Ouça este conteúdo
A tensão entre o Congresso e o Planalto aumentou na última semana com o novo capítulo envolvendo a disputa em torno da desoneração da folha de pagamento de 17 setores e de municípios. O episódio também serve de teste para a parceria entre o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), um apoiador do governo. Pacheco reagiu rapidamente contra a decisão do Planalto de levar à Justiça na última quinta-feira (25) o impasse sobre o fim ou a continuidade do benefício, o que provocou uma série de ásperas acusações trocadas nos últimos dias em entrevistas e comunicados.
Enquanto o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, exige compromisso do Congresso com a estabilidade fiscal, na forma de apoio à sua busca por mais fontes de receita, Pacheco exige do governo respeito às prerrogativas parlamentares e desafia a política econômica a ajustar suas contas pelo lado da despesa. O resultado desse choque é imprevisível, dado o envolvimento na questão do Supremo Tribunal Federal (STF), que opera em sintonia com o governo e também negocia decisões politicamente, além dos interesses eleitorais tanto do Legislativo quanto do Executivo.
A liminar concedida pelo ex-advogado de Lula e atual ministro do STF, Cristiano Zanin, suspendendo efeitos da prorrogação da desoneração, cujo impacto é estimado em torno de R$ 9 bilhões pelo Congresso e em até R$ 15 bilhões pelo governo, está a apenas um voto de ser confirmada pelo plenário da Corte, após ter sido referendada por mais quatro juízes. A decisão está, contudo, suspensa diante do pedido de vista feito por até 90 dias pelo ministro Luiz Fux. O Senado recorreu na sexta-feira (26) ao STF e poderá também adotar novas medidas de natureza política após uma reunião de líderes que Pacheco quer realizar em breve.
Com a decisão de Fux de solicitar mais tempo para análise da liminar de Zanin, o processo de julgamento da ação do governo para acabar com a desoneração da folha é temporariamente suspenso. No entanto, alertam especialistas, a decisão provisória segue em vigor. Na prática, as empresas que empregam 9 milhões de pessoas já são obrigadas a retornar imediatamente ao cumprimento das normas do regime tributário padrão. A liminar tem efeito desde abril, o que implica que os pagamentos a serem realizados em maio devem tomar a folha como base de cálculo.
Nesta semana, o Senado pode avaliar duas matérias de interesse do governo. Aprovado pela Câmara na terça-feira (23), o projeto de lei que recria o Programa Emergencial de Retomada do Setor de Eventos (Perse) pode ser votado diretamente no plenário da Casa Alta nesta terça-feira (30). Este era um pedido de Haddad a Pacheco, que pode agora sofrer resistência. Outro projeto na pauta vindo da Câmara e ansiado pelo Planalto é o que recria o seguro para acidentes para veículos terrestres, o Dpvat.
Posturas divergentes sobre equilíbrio fiscal
Pacheco encontra-se em uma encruzilhada entre os interesses do Legislativo, nos quais se incluem os seus próprios, e as demandas do governo, sobretudo na área fiscal. Após contribuir para mais um adiamento da sessão do Congresso, em favor de Lula, o presidente do Senado se viu surpreendido por uma nova reação do presidente da República envolvendo a desoneração da folha.
Apelar ao STF era o último recurso que Lula tinha para barrar a prorrogação do benefício até 2027. A proposta tinha sido aprovada em duas votações nas Casas legislativas e, quando Lula a vetou, os parlamentares derrubaram o veto presidencial. O governo ainda editou uma medida provisória para reonerar a folha de pagamento, mas após um período marcado por duras e infrutíferas negociações de bastidores, Pacheco deixou caducar, no começo de abril, o trecho da MP referente aos municípios, que passava de 8% para 20% a alíquota de imposto sobre a folha de pagamento dos funcionários públicos.
A queda de braço que se estende há meses ganha contornos de crise institucional, pois contraria algo que tem apoio absoluto do Congresso e encontra o governo irredutível em angariar novas receitas. O vai e vem de decisões entre Legislativo e Executivo sobre o assunto alimenta não apenas a insegurança jurídica, mas ainda agrava as já complicadas relações entre governo e parlamentares, concentrada na Câmara e que agora ganha contornos difíceis no Senado.
Impacto eleitoral motiva a oposição de Pacheco
Segundo analistas ouvidos pela Gazeta do Povo, Pacheco busca preservar benefícios que influenciam diretamente nas eleições municipais, essenciais para a sua base eleitoral em Minas Gerais, além de atender a interesses de diversos setores econômicos do país, influentes no conjunto do Congresso.
