano, Mendes apontou ao risco de prescrição envolvendo os dois processos contra Deltan. O prazo de ambos se encerra na próxima quinta-feira (10) e Celso de Mello só iria retornar de licença médica na sexta-feira (11).
"O não julgamento de um réu eventualmente culpado configura situação mais grave do que o julgamento e a absolvição de um réu eventualmente inocente", escreveu Gilmar, provocando fortes reações da força-tarefa da Lava Jato.
Deltan anunciou na última terça-feira (1) que deixaria a força-tarefa da Lava Jato para ter mais tempo para cuidar da saúde da família.
O que pode acontecer no julgamento de Deltan
Nos bastidores, conselheiros do CNMP avaliam que Deltan deve sofrer censura - punição que, na prática, dificulta a promoção do procurador ou benefícios de carreira dentro da Procuradoria. A condenação, se ocorrer, também constará na ficha de Deltan Dallagnol caso ele seja julgado novamente no Conselho, que poderá aplicar penas mais duras.
O CNMP atua na fiscalização administrativa, financeira e disciplinar do Ministério Público no Brasil e é formado por 14 membros. Presidido pelo procurador-geral da República, Augusto Aras, o Conselho é composto por quatro integrantes do MPF, três membros de Ministérios Públicos Estaduais, dois juízes, dois advogados e dois cidadãos de notável saber jurídico indicados pela Câmara dos Deputados e pelo Senado.
Atualmente, porém, o CNMP tem apenas 11 cadeiras ocupadas. O Senado tem pendente a aprovação de três nomes por causa das dificuldades para a votação durante a pandemia de coronavírus. Nos bastidores, há a avaliação de que o CNMP estar desfalcado pode acabar prejudicando Deltan. Das três nomeações pendentes, duas são nomes do Ministério Público.
Entenda as acusações contra Deltan
As ações contra o ex-coordenador da Lava Jato miram publicações feitas nas redes sociais e supostas atitudes de promoção pessoal.
Um dos processos foi apresentado pelo senador Renan Calheiros (MDB-AL). Ele acusa Deltan de supostamente influenciar as eleições para a presidência do Senado no ano passado, quando o procurador fez críticas a Calheiros, que disputava o cargo, nas redes sociais. A disputa foi vencida pelo senador Davi Alcolumbre (DEM-AP). O senador argumenta que houve “quebra de decoro” por interferência do MP em outro poder.
O segundo processo foi apresentado pela senadora Kátia Abreu (PP-TO). Ela pede a remoção compulsória por interesse público de Deltan da Lava Jato e é anterior ao anúncio do procurador de seu desligamento da força-tarefa.
O pedido é baseado em três argumentos: o fato de existirem 17 reclamações disciplinares contra Deltan tramitando no CNMP; o acordo firmado pela Lava Jato Paraná com a Petrobrás para destinar R$ 2,5 bilhões recuperados pela operação e que seriam geridos por uma fundação dos procuradores, anulado pelo STF; e o fato de que Deltan prestou, ao longo do trabalho na operação Lava Jato, palestras remuneradas.
Durante a tramitação do pedido de remoção, o conselheiro Luiz Fernando Bandeira, relator do caso, pediu que fosse entranhada cópia de pedido de providências da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), que também se baseia em três argumentos: a cooperação com autoridades americanas; a suposta existência, noticiada em um veículo de imprensa, de aparelhos do tipo guardião na força tarefa em Curitiba, para interceptações telefônicas clandestinas; e a suspeita, aventada em Reclamação perante o STF, de que haveria investigações sobre autoridades com foro privilegiado por parte dos procuradores em Curitiba.
O que diz a defesa de Deltan
A defesa de Deltan alega que o procurador não cometeu nenhuma irregularidade durante o exercício de suas funções. Em relação ao procedimento aberto a pedido de Renan Calheiros, a defesa argumenta que Deltan jamais pediu voto a favor ou contra qualquer candidato nas eleições para a Presidência do Senado.
Segundo os advogados, a defesa do voto aberto para a presidência do Senado é uma pauta de interesse público e é legítima sua defesa. Além disso, a avaliação de que a eleição de Renan seria prejudicial ao avanço da pauta anticorrupção é uma leitura de cenário legítima e bastante comum na época.
Em relação aos argumentos usados para pedir sua remoção da Lava Jato, Deltan alega que embora o acordo com a Petrobrás tenha suscitado polêmica, diversos órgãos que o examinaram entenderam que foi uma solução jurídica legítima para um problema inédito. Em entrevista à Gazeta do Povo logo após anunciar sua saída da força-tarefa, Deltan reforçou que não houve ilegalidade no episódio, mas reconheceu que poderia ter conduzido o assunto de forma a gerar menos polêmica.
Sobre as palestras remuneradas, a defesa destaca que o plenário do CNMP já reconheceu a plena legalidade e legitimidade da atividade.
