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Em pouco mais de 10 meses no Supremo Tribunal Federal (STF), Flávio Dino hoje é visto, em Brasília, como o ministro que mais ajudou o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva na Corte. O principal motivo foi o conjunto de decisões que travou, desde o meio do ano, o pagamento de emendas parlamentares, verbas que deputados e senadores têm direito de direcionar no Orçamento da União e que, nos últimos anos, passaram a ser manejadas pelo Legislativo de forma praticamente independente do Executivo.
Além disso, Dino também tornou-se peça-chave para socorrer o governo Lula no momento em que incêndios se alastraram pelo país. Em setembro, num tipo de decisão inédita por parte do STF, ele autorizou Lula a abrir crédito extraordinário, para "fazer frente à grave ‘pandemia’ de incêndios e secas na Amazônia e no Pantanal”.
Além de direcionar mais recursos do que havia disponível no caixa do governo, a decisão permitiu que o gasto fosse feito fora do limite do arcabouço fiscal, o que é possível em casos de guerra, comoção interna ou calamidade pública.
Nesses dois casos, Dino transformou as ações – apresentadas por partidos de esquerda, que apoiam a gestão petista – em “processos estruturais”. Trata-se de um modelo, atualmente usado de forma recorrente no STF, no qual uma política pública pode ser controlada pela Corte para atingir determinado objetivo que realize um princípio ou direito constitucional. Assim, autores ou partes do caso podem fazer sucessivos pedidos ao ministro para solucionar um problema complexo.
Dino chegou ao STF após se notabilizar como um dos principais ministros de Lula. Como titular do Ministério da Justiça e da Segurança Pública, ele se destacou pela defesa, no Congresso, dos decretos que dificultaram o acesso às armas e da pressão pela aprovação de uma regulamentação mais rigorosa das redes sociais.
Em algumas decisões, Dino passou recados para o Congresso, onde o governo enfrenta crescentes dificuldades para aprovar sua agenda. No início de dezembro, no STF, quando impôs uma série de condições de transparência para destravar a liberação das emendas parlamentares, fez duras críticas ao Legislativo em razão das manobras criadas nos últimos anos para ocultar, por meio do chamado “orçamento secreto”, a autoria de emendas parlamentares e o destino dado aos recursos.
“É de clareza solar que JAMAIS HOUVE TAMANHO DESARRANJO INSTITUCIONAL COM TANTO DINHEIRO PÚBLICO, EM TÃO POUCOS ANOS. Com efeito, somadas as emendas parlamentares entre 2019 e 2024, chegamos ao montante pago de R$ 186,3 bilhões", escreveu Dino (o trecho em caixa alta é a da própria decisão). "Certamente, nenhuma despesa no Brasil teve similar trajetória em desfavor da responsabilidade fiscal. Acredito até que a citada trajetória não encontra paralelo na história econômica internacional”, complementou depois.
No último dia 23, ao suspender R$ 4,2 bilhões em emendas indicadas por líderes no lugar das comissões - nova manobra capitaneada pelo presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), para ocultar os deputados que direcionaram os recursos para suas bases eleitorais -, ele mandou a Polícia Federal abrir inquérito para identificar os "padrinhos" das verbas.
Neste domingo (29), após manifestações de Lira e da Câmara de que o governo avalizou a manobra, ele liberou parte das emendas (aquelas que, antes da suspensão, já haviam sido empenhadas, ou seja, reservadas pelo Executivo).
Dino rotula reclamações do Congresso de "democracia do piti"
As sucessivas suspensões e liberações parciais das emendas, ao longo do semestre, revoltaram a cúpula do Congresso, que passou a ameaçar rejeitar o pacote fiscal da equipe econômica, em momento de intensa desconfiança do mercado em relação ao compromisso do governo com o equilíbrio das contas públicas.
Neste mês, em nome do governo, a Advocacia-Geral da União (AGU) pediu a Dino a flexibilização das condições, mas ele negou. Ainda assim, o governo editou uma portaria para liberar mais emendas. Em evento em Brasília, Dino reclamou das queixas do Legislativo. “Como é que um Poder fica dando escândalo toda vez que o outro decide?”, reagiu Dino. “Já tinha visto democracia social, democracia liberal, mas 'democracia do piti' nunca tinha visto.”
