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As denúncias da Procuradoria-Geral da República (PGR) contra mais de mil pessoas que, de algum modo, estavam presentes no Quartel-General do Exército ou na Praça dos Três Poderes, no dia da invasão aos prédios do Palácio do Planalto, Congresso e Supremo Tribunal Federal, em Brasília, não seguem o entendimento recente dos tribunais superiores quanto à individualização da conduta de cada pessoa.
Desde o 8 de janeiro, o órgão já denunciou 1.037 pessoas. A maioria delas, cerca de 800, foi acusada pelos crimes de incitação de animosidade das Forças Armadas contra as instituições democráticas e associação criminosa, cujas penas somam menos de 4 anos de detenção, em caso de condenação.
As demais, que participaram da invasão das sedes dos Poderes, foram denunciadas por crimes mais graves, como associação criminosa armada, abolição violenta do Estado Democrático de Direito, golpe de Estado, dano qualificado contra o patrimônio da União, e deterioração de patrimônio tombado, cujas penas podem superar os 30 anos de prisão, na hipótese de serem condenadas.
Ocorre que, ao menos para esses dois grupos, as centenas de denúncias são praticamente idênticas, nas quais se muda apenas o nome e os dados pessoais da pessoa acusada, para identificá-la. As denúncias do primeiro grupo, chamados de “incitadores”, possuem 12 páginas e narram que os acampados do QG contestavam a lisura das eleições, a soltura e candidatura do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), e que passaram a pedir ao Exército uma intervenção militar, para “a tomada dos Poderes Constituídos e a instalação de uma ditadura”.
Com base em reportagens, a denúncia mostra fotos da estrutura montada em Brasília em frente ao QG. Depois, diz que a pessoa “aderiu a essa associação, cujo desiderato era a prática de crimes contra o Estado Democrático de Direito”.
A PGR, no entanto, não diz o que a pessoa efetivamente fez: se, por exemplo, entrou em contato com militares para incentivar um golpe, ou se portou faixas ou entoou gritos de ordem em favor da intervenção. Com base em fotos, a denúncia registra que esse tipo de manifestação fazia parte do acampamento, e deduz que a pessoa atuou nesse sentido.
Denúncias rejeitadas no STF e no STJ
Um levantamento da reportagem da Gazeta do Povo sobre decisões recentes do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Superior Tribunal de Justiça (STJ) aponta, no entanto, a exigência de que, em acusações contra pessoas envolvidas em crimes coletivos, haja “um esforço de identificação da contribuição” de cada um para a abertura de uma ação penal. Caso contrário, a denúncia deve ser rejeitada.
A expressão foi utilizada pelo ministro Gilmar Mendes ao extinguir, em 2016, um processo criminal contra seis sócios de uma editora, acusados de crimes tributários, por prestarem declarações falsas à Receita para pagar menos impostos. Ao denunciá-los, o Ministério Público optou por acusar todos eles pelo fato de figuraram no contrato social como responsáveis pela gestão. Para Gilmar Mendes, não era suficiente. “Tenho por insuficiente a descrição das condutas dos denunciados, devendo a ação penal ser extinta, sem prejuízo de nova propositura, sanado o vício”, votou o ministro, no que foi seguido por outros três integrantes da Segunda Turma do STF: Ricardo Lewandowski, Dias Toffoli e Teori Zavascki.
A decisão marcou uma guinada em relação a decisões anteriores, relacionadas a crimes societários, que não exigiam, na fase de denúncia, uma descrição muito pormenorizada da conduta de cada um dos acusados. A jurisprudência admitia que isso fosse feito no curso da ação penal, fase seguinte, em que as partes apresentam mais provas e aprofundam o caso.
Depois disso, em agosto de 2021, a Segunda Turma do STF rejeitou uma denúncia contra Ciro Nogueira (PP), ex-ministro da Casa Civil na gestão do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), apresentada na Lava Jato, por falta de individualização da conduta. Junto com outros dois políticos do PP, o deputado Eduardo da Fonte e o ex-deputado Marcio Junqueira, ele era acusado de embaraçar investigação criminal que envolve organização criminosa. O grupo teria tentado subornar e até ameaçar de morte José Expedito, um ex-funcionário, para que desistisse de delatá-los em esquemas de corrupção.
