Plenário do STF.| Foto: Carlos Alves Moura/STF.
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As restrições do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) à liberdade de expressão no período recente também atingiram um dos direitos mais caros ao regime democrático: a proteção constitucional ao discurso dos congressistas. Inscrita no artigo 53 da Constituição, a imunidade parlamentar diz que os deputados e senadores são “invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos”.

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Apesar de não ter caráter absoluto, como qualquer outro direito, essa prerrogativa sempre gozou no STF de grande deferência. A jurisprudência da Corte admitia limitá-la basicamente em duas situações: quando declarações proferidas por congressistas eram feitas dentro do Parlamento; ou, quando externadas fora, guardavam relação com o mandato.

Em 2022, porém, uma restrição maior acabou aparecendo: passaram a ser criminalizadas declarações de deputados dirigidas contra a cúpula do Judiciário, seus membros ou contra a Justiça Eleitoral, mesmo quando relacionadas a assuntos políticos, ditas e propagadas justamente pelo fato de seus emissores serem parlamentares.

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Dois casos ilustram essa virada: a condenação do deputado Daniel Silveira (PTB-RJ), por ofensas e supostas ameaças aos ministros do STF, em abril; e a cassação do deputado estadual Fernando Francischini (PSL-PR), em razão de acusações contra urnas eletrônicas nas eleições de 2018 – a perda do mandato foi aprovada em 2021 pelo TSE e mantida em 2022 pelo STF.

Em outros dois julgamentos recentes, no entanto, em nome da imunidade parlamentar, ofensas e calúnias externadas por congressistas influentes contra pessoas comuns continuaram merecendo proteção.

Em 2021, o STF rejeitou uma queixa da ex-mulher do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), em que o acusava de difamação e injúria, por tê-la chamado de “vigarista profissional”. Em 2022, o STF livrou de um processo criminal o ex-presidente da CPI da Covid, Omar Aziz (PSD-AM), acusado de calúnia por ter atribuído à médica Mayra Pinheiro milhares de mortes na pandemia. Nesses dois casos, as acusações ainda incluíam violência doméstica contra a mulher, mas também acabaram descartadas em nome da imunidade parlamentar.

Já nos nos casos de Silveira e Francischini, embora as manifestações também tratassem de política, o STF considerou que a imunidade não se aplicava. Nos dois últimos, entendeu que as falas relacionavam-se à vida parlamentar e, assim, foram blindadas. Não ficou claro um parâmetro objetivo para interpretar se determinada declaração ofensiva tem ou não ligação com a atividade parlamentar, um dos filtros para o exercício da imunidade.

Como a imunidade foi afastada nos casos Daniel Silveira e Francischini

No caso de Daniel Silveira (PTB-RJ) – que, além de xingar com palavrões diversos ministros, expressava desejo de dar “surra” em Edson Fachin e jogar Alexandre de Moraes numa lixeira – a Corte entendeu que a liberdade de expressão não permite a propagação de “discursos de ódio e ideias contrárias à ordem constitucional e ao Estado de Direito”.

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Quanto à imunidade, o julgamento, ocorrido em abril, assentou que as falas do deputado não guardavam conexão com o desempenho da função legislativa, “não sendo possível utilizá-la como verdadeiro escudo protetivo para a prática de atividades ilícitas”.

“O parlamentar, em publicação videofonográfica em plataforma digital (YouTube), por mais de uma vez, usurpou da sua imunidade parlamentar para praticar crimes extremamente graves, não só atacando frontalmente os Ministros do Supremo Tribunal Federal, por meio de ameaças e ofensas à honra, com a finalidade de favorecer interesse próprio, como também propagando a adoção de medidas antidemocráticas contra esta Corte, defendendo o AI-5, inclusive com a substituição imediata de todos os Ministros, bem como instigando a adoção de medidas violentas contra a vida e segurança dos seus membros, em clara afronta aos princípios democráticos, republicanos e da separação de poderes”, disse Moraes em seu voto. Relator do processo, ele foi seguido por outros 8 ministros no julgamento.

Kassio Marques, o primeiro a divergir no julgamento, julgou inicialmente improcedente a acusação contra o deputado ao constatar que o vídeo contra os ministros dirigia-se a seus eleitores. “Utilizando de sua rede social para informar os eleitores, portanto em razão do mandato, o réu expôs fatos ocorridos que entendeu injustos, conquanto em linguajar nada recomendável a um parlamentar”, afirmou no julgamento.

André Mendonça, que divergiu votando por uma pena menor, entendeu que as declarações de Daniel Silveira tinham intenção intimidatória e, por isso, não estariam abarcadas pela imunidade parlamentar. Assim como outros ministros, observou que essa prerrogativa não é um privilégio da pessoa do congressista, mas uma forma de proteger a função contra pressões de outros poderes. Daria, assim, liberdade ao parlamentar para criticar atos, decisões ou medidas de outros atores políticos na esfera política, mas não para ameaçá-los.

“Nos casos de abusos ou de usos criminosos, fraudulentos ou ardilosos dessa prerrogativa para a ofensa aviltante a terceiros ou para incitar a prática de delitos, inclusive contra a própria democracia e/ou contra o sistema representativo, pode-se concluir pela não incidência da cláusula de imunidade, já que o referido privilégio não pode ser utilizado de forma contrária à própria finalidade que gerou a sua criação”, resumiu o ministro Gilmar Mendes.

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Se palavras que representem ameaças não foram toleradas sob o manto da imunidade parlamentar, assim também se sucedeu com aquelas que colocaram em xeque o sistema eleitoral. Ainda em outubro de 2021, o TSE cassou o mandato do deputado estadual Fernando Francischini (PSL-PR) rechaçando a alegação da defesa de que, como parlamentar, ele poderia questionar o funcionamento das urnas eletrônicas.

