A pressão internacional sobre pautas legislativas e ações do governo brasileiro têm se intensificado. O mais recente episódio se deu pela votação do projeto de lei que prevê o estabelecimento do marco temporal para a demarcação de terras indígenas no Brasil. Deputados de países como Alemanha e Holanda se manifestaram em cartas ao Senado Federal após a aprovação do projeto na Câmara dos Deputados. Endereçadas ao presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), as mensagens expressam “preocupação” com a possibilidade de aprovação da medida na Câmara Alta do Poder Legislativo Federal.
A Gazeta do Povo teve acesso à carta dos parlamentares do país europeu direcionada ao Senado em 6 de junho. Nela, nove deputados do Parlamento alemão reforçam a parceria e o interesse na cooperação entre os países. “Estamos altamente empenhados em apoiar e assumir a responsabilidade pelo alcance de nossas metas comuns de proteção ambiental e climática, e aprofundar e fazer cumprir as metas de direitos humanos e indígenas”, diz a carta dos alemães.
Na carta, eles também manifestam “preocupações com impactos ambientais e direitos indígenas de votos e decisões atuais”. No texto, os deputados destacam a cooperação internacional e as parcerias estabelecidas entre o Brasil e a Alemanha, e reforçam seu compromisso com metas de “proteção ambiental e climática”, além de “aprofundar e fazer cumprir as metas de direitos humanos e indígenas”.
Outro ponto destacado na mensagem é o apoio da Alemanha ao combate ao desmatamento. “Sabemos da importância global da preservação do meio ambiente no Brasil”, afirmam os parlamentares. A Alemanha, por meio do banco KfW, é a segunda maior doadora de recursos ao Fundo Amazônia, já tendo aportado anteriormente 54,9 milhões de euros. No início do terceiro governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), o país anunciou mais uma captação, a terceira doação do banco alemão. De acordo com o BNDES, banco gestor do Fundo, com esse apoio de mais 35 milhões de euros (R$ 194 milhões), o país europeu totalizará cerca de 90 milhões de euros ao Fundo Amazônia.
Além deles, outra deputada alemã que se manifestou sobre o marco temporal foi Anna Cavazzini, vice-presidente da delegação para relações com o Brasil do Parlamento Europeu. Junto de duas das deputadas que assinaram a carta endereçada a Pacheco, Kathrin Henneberger e Deborah Düring, ela gravou um vídeo divulgado em 7 de junho, dia da retomada do julgamento do marco temporal pelo STF.
No vídeo com legendas em alemão e português, as deputadas reforçaram seu posicionamento contra o marco temporal. “Seja no Bundestag [Parlamento Alemão] ou no Parlamento da UE [União Europeia], estamos comprometidos em preservar os direitos à terra dos povos indígenas e lutar contra o desmatamento destrutivo da Amazônia. Façamos um apelo a todos os decisores: Parem com este projeto!”, dizem elas nas publicações.
Recentemente, a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, também anunciou a intenção de doar 20 milhões de euros para o Fundo Amazônia. O montante representa pouco mais de R$ 100 milhões.
Em entrevista à Folha de S. Paulo, a presidente da Comissão Europeia também relacionou os indígenas à preservação do meio ambiente. "Só posso encorajar todos os atores institucionais no Brasil a trabalharem juntos para proteger a Amazônia, bem como as comunidades indígenas que vivem lá", que "desempenham papel central na preservação e no uso sustentável da floresta e no desenvolvimento do potencial de superpotência verde do Brasil", disse von der Leyen.
Senadores se posicionam sobre interferência de órgãos internacionais no marco temporal
O projeto de lei do marco temporal chegou ao Senado após a aprovação na Câmara dos Deputados, em 1º de junho. Diante da pressão internacional e de parlamentares contrários à proposta, no entanto, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, sinalizou que a tramitação seguirá o rito normal, com “cautela e prudência”. Ou seja, o texto passará pelas comissões antes de ser votado no plenário.
Desde então, os senadores de oposição conseguiram se mobilizar para apresentar um requerimento de urgência, visando a votação mais rápida do projeto. No entanto, não há, até o momento, previsão de votação desse requerimento.
Para o senador Plínio Valério (PSDB-AM), presidente da CPI das ONGs, as cartas de deputados europeus são um “desrespeito total”. "Mostra a prepotência dessa gente que continua insistindo e querendo nos tratar como colônia. Por isso que a gente está pregando que a nossa luta é contra a nação colônia. Eles jamais fariam isso com o Parlamento Europeu. Essa pressão é vergonhosa, é desrespeitosa”.
Além disso, Valério acredita que acatar as intenções dos parlamentares europeus seria vergonhoso para o Senado. “Se depender do meu protesto, ele não vai ceder à pressão. A gente tem que protestar contra isso, dizer que está errado e que a gente não aceita. Daí a necessidade urgente da nossa CPI das ONGs, porque nós vamos mostrar que eles fazem isso já no meio do mato”, disse o senador amazonense.