Em seu voto, Gilmar Mendes afirmou que a PGR não descreveu, de forma satisfatória, as circunstâncias, a forma e os meios pelos quais Ciro Nogueira e o deputado federal Eduardo da Fonte, outro acusado, teriam participado desses atos, deixando ainda de indicar elementos de prova que apontariam a pressão deles sobre o ex-funcionário. “Essas tentativas de embaraço à justiça teriam ocorrido em encontros presenciais entre José Expedito e Marcio Junqueira”, destacou. “Não há nenhum elemento probatório que possa sugerir que Ciro Nogueira e Eduardo da Fonte tenham se encontrado ou mesmo se comunicado com a testemunha”.
José Expedito afirmou que recebeu pagamentos para obstruir as investigações contra os políticos. Mas, segundo Gilmar Mendes, não havia, na investigação e na denúncia, provas da entrega ou do recebimento desses valores. Ele foi seguido por Lewandowski e Nunes Marques. A denúncia foi arquivada.
Entendimento semelhante já havia sido firmado pelo STJ, ainda em 2017. Na época, a Corte Especial, formada pelos 15 ministros mais experientes, rejeitou de forma unânime denúncia contra o ex-governador do Amapá e atual ministro do Desenvolvimento Social, Waldez Góes. Ele era acusado de integrar um grupo, também formado por servidores e empresários, que teria fraudado licitação no estado. Ele foi denunciado por associação criminosa, peculato, frustração do caráter competitivo da licitação e prorrogação ilegal de contrato.
Relatora do caso, a ministra Nancy Andrighi considerou que os fatos narrados pelo Ministério Público não foram suficientemente delimitados para demonstrar, de forma individualizada, como o governador teria contribuído para a frustração da licitação. “A denúncia pode ser qualificada como genérica, pois prejudica a adequada representação dos supostos fatos criminosos e impede a compreensão da acusação que é imputa ao denunciado, causando, por consequência, prejuízo a seu direito de ampla defesa”, concluiu.
Casos de violência coletiva também exigem individualização
A jurisprudência firmada nos tribunais superiores também se reflete em casos envolvendo violência com grupos de pessoas. Em 2018, a Defensoria Pública do Rio de Janeiro contestou a prisão de 159 suspeitos de integrar a maior milícia do estado, detidos durante uma festa. Todos eram suspeitos de porte ilegal de arma e constituição de milícia privada.
“É muito porosa essa situação de que haveria ali um estado de flagrância. Até porque as armas não foram encontradas com ninguém específico. O que falta é a especificação pormenorizada dos detalhes e a individualização da conduta de cada um”, disse, à época, ao site Conjur o defensor público Ricardo André de Souza.
Na época, o governo do então presidente Michel Temer cogitava autorizar, durante a intervenção federal na segurança do Rio, a expedição de mandados coletivos de busca e apreensão ou prisão, sem identificar exatamente os alvos, mas regiões inteiras dominadas por facções, especialmente em favelas. A medida acabou descartada por pressão da comunidade jurídica, que apontava falta de individualização das condutas.
Em 2016, a Justiça soltou dois homens flagrados com fuzil, uma pistola e mais de 4 quilos de maconha, no Morro da Carioca, pelo mesmo motivo. Um dia após a prisão, durante audiência de custódia, a juíza do caso apontou que a conduta de cada um dos acusados não foi detalhada pela Polícia Civil no boletim de ocorrência. “Verifico frágil a regularidade do flagrante, tento em vista que as circunstâncias da prisão não se encontram claras, tampouco a individualização das condutas dos flagranteados, assistindo razão à defesa.”
Em setembro do mesmo ano, o Tribunal de Justiça de São Paulo anulou a condenação de 73 policiais militares pela morte de 111 detentos do presídio do Carandiru, em 1992. Os desembargadores entenderam não haver elementos capazes de demonstrar quais foram os crimes cometidos por cada um dos agentes.
