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Após relativizar a invasão da Rússia à Ucrânia e tentar justificar a ditadura na Venezuela, a decisão do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) de apoiar a denúncia da África do Sul contra Israel, por alegado genocídio, na Corte Internacional de Justiça (CIJ) confirmou que a política externa do petista tem "dois pesos e duas medidas", segundo analistas ouvidos pela Gazeta do Povo.
A política internacional tendenciosa de Lula deve se consolidar em 2024, quando o petista pretende visitar o líder autocrata russo, Vladimir Putin, na reunião dos Brics (bloco formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) em outubro em Kazan, na Rússia. Ele deve também convidar Putin para vir à reunião do G20, em dezembro, no Rio de Janeiro - mesmo após a condenação do tirano russo por crimes de guerra pelo Tribunal Penal Internacional.
Assim, a confirmação do apreço de Lula por países não democráticos alinhados à Rússia, à China e ao Irã se consolidou na última semana. O Ministério de Relações Exteriores divulgou por meio de nota que o mandatário brasileiro iria apoiar a denúncia da África do Sul contra Israel de alegado genocídio contra o povo palestino.
"Denunciar Israel e não denunciar os ataques contra civis da Rússia contra a Ucrânia é discrepante, não tem coerência”, salienta o doutor em Relações Internacionais, professor de Direito Internacional e pesquisador da Universidade de Harvard, Vitelio Brustolin.
A ONU tem uma estimativa conservadora de que ao menos 10 mil civis foram assassinados em bombardeios russos na Ucrânia desde o início da guerra em 2022 - a estimativa não inclui cerca de 200 mil militares mortos em combate no conflito. Autoridades palestinas colocam as baixas civis na Faixa de Gaza em um patamar aproximado de 20 mil pessoas.
Desde o início das guerras na Europa e no Oriente Médio, Lula fez diversas declarações contraditórias. Em várias delas, chegou a relativizar o conflito e dizer que agressor e agredido tinham a mesma culpa.
Brustolin salienta ainda que o governo israelense pode se defender das acusações feitas pela África do Sul e não ser considerado culpado, mas ele critica o fato de o Brasil se posicionar contra o país diante do conflito. "Deveria haver alguma coerência, porque a Rússia promove ataques contra civis na Ucrânia aberta e deliberadamente", avalia.
O petista fez diversos acenos a Vladimir Putin ao relativizar a guerra iniciada pelo russo em fevereiro de 2022. Além disso, enquanto apoia a decisão de abrir uma investigação contra o alegado crime de genocídio cometido por Israel, Lula levou dias para culpabilizar o Hamas pelos ataques do dia 7 de outubro de 2023. O mandatário só chamou os atos do Hamas de terroristas quase duas semanas após o ataque que deu início à guerra.
"Fico lembrando que 1.500 crianças já morreram na Faixa de Gaza. [Crianças] Que não pediram para o Hamas fazer o ato de loucura que fez, de terrorismo, atacando Israel, mas também não pediram que Israel reagisse de forma insana e as matasse", disse Lula, em referência ao balanço de 1.524 mortes de crianças divulgado pelo Ministério da Saúde de Gaza", em uma live no dia 20 de outubro. Essa foi a primeira vez que o petista chamou os atos do Hamas de terroristas.
Desde então, Lula passou a relativizar as reações de Israel diante das ofensivas do grupo terrorista. "As soluções de Israel são tão graves quanto foram as do Hamas, porque eles estão matando inocentes sem critério nenhum. Joga bomba onde tem criança, onde tem hospital, a pretexto de que um terrorista está lá", afirmou o petista. Na contramão disso, opositores do governo cobram ainda que o Brasil reconheça o Hamas como um grupo terrorista.
O país reconhece que as ações do grupo são atos de terrorismo, mas o Hamas não é classificado por Lula e pelo Itamaraty como grupo terrorista. De acordo com o ministro de Relações Exteriores, Mauro Vieira, o país segue a determinação da Organização das Nações Unidas (ONU) e só classifica organizações com o termo quando a ONU o faz. O que também não ocorreu até o momento.
Na avaliação do cientista político e diretor de Projetos do Centro de Estratégia, Inteligência e Relações Internacionais, Marcelo Suano, a decisão de apoiar a denúncia contra Israel deixa o Brasil ainda mais distante de se tornar um intermediador do conflito — espaço que Lula tentou ocupar em diversas tentativas no último ano.
"Avalio como um erro, até porque o presidente da República quer se apresentar como um mediador. Além disso, a denúncia é pautada por um discurso diplomático vazio, porque Israel não está lutando contra a Palestina ou contra o povo palestino, Israel está lutando contra um grupo terrorista que cometeu as maiores barbaridades", avalia.
