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Mais do que imputar ao governo uma suposta omissão na segurança da Praça dos Três Poderes, a Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) do 8 de janeiro poderá servir para esvaziar a acusação de que os manifestantes tentavam efetivamente dar um golpe de Estado. Esse é o plano de boa parte dos representantes da oposição que integram o colegiado. Se tiverem sucesso em influenciar o julgamento final, a ser feito no Supremo Tribunal Federal (STF), poderão reduzir significativamente a pena dos réus em caso de condenação.
Para isso, deputados e senadores da direita querem dar voz a testemunhos de detidos, seja diretamente ou por meio de seus advogados, visitar as prisões e colher elementos que possam individualizar de forma mais minuciosa a conduta de parte dos manifestantes, de modo que sejam enquadrados de maneira mais exata nos crimes apontados ou mesmo inocentados.
Um dos grandes problemas observados na denúncia apresentada pela Procuradoria-Geral da República (PGR) é a falta de uma descrição pormenorizada do que fez cada um dos investigados. A peça acusatória é basicamente a mesma para as centenas de acusados: o órgão narra o que aconteceu em 8 de janeiro e caracteriza a manifestação que ocorria em frente ao Quartel General do Exército, em Brasília, como uma tentativa de incitar as Forças Armadas a destituir do poder o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
Uma investigação mais detalhada e aberta pela CPMI poderá subsidiar a defesa dos réus, inclusive para identificar os reais agentes que praticaram ou induziram atos extremos de depredação. O objetivo final é sensibilizar a opinião pública para eventuais injustiças nos processos que tramitam contra eles sob a condução do ministro Alexandre de Moraes.
Defensores ouvidos pela reportagem consideram que o trabalho da comissão poderá ser útil no curso da ação penal no STF. É dentro dela que as partes poderão agora juntar novas provas, aprofundar o entendimento do que ocorreu até o julgamento final, que será feito pelos 11 ministros da Corte, para condenar, definir penas e absolver eventuais inocentes.
"Separar o joio do trigo"
Utilizando a frase “a busca da verdade” como tema central de suas intervenções, os congressistas da oposição estão combinando os seus discursos e as suas ações no colegiado para alcançar objetivos, cientes da resistência que estão enfrentando da maioria dos 32 integrantes, que é alinhada ao governo. Neste sentido, já apresentaram dezenas de requerimentos com foco na chamada “separação do joio (vândalos) do trigo (manifestantes)”.
Os parlamentares deixarão claro que os defensores legais dos acusados estarão na linha de frente da argumentação para individualizar as diferentes culpas imputadas. Dos 1.176 denunciados até agora, 227 respondem por associação criminosa, abolição violenta do Estado democrático de direito, golpe de Estado e dano qualificado contra o patrimônio público.
Se forem condenados por todos esses crimes, essas pessoas podem pegar penas que somam até 26 anos de reclusão. Se forem retirados os crimes contra o Estado Democrático de Direito, as punições poderiam ser reduzidas em 20 anos. A pena restante, que poderia variar de 3 a 6 anos, dependendo do enquadramento, poderia com isso ser cumprida no regime aberto ou semiaberto (no qual o preso pode trabalhar fora durante o dia e só dormir na penitenciária).
Segundo coordenadores de equipes de assessores ouvidos pela Gazeta do Povo, os gabinetes dos parlamentares da oposição têm prestado assistência integral a detentos desde janeiro. Esse apoio inclui visitas, encaminhamento de queixas às autoridades judiciais, solicitação de audiências, tentativas de contato com advogados, apoio espiritual e até mesmo auxílio no transporte para outros locais após a soltura.
A senadora Damares Alves (Republicanos-DF) tem concentrado seus esforços na CPMI em prestar assistência aos detentos, especialmente mulheres, crianças e suas famílias. Ela apela para a sensibilidade das demais parlamentares mulheres da comissão, em especial a relatora Eliziane Gama (PSD-MA), para realizar visitas à carceragem feminina Colmeia em Brasília, ouvir relatos e permitir que seus advogados atuem. “Por respeito aos direitos humanos e solidariedade às pessoas que tiveram suas prerrogativas violadas, buscarei na CPMI os meios para esclarecer todos os fatos e evitar injustiças”, disse.
O senador Magno Malta (PL-ES), segundo vice-presidente da CPMI, também tem focado seus discursos na denúncia de arbitrariedades judiciais e no abandono de milhares de manifestantes, incluindo idosos e pessoas com comorbidades. Ele rejeita a ideia de rotular essas pessoas como golpistas ou terroristas.
“Estamos em busca da verdade. Vamos retirar dezenas de pessoas do 'SPC do crime'. Há pessoas usando tornozeleira eletrônica que sequer estavam na Praça dos Três Poderes no dia 8 de janeiro. Que as investigações sejam iniciadas e que os verdadeiros culpados sejam punidos”, ressalta.
O senador Jorge Seif (PL-SC) acredita que a busca pela verdade defendida pela oposição não impede que os criminosos sejam responsabilizados por seus atos no dia 8 de janeiro. Porém, ele vê os esforços da minoria parlamentar em superar as resistências dos governistas como uma forma de ajudar a pacificar o país após os episódios e permitir que a defesa desempenhe seu papel dentro de uma democracia. Seif aposta na elaboração de um relatório paralelo caso se confirme a tendência de que a relatora Eliziane Gama não aborde os aspectos que a oposição deseja esclarecer.
CPMI poderá esclarecer as condutas dos investigados
Apesar desses esforços, os parlamentares encontraram dificuldades em influenciar o inquérito, que foi extremamente incomum e rigoroso. A sua estratégia tem se resumido a fazer apelos diretos ao ministro Alexandre de Moraes e a denunciar publicamente os abusos encontrados.
Para o defensor público Gustavo de Almeida Ribeiro, que defende boa parte dos denunciados, a CPMI poderá alterar o entendimento dos ministros do STF no julgamento final se detalhar melhor a conduta de cada denunciado. “Se não a todas as pessoas, pelo menos de parte delas. Houve pessoas que chegaram à Praça dos Três Poderes após a confusão. Tudo que for produzido pela CPMI, e for favorável à defesa, vamos tentar utilizar, sem dúvida. Espero que isso seja considerado sim pelos ministros”, disse.
Para o advogado Bruno Jordano, que integra um grupo de colegas que atende 50 denunciados, o principal interesse na CPMI é esclarecer melhor as condutas. "A gente espera separar o joio do trigo, saber quem se omitiu, quem participou ou não da depredação, para que saiam da generalidade e tenham condutas individualizadas. As pessoas que respondem a esses processos são as maiores interessadas, buscam luz e publicidade sobre essas ações. Os inquéritos foram instruídos de modo sigiloso, e acreditamos que a CPMI possa dar publicidade aos fatos”, disse.
Em relação à perspectiva de os governistas atribuírem ao ex-presidente Jair Bolsonaro o papel de mentor intelectual dos eventos de 8 de janeiro, a oposição já decidiu apresentar como contraponto o fato de que ele estava no exterior na ocasião e não ocupava mais o cargo de presidente.