Embora Pacheco tenha despachado o projeto do marco temporal para análise de duas comissões do Senado, a de Agricultura e Reforma Agrária (CRA) e de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ), há senadores que querem que a matéria seja analisada por mais comissões. É o caso do senador Fabiano Contarato (PT-ES). O petista apresentou requerimento para que a proposição tramite também na Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa (CDH) e na Comissão de Meio Ambiente (CMA).
Contarato, ao contrário de Valério, concorda com os parlamentares europeus e reforça os argumentos apresentados por eles. “O que as ONGs e os líderes europeus têm falado é o que venho afirmando desde o início do debate e do andamento do projeto de lei do marco temporal: a proposta é uma tentativa de aniquilar os povos indígenas. Muito mais do que a retirada de direitos legítimos, é um ataque aos povos originários, historicamente violentados e expulsos de suas terras”, disse o senador capixaba. O petista destaca ainda a importância de "dar respostas ao mundo" sobre o projeto do marco temporal. “Ao dizer não ao marco temporal, o Brasil demonstrará ao mundo que deixou de retroceder e violentar os povos que são a origem da nossa história”, afirmou.
STF analisa marco temporal
Em paralelo à tramitação no Congresso, o Supremo Tribunal Federal (STF) deve voltar a julgar em breve o recurso extraordinário com repercussão geral - efeito sobre demais casos semelhantes - sobre o marco temporal, e também tem sido destinatário de cartas e documentos de órgãos internacionais que sugerem direcionamentos para o julgamento.
De acordo com a tese do marco temporal, ficará garantida aos indígenas a posse da terra em que estavam na data da promulgação da Constituição Federal de 1988, seguindo o que diz o artigo 231 da Carta Magna. Em contrapartida, eles não terão direito às terras que ocuparam ou invadiram depois de 5 de outubro de 1988.
O STF havia ratificado essa interpretação em 2009, no julgamento sobre a demarcação da reserva Raposa Serra do Sol. Naquela oportunidade, a Corte decidiu em favor dos indígenas e contra arrozeiros que chegaram à região nos anos 90 – depois da promulgação da Constituição. Naquele julgamento, o entendimento que prevaleceu foi o de que a data de 5 de outubro de 1988 era crucial para a definição da posse da terra.
Em 7 de junho, o ministro André Mendonça pediu vista - mais tempo para análise - e suspendeu o julgamento no STF. O placar está em: 2 votos contra o marco temporal e 1 a favor. Mendonça tem 90 dias para analisar o tema, após esse período o caso volta automaticamente para a pauta da Corte.
Atores ativistas somam-se ao coro contra o projeto
Os atores norte-americanos Leonardo Di Caprio e Mark Ruffalo também têm feito pressão contra o marco temporal em suas redes sociais. Utilizando de seu alcance internacional, ambos têm alfinetado o Congresso Nacional e feito pedidos para que seus seguidores apoiem campanhas contra a votação do projeto sobre demarcação de terras indígenas.
Di Caprio recentemente posou para fotos com a deputada Célia Xakriabá (PSOL-MG) e a ministra dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara, às quais havia declarado apoio na luta pela preservação dos territórios e da cultura dos povos indígenas no Brasil. Em uma de suas postagens, o ator disse que o projeto do marco temporal, se aprovado, será “catastrófico para a Amazônia, os povos indígenas que vivem lá e nosso planeta”.
Ele divulgou uma petição do Avazz contra a votação e a consulta pública do Senado sobre o projeto de lei, que tem, até o momento, aproximadamente 17 mil votos. A maioria deles, cerca de 16 mil se posicionando como o ator sugere: contra o marco temporal.
Mark Ruffalo também divulgou o endereço da petição do Avazz em suas redes sociais. Ele usou a hashtag #nomarcotemporal e marcou Sonia Guajajara, Célia Xakriabá, e a primeira-dama, Janja da Silva, entre outras personalidades brasileiras. Ruffalo ainda republicou conteúdo da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) com imagens de manifestações contra o marco temporal.
Deputada do PSOL busca apoio internacional contra marco temporal
A ativista e deputada indígena Célia Xakriabá (PSOL-MG) lidera também a petição, divulgada por Di Caprio e Rufallo, que está recolhendo assinaturas contra o marco temporal. A campanha já tem 713 mil assinaturas. É possível observar apoios de pessoas da Holanda, do México, dos Estados Unidos, da Venezuela e da Alemanha, por exemplo. Na apresentação da campanha, Xakriabá faz um apelo a brasileiros e “pessoas de todo o mundo para parar esta lei [do marco temporal]”. “...Nosso Congresso começou a votar um projeto de lei que permitirá que os garimpeiros e madeireiros ilegais invadam nossas florestas e terras sagradas, removendo os direitos dos povos Indígenas, como eu”, escreveu a deputada.