O que diz um advogado de presos em 8 de janeiro
Para considerar uma denúncia genérica, o Judiciário se baseia no artigo 41 do Código de Processo Penal (CPP), segundo o qual a acusação deve conter “a exposição do fato criminoso, com todas as suas circunstâncias, a qualificação do acusado ou esclarecimentos pelos quais se possa identificá-lo, a classificação do crime e, quando necessário, o rol das testemunhas.”
Defensor de vários participantes do ato de 8 de janeiro, o advogado Calebe Ribeiro diz que, desde o início do caso, PGR, polícia e Judiciário têm falhado na descrição individual das condutas. “Se iniciou no auto de prisão em flagrante. O certo, pelo artigo 312 do CPP, seria que os presos fossem levados até a autoridade policial, o delegado, que iria tipificar a conduta, de acordo com o fato narrado pelos policiais”, diz.
Na noite do dia 8 de janeiro, no entanto, foi o ministro Alexandre de Moraes quem primeiro imputou diversos crimes aos participantes, incluindo o de terrorismo, já contestado pela PGR, por não abarcar atos com motivação política.
Calebe também contesta a tipificação dada - de forma geral - a quem estava acampado e de quem participou das invasões. “Só por estarem sentadas numa barraca, pacificamente, foram denunciadas. Pelo fato de estarem no QG, imputaram a elas o crime de incitação à animosidade das Forças Armadas contra as instituições, e associação para a prática de crime contra o Estado. A denúncia trata como se todas as pessoas estivessem uníssonas para um golpe de Estado. Está errado. Tinha gente querendo deposição violenta de Lula? Talvez, mas a maioria estava questionando a lisura das urnas, não satisfeitos com a transparência do processo. Algumas acreditavam que havia interpretação da Constituição, equivocada, para que as Forças Armadas interviessem para fazer uma recontagem dos votos”, diz o advogado.
Quanto aos invasores dos prédios dos Três Poderes, o defensor afirma que deveriam ser apenas denunciados por dano ao patrimônio público. Para ele, a acusação deveria dizer o que cada um quebrou dentro dos edifícios. “Tentativa de deposição do Estado de Direito sem armas? Eles atacaram as edificações, não as autoridades. Era uma demonstração de revolta, como outras que já haviam ocorrido, nas jornadas de junho de 2013, e na invasão do Congresso pelo MST, em 2006. Em nenhum desses casos, os participantes foram acusados de terrorismo ou golpe de Estado”, argumenta Calebe.
Contra esse tipo de crítica e para rebater os questionamentos, a PGR tem sustentado que cumpre, sim, com o requisito da individualização. Faz isso ao separar os denunciados em grupos: os de incitadores (acampados no QG) e os de invasores (que depredaram os prédios).
“Embora, pela peculiaridade do caso, as denúncias contenham trechos semelhantes - o que é natural, uma vez que versam sobre o mesmo fato (atos de 8 de janeiro) -, as petições narram os diversos comportamentos apurados nos ataques às sedes dos Três Poderes, de modo a permitir que todos os denunciados possam se defender de forma adequada e conforme a legislação, o que será feito no curso da ação penal, se recebida a denúncia pelo Judiciário”, disse o órgão, em nota publicada em seu site oficial.
No último dia 9, o ministro Alexandre de Moraes, relator do caso, declarou que, para ele, há individualização das condutas. “O STF está analisando de forma detalhada e individualizada para que, rapidamente, aqueles que praticaram crime sejam responsabilizados nos termos da lei. Quem praticou crime mais leve terá sanção mais leve, quem praticou crime mais grave terá sanção mais grave”, afirmou.
Ainda não se sabe, ao certo, se o próprio STF vai analisar as denúncias, como e quando. Pelo regimento da Casa, essa decisão – que permite a abertura de uma ação penal – é tomada pelo plenário, formado pelos 11 ministros. O texto da regra, no entanto, diz que ela vale para autoridades com foro privilegiado, que não é o caso dos acampados e invasores. Dentro do STF, há sugestões para que, encerradas as denúncias, tudo seja enviado para a primeira instância, onde juízes comuns passariam a tocar os processos.