Por outro lado, o governo está cada vez mais preocupado com o desempenho das contas públicas e busca fontes adicionais de receita, além de tentar estancar perdas adicionais com desonerações. O próprio Pacheco é um dos que querem adicionar despesas pesadas ao Tesouro, na forma da emenda constitucional que cria quinquênios para juízes, “pauta bomba” que deverá ser contida pela Câmara.
O Judiciário, agora envolvido na questão, enfrenta, por sua vez, crescentes pressões do Congresso, que avalia projetos patrocinados por Pacheco no Senado para limitar os poderes de seus ministros e tenta derrubar decisões do STF alinhadas ao governo.
Até mesmo o risco da instalação de uma CPI para investigar abusos de ministros de Cortes superiores foi posto sobre a mesa da Câmara. Como pano de fundo estão as eleições municipais e o impacto sobre os setores mais empregadores do país, ameaçando onda de demissões e reajustes de preços.
Governo terá de reforçar diálogo com Legislativo
Para o cientista político Leonardo Gabiati, diretor da Dominium Consultoria, o mais novo atrito entre Executivo e Congresso trará problemas no relacionamento entre os poderes. Mas ele descarta que a situação leve à ruptura. “Não há uma aliança de fato entre Pacheco e governo. Há convergências de interesses e, por isso, há diálogo. O presidente do Senado conversa mais com o Planalto e mostra-se mais disposto a negociar do que o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL)”, explicou.
Gabiati avalia que Pacheco defende os próprios interesses e os da Casa que preside dentro de uma composição de senadores favorável à negociação com o governo. “São vínculos melhores que os da Câmara, mas que tendem a ficar mais complexos após a postura evidentemente crítica de Lula ao decidir judicializar algo que tem consenso muito amplo no Congresso”, disse.
O especialista ressalta que a via judicial não é politicamente ideal, mas institucionalmente possível, então é parte do jogo. “Por isso não a considero inabilidade do governo, mas sinal grave de divergência com o Congresso na questão fiscal, exigindo ainda mais diálogo”.
Enquanto isso, Lula segue com problemas na articulação política e teme ser derrotado novamente numa sessão do Congresso, que vem sendo adiada desde o começo do ano legislativo e que agora está prevista para a próxima semana. O petista pode ver derrubado o veto de R$ 5,6 bilhões para emendas parlamentares de comissão no Orçamento deste ano.
A contradição entre governo de esquerda e Legislativo de maioria conservadora produz fatos que reforçam a tese do semipresidencialismo. E a aposta do presidente da República numa aliança entre Executivo e STF para domar o Congresso só amplia esse desgaste. Se a cada derrota em votações apelar à inconstitucionalidade das decisões dos parlamentares, o Legislativo pode evocar a palavra final que tem sobre a continuidade no cargo dos chefes de governo e de ministros de tribunais superiores.
O futuro político de Pacheco está em jogo
De acordo com o cientista político André Rosa, professor de Ciência Política na UDF, a ascensão meteórica de Pacheco na política indica sua habilidade como articulador nos bastidores, o que ficou mais evidente quando ocupou os cargos de presidente da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara, como deputado de primeiro mandato, e, depois, de presidente do Senado, também como estreante.
Ele chegou a ser cogitado para disputar a presidência da República, sem que o padrinho da ideia, Gilberto Kassab, presidente do PSD, tivesse conseguido levá-la adiante com um quadro nacional ainda muito polarizado.
“Agora, especula-se que este habilidoso articulador, conhecido por seu tom diplomático e moderado, possa ser o candidato ao governo de Minas Gerais com apoio do Planalto, desafiando o indicado de Romeu Zema (Novo) para assumir o comando do segundo maior colégio eleitoral do país”, destacou.
As disputas ainda estão longe de ocorrer e serão reavaliadas com base em um cenário mais claro para 2026. “Esse contexto dependerá da situação econômica e da popularidade do governo atual, fatores essenciais para possível mudança de curso”, sublinhou.
Na construção de um palanque comum em Minas Gerais para Lula e Pacheco em 2026, o presidente do Senado, o presidente da República e o ministro Haddad se juntaram para pressionar Zema a acatar termos de uma renegociação da pesada dívida do estado com a União, explorando dividendos políticos desse impasse.
Rosa entende que Pacheco, como ainda jovem político, de 47 anos, tem potencial para alçar voos mais altos. Mas isso depende essencialmente da manutenção de sua base de apoio, mais ligada à centro-direita e muito abalada por suas posições que desagradam o eleitorado e os grupos políticos mais ligados ao governo anterior, de Jair Bolsonaro (PL). “Se não viabilizar essa pré-condição, ele corre o risco de virar mais uma promessa política perdida, a exemplo do ex-governador paulista João Doria (PSDB)”, finalizou.