Em maio, durante um seminário promovido pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Célia Xakriabá disse que a demarcação de territórios indígenas é considerada pela Organização das Nações Unidas (ONU) a principal alternativa para barrar a crise climática. “Negociar nosso território seria o mesmo que negociar nossas vidas. A defesa da terra e da vida não é somente uma pauta progressista, mas também humanitária. É um bem prestado à humanidade. Quem tem território tem lugar para onde voltar. E tem mãe, tem colo, tem cura”, argumentou a deputada indígena.
Célia Xakriabá foi eleita para o seu primeiro mandato nas eleições de 2022 e é a primeira deputada indígena de Minas Gerais. Em pouco mais de quatro meses de mandato, ela tem se dedicado, em especial, à defesa da demarcação de terras indígenas. Ela é a presidente da Frente Parlamentar Mista em Defesa dos Povos Indígenas, grupo que reúne 203 deputados e senadores interessados em defender as pautas de interesse dos povos originários no Congresso Nacional. Além disso, ela é a presidente da recém-criada Comissão da Amazônia e dos Povos Originários e Tradicionais.
CIDH também faz pressão pelo fim da tese jurídica sobre o tema
Em maio de 2023, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) expressou sua preocupação com a tese jurídica "marco temporal" que, de acordo com a análise de seus membros, “coloca em risco os direitos dos povos indígenas”. A CIDH é o órgão principal e autônomo da Organização dos Estados Americanos (OEA), criado em 1959.
De acordo com nota divulgada pela CIDH, a aplicação do marco temporal para demarcação de terras indígenas “contrariaria disposições da Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH) e da Declaração Americana sobre os Direitos dos Povos Indígenas”.
A nota cita ainda os projetos de lei que tramitam no Congresso Nacional. “Da mesma forma, urge o Estado a abster-se de avançar com projetos de lei e interpretações legais que possam gerar riscos para os povos indígenas e tribais, incluindo o Projeto de Lei 490/2007 e outros”, aponta o documento.
"O marco temporal é necessário para garantir segurança jurídica e direitos iguais", diz presidente da FPA
Já o presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), deputado federal Pedro Lupion (PP-PR), tem se manifestado a favor da aprovação do projeto sobre o marco temporal no Congresso e da validação da tese no julgamento no STF.
"A FPA, grupo de lidero no Congresso Nacional, defende a tese do fato indígena, ou seja, aquelas terras que foram mantidas pelos índios e na qual eles estavam vivendo com suas culturas e seus costumes no dia 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal, tem direito sobre a área para demarcação. Não somos contrários aos direitos indígenas, somos favoráveis aos direitos iguais e à segurança jurídica", afirmou o parlamentar em sua coluna na Gazeta do Povo.
Anteriormente, a FPA já havia reforçado o seu posicionamento de que, se o texto for aprovado no Congresso, vai reafirmar a tese do marco temporal previsto na Constituição e o entendimento do STF com relação às 19 condicionantes para demarcação de terras indígenas. Além disso, para a entidade, dará mais transparência ao processo demarcatório.
Cooperação entre Brasil e Alemanha mira proteção de terras indígenas
Um projeto de cooperação técnica entre o Brasil e a Alemanha foi tema de reunião entre a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e a empresa alemã de consultoria GOPA. A reunião, realizada em fevereiro, contou com a presença da presidente da fundação, Joenia Wapichana. Em matéria publicada no site oficial da Funai, o órgão afirmou que o projeto tem como um de seus principais objetivos “promover a proteção e gestão sustentável de terras indígenas selecionadas na Amazônia”.
A cooperação entre Brasil e Alemanha foi questionada pela deputada federal Caroline De Toni (PL-SC) por meio de um requerimento de informação protocolado em abril. Já em maio, a cooperação também esteve entre os questionamentos feitos à ministra dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara, durante audiência pública da Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC). “Afinal de contas, por que a Alemanha vai proteger melhor as terras indígenas do que o próprio Brasil? O que a Alemanha ganha com isso? Qual é o interesse deles nas nossas terras indígenas?”, perguntou Caroline De Toni à ministra.
Em resposta, Sonia Guajajara disse apenas se tratar de um projeto de cooperação antigo, parado na gestão anterior e que estava sendo retomado. A presidente da Funai também participava da audiência e pontuou que a “legislação brasileira permite termos de cooperação”. “O termo de cooperação com o KfW [banco de desenvolvimento alemão, Kreditanstalt für Wiederaufbau - Instituto de Crédito para Reconstrução, em tradução literal], já existe desde 2009, mas, desde 2017, está paralisado”. Os detalhes sobre o projeto não foram abordados.
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