Sobre a compra de aparelhos de interceptação telefônica pela força-tarefa em Curitiba, a Lava Jato destaca que trata-se de fake news e que todos os monitoramentos feitos pela operação foram executados com ordem judicial pela Polícia Federal.
A força-tarefa também nega ter investigado autoridades com prerrogativa de foro e argumenta que nenhum político com mandato foi alvo de denúncias da Lava Jato em primeira instância.
Tentativa de adiar o julgamento
Deltan recorreu ao Supremo para travar as investigações. A defesa do procurador alegou que ele teve o seu direito à ampla defesa violado e estaria sendo julgado duas vezes pelo mesmo caso - a Corregedoria do Ministério Público Federal já avaliou a conduta de Deltan nas redes sociais e não aplicou sanções.
O pedido inicialmente foi aceito por Celso de Mello, que suspendeu os processos no dia 17 de agosto - véspera do julgamento. À época, o andamento do caso poderia levar Deltan a ser afastado da Lava Jato. Por essa razão, o decano pontuou que a remoção de um membro do Ministério Público ‘deve estar amparada em elementos probatórios substanciais’ e em processo com ‘o pleno exercício do contraditório e da ampla defesa’.
Em recurso, a AGU alertou sobre o risco dos processos contra Deltan prescreverem sem que fossem julgados e garantiu que a defesa do procurador teve todo o direito de se defender no processo, inclusive foi ‘adequada e oportunamente intimado’ de todos os atos processuais.
Após Gilmar Mendes liberar o julgamento, integrantes da força-tarefa da Lava Jato no Paraná, incluindo o futuro coordenador do grupo Alessandro Oliveira, destacaram que a condenação de Deltan significaria uma ‘violação à liberdade de expressão’ de membros do Ministério Público.
"Essas manifestações de Deltan, como outras feitas, são em defesa da causa anticorrupção, em defesa da sociedade", alegam os procuradores. "A alegação de que isso seria uma falta funcional já foi apresentada à Corregedoria do Ministério Público Federal, analisada e rechaçada. Mesmo assim, o caso foi novamente apresentado para julgamento perante o CNMP".
Em entrevista exclusiva à Gazeta do Povo sobre o julgamento, Deltan afirmou que a independência do Ministério Público está em jogo no julgamento dos dois casos contra ele no CNMP. “Não se trata de Deltan apenas, mas da própria independência do Ministério Público e do trabalho de seus integrantes. A sociedade quer procuradores acovardados, com medo de vinganças e retaliações?”, questionou o procurador.
Deltan já foi punido antes
Em novembro do ano passado, o CNMP puniu Deltan por ter dado uma entrevista à rádio CBN em que fazia críticas a ministros do Supremo Tribunal Federal (STF). Por 8 votos a 3, os conselheiros do CNMP decidiram dar uma advertência a Deltan.
O processo administrativo disciplinar (PAD) contra o coordenador da Lava Jato havia sido protocolado no CNMP pelo presidente do STF, Dias Toffoli. A entrevista foi concedida pelo procurador em agosto de 2018. Na ocasião Deltan afirmou que ministros do Supremo passam uma mensagem de leniência com suas ações.
Momento crítico para a Lava Jato
O CNMP é presidido pelo procurador-geral da República, Augusto Aras, que recentemente entrou em um conflito aberto com a força-tarefa em Curitiba.
O desentendimento veio à público no final de junho, com a visita da subprocuradora Lindôra Araújo a Curitiba. Aliada de Aras na Procuradoria-Geral da República (PGR), ela tentou acessar de maneira informal o banco de dados das investigações da Lava Jato no Paraná. O caso foi parar na Corregedoria Nacional do Ministério Público Federal. Aras obteve uma liminar, revogada semanas depois, do Supremo Tribunal Federal (STF), para obter o compartilhamento das informações.
O procurador-geral da República chegou a criticar publicamente a Lava Jato, dizendo que a operação é uma “caixa de segredos” e que é necessária uma “correção de rumos” no MPF para que o “lavajatismo não perdure”.
O momento também é crítico para a Lava Jato porque no dia 10 de setembro venceria a autorização para que a força-tarefa continue atuando. A decisão sobre a prorrogação ou não do trabalho, em tese, caberia a Aras, mas uma decisão liminar concedida pela subprocuradora Maria Caetana Cintra dos Santos, do Conselho Superior do Ministério Público Federal (CSMPF), prorrogou por mais um ano a força-tarefa e colocou o procurador-geral contra a parede.
A liminar de Maria Caetana tem caráter provisório e pode vir a ser questionada pelo plenário do CSMPF. Mas, para integrantes da Lava Jato, a decisão ajuda a aumentar a pressão sobre Aras para manter as investigações por mais tempo.
Os procuradores da força-tarefa dizem que foram pegos de surpresa com a liminar. Há dentro do grupo a interpretação de que o Conselho Superior não tem prerrogativa para deliberar sobre a renovação de forças-tarefas. Por isso, há o risco de o caso acabar sendo judicializado.
Com informações de Estadão Conteúdo