Lula apoia denúncia contra Israel e convida Putin para vir ao Brasil
Após Vladimir Putin determinar que tropas russas invadissem a Ucrânia em fevereiro de 2022, os dois países entraram em um extenso conflito que já dura quase dois anos. O Tribunal Penal Internacional (TPI) expediu um mandado de prisão contra o russo devido aos crimes de guerra que a Rússia tem cometido contra o povo ucraniano.
O mandado, contudo, não impediu Lula de convidá-lo para vir ao Brasil. No último ano, o mandatário brasileiro causou polêmica ao dizer que gostaria que o presidente russo viesse ao Brasil para participar da Cúpula do G20, bloco que a Rússia também faz parte e ocorrerá em solo brasileiro em dezembro. Lula afirmou ainda que Putin não seria preso caso aceitasse o convite e viesse ao país.
Após a repercussão negativa de sua afirmação, o petista voltou atrás e disse que a decisão de prender ou não o líder russo seria determinada “pela Justiça” — o que faz mais sentido, na concepção de especialistas, já que o Brasil é um dos signatários da Carta da ONU e deve atender aos mandados expedidos pelo TPI.
Ainda na avaliação de Vitelio Brustolin, o apoio de Lula à denúncia contra Israel ganha ainda mais peso após tal situação com Putin. “O posicionamento do Brasil em relação a esse caso [da guerra na Faixa de Gaza] não chamaria tanta atenção se não fosse pela insistência do Brasil de trazer Putin para a reunião do G20 aqui”, analisa.
Assim como relativizou os culpados pela guerra na Faixa de Gaza, Lula disse que Volodymyr Zelensky, presidente da Ucrânia, seria tão culpado pela guerra quanto a Rússia. "Fico vendo o presidente da Ucrânia na televisão como se estivesse festejando, sendo aplaudido em pé por todos os parlamentos, sabe? Esse cara é tão responsável quanto o Putin", afirmou Lula à revista Time. Diferente da atitude com Putin, Lula tem se esforçado para se esquivar de encontros frente a frente com o presidente ucraniano.
A reportagem procurou o Itamaraty para esclarecer tais posicionamentos e um alto membro da pasta afirmou que, apesar do contexto político acerca dos dois conflitos, "o TPI já tomou uma decisão sobre a Rússia". Nesse sentido, o governo defende que, assim como a Rússia foi investigada pela Corte e acusada de cometer crimes de guerra, o governo israelense também deve dar esclarecimentos sobre a contraofensiva ao Hamas e responder por seus atos.
África do Sul acusa Israel de genocídio na Corte Internacional
A denúncia apresentada formalmente pela África do Sul na Corte de Haia acontece à luz da guerra no Oriente Médio que já dura mais de três meses. O conflito na região teve início depois que o grupo terrorista Hamas, que fica baseado na Faixa de Gaza, atacou Israel no dia 7 de outubro. O país sul-africano e outras dezenas de nações apontam que a contraofensiva israelense aos ataques terroristas têm "a intenção específica de destruir os palestinos de Gaza".
Israel, por outro lado, nega as acusações e acusa o Hamas de querer cometer genocídio contra o povo judeu. De acordo com o governo israelense, é o grupo terrorista quem busca exterminar os judeus. Em nota enviada à Gazeta do Povo, a Embaixada de Israel no Brasil classificou a denúncia feita pela África do Sul como "difamatória".
“Israel está empenhado e opera de acordo com o direito internacional e dirige as suas operações militares em Gaza exclusivamente contra o Hamas e outras organizações terroristas. Tanto em palavras como em atos, Israel deixou claro que os civis de Gaza não são seus inimigos. O Hamas, no entanto, declarou abertamente as suas intenções genocidas. A sua carta de fundação apela ao assassinato de judeus e os seus líderes declaram abertamente que o seu objetivo é perpetrar as atrocidades de 7 de Outubro “repetidamente””, diz a nota enviada à reportagem.
Apesar da denúncia contra Israel, os especialistas ouvidos pela Gazeta do Povo salientam que o Hamas se enquadra no crime de genocídio, mas Israel não. "É outro ponto que precisa de coerência, já que o Hamas é abertamente contra Israel e contra o povo judeu", avalia Brustolin. Segunda a Carta da ONU, o crime de genocídio é compreendido quando são cometidos atos com a intenção de "destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso”. Israel entende que não se enquadra nesses termos.
Tanto os palestinos quanto os israelenses foram ouvidos na Corte Internacional de Justiça e o processo continua tramitando.