No Congresso, a leitura do Centrão é de que Dino joga a favor do governo, interessado em retomar o controle da liberação das emendas, uma tradicional moeda para obter votos no Legislativo. Essa visão é reforçada pela sequência de decisões de Dino que, na prática, dosaram a liberação das emendas, de forma semelhante ao que o Executivo fazia anos atrás para angariar apoio político no Legislativo.
Consultado pela reportagem, o ministro não respondeu sobre essas críticas.
Entre 11 e 20 de dezembro, o governo liberou R$ 7,9 bilhões em emendas para aprovar as propostas de contenção de gastos. Depois da aprovação, porém, quando o Congresso já estava em recesso, Dino paralisou o pagamento de R$ 4,2 bilhões em emendas de comissão e ainda mandou a Polícia Federal investigar a indicação dos recursos.
O governo anunciou que não recorreria, o que aumentou ainda mais a desconfiança de lideranças do Congresso de uma jogada conjunta do ministro com o Executivo. Lira, porém, lembrou ao ministro do STF que a Secretaria de Assuntos Jurídicos (SAJ) do governo Lula deu aval a um ofício assinado por 17 líderes da Câmara que pedia a liberação dos R$ 4,2 bilhões em emendas. Mas Dino não cedeu: manteve a suspensão e exigiu respostas de Lira.
Em resposta ao ministro, a advocacia da Câmara informou que as indicações foram feitas pelos líderes por orientação do próprio governo, a quem cabe decidir se executa ou não as emendas. O advogado Jules Michelet Pereira Queiroz e Silva disse ainda que pareceres e portarias da Presidência e da Advocacia-Geral da União que, no entendimento da Câmara, viabilizavam essa forma de indicação.
Na decisão deste domingo sobre o tema, Dino manteve o tom duro em relação ao Congresso. "Não há amparo jurídico, nem justificativa lógica, para que um ato nobre fique escondido pela opacidade do que se convencionou chamar de “Orçamento Secreto”. Salvo a insuportável hipótese de perpetração de desvio de finalidade conducente à má utilização de recursos públicos, por exemplo visando exclusivamente benefícios patrimoniais privados", escreveu Dino na decisão.
A perspectiva é de que a queda de braço entre Congresso e STF escale em 2025, com potencial de impactar na governabilidade de Lula.
Combate aos incêndios na Amazônia e no Pantanal
Na área ambiental, Dino substituiu André Mendonça na relatoria de uma ação apresentada em 2020 para forçar o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) a investir mais no combate aos incêndios na Amazônia e no Pantanal.
O problema cresceu no governo Lula e Dino passou a convocar representantes da União e dos estados para entender o que se passava. Em setembro, diversos secretários estaduais reclamaram de falta de apoio federal e relataram a atuação de organizações criminosas que usam as queimadas para apossar-se de terras.
Verificou-se, por exemplo, que só no Amazonas, aproximadamente 70% dos focos de calor estavam concentrados em áreas federais, de responsabilidade do governo federal. O dado chamou a atenção de Dino, que mandou a AGU se manifestar sobre o problema. O ministro também cobrou várias outras informações sobre a atuação do governo federal no combate às queimadas, a partir de queixas dos estados sobre a falta de apoio.
Alinhamento à agenda ideológica do governo
Fora das políticas públicas, Dino também demonstrou alinhamento à agenda ideológica do governo Lula. No final de outubro, ele atendeu a pedido do Ministério Público Federal (MPF) e mandou destruir quatro livros jurídicos com teor ofensivo a homossexuais. Além de retirar as obras de circulação, impôs indenização de R$ 150 mil aos autores por danos morais coletivos.
“As publicações [...] desbordam do exercício legítimo dos direitos à liberdade de expressão e de livre manifestação do pensamento, configurando tratamento degradante, capaz de abalar a honra e a imagem de grupos minoritários (comunidade LGBTQIAPN+) e de mulheres na sociedade brasileira, de modo a impor a necessária responsabilização dos recorridos”, escreveu.
Na área criminal, Dino tornou-se relator, por sorteio, de um inquérito contra o deputado federal Marcel van Hattem (Novo-RS), investigado pela Polícia Federal por acusar, na tribuna da Câmara, o delegado Fabio Shor de abuso de autoridade nas investigações contra Filipe Martins, ex-assessor do ex-presidente Jair Bolsonaro. O caso corre sob segredo de Justiça.