Em 2018, no dia da eleição e pouco antes do fim da votação, ele afirmou, numa transmissão ao vivo nas redes sociais, que urnas em Curitiba foram apreendidas pela polícia porque estavam fraudadas para desviar votos no então candidato Jair Bolsonaro em favor de Fernando Haddad, do PT, na disputa presidencial.

Ao condená-lo por abuso de poder político e uso indevido dos meios de comunicação, o TSE entendeu que a imunidade parlamentar não ampara a “disseminação de informações falsas por redes sociais e na internet”. Isso, no entendimento da Corte, abrange “acusação direta e indireta de fraude na urna eletrônica”. Em junho de 2022, o STF ratificou esse entendimento, ao negar um pedido apresentado pelo deputado para reaver seu mandato.

Em sua defesa, Francischini afirmou que, ao contrário do que julgou o TSE, a transmissão não tinha motivação eleitoral, mas sim fiscalizatória. “Eu uso aqui a minha imunidade parlamentar, que ainda vai até janeiro, independente dessa eleição, pra trazer essa denúncia”, disse na live.

Não convenceu os ministros do STF, que, à essa época, andavam alarmados com a possibilidade de que o discurso contra as urnas voltasse a crescer e colocasse em dúvida a legitimidade da Justiça Eleitoral na organização do pleito de 2022.  “Não é de hoje que lá e aqui, que se afirma que não há liberdade de expressão, nem imunidade parlamentar, que ampare a disseminação de informações falsas”, votou o relator Edson Fachin, que presidira o TSE até o início do ano e que, na função, empreendeu grande esforço para defender o sistema.

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Ao longo de 2022, a ideia de que informações falsas, ou “fatos sabidamente inverídicos” e “gravemente descontextualizados”, conforme no jargão criado por resolução do TSE, não seriam admitidos, fez com que a Corte passasse a remover, em larga escala, postagens de deputados nas redes sociais, sobretudo ligados a Bolsonaro. Foram retiradas do ar não apenas conteúdos que contestassem as urnas, mas também afirmações tachadas de “fake news” contra candidatos. A campanha de Luiz Inácio Lula da Silva ganhou dezenas de ações nesse sentido, para censurar tweets de parlamentares que o acusavam de corrupto e ladrão.

Mais tarde, no segundo turno da campanha, o próprio TSE deu a Moraes o poder de retirar postagens de ofício, por iniciativa própria e sem provocação das partes, nos casos em que o conteúdo representava uma repetição de algo já julgado inverídico pela Corte. A nova resolução também deu a ele o poder de suspender perfis com disseminação “sistemática” de desinformação – deputados conservadores passaram a ser suspensos das plataformas.

Como a imunidade foi preservada nos casos de Arthur Lira e Omar Aziz

Em 2020, Jullyene Lins, ex-mulher de Arthur Lira, o acusou de difamação e injúria por ter dito, em entrevista a uma revista, que ela era uma “vigarista profissional”. “Querendo extorquir dinheiro, inventando histórias. Meu patrimônio é o que está declarado no TSE”. Era uma resposta do deputado a ilações da ex de que ele obteve fortuna com corrupção.

A queixa chegou ao STF, em razão do foro privilegiado do deputado, mas o relator, Luís Roberto Barroso, mandou o caso para a primeira instância, por não ver relação do caso com o mandato parlamentar. E foi além: remeteu a queixa para um juiz de violência doméstica de Brasília – isso porque a Lei Maria da Penha também classifica como tal qualquer ação que cause sofrimento psicológico e dano moral à mulher no âmbito familiar.

Lira recorreu, alegando imunidade parlamentar, e com o argumento de que sua declaração tinha sim ligação com o cargo, porque precisou se defender da acusação de ser corrupto e de ter enriquecido de forma ilícita. “No caso em desate, a acusação de Jullyene Lins à revista se referiu à atuação parlamentar como modo de obter ganho ilícito, com suposto acordo político para sucessão presidencial da Câmara, de modo que a resposta dada pelo Defendido se enquadra no âmbito do seu desempenho como Deputado”, disseram seus advogados.

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No julgamento, prevaleceu o voto de Alexandre de Moraes, que concordou com a tese da defesa e votou para arquivar a queixa. “O querelado somente se debruçou sobre a questão em discussão em virtude de sua condição parlamentar, na medida em que as palavras foram por ele proferidas como retorsão a acusações de corrupção lançadas pela querelante em matéria jornalística”, disse o ministro.

Quanto ao teor das palavras de Lira, Moraes entendeu que não representavam abuso. “As palavras ofensivas em relação à querelante foram realizadas em um contexto de sucinto rebate às acusações por ela feitas e consideradas pelo querelado como totalmente infundadas, não ultrapassando, dessa forma, os limites da liberdade de expressão negativa do parlamentar, acobertadas pela inviolabilidade constitucional; em que pese a grosseria das mesmas”, escreveu.

Ele foi seguido pelos ministros Kassio Nunes Marques, Edson Fachin, Dias Toffoli, Gilmar Mendes e Luiz Fux – todos concordaram em enterrar o caso em nome da imunidade parlamentar. Ficaram vencidos Luís Roberto Barroso, Ricardo Lewandowski, Cármen Lúcia e Rosa Weber, que queriam manter de pé o processo, mas na primeira instância.

A médica Mayra Pinheiro, que defendia o uso de hidroxicloroquina no âmbito do Ministério da Saúde durante a pandemia, foi duramente atacada pelo presidente da CPI da Covid, Omar Aziz (PSD-AM), numa entrevista. Ao ser questionado pelo fato de ter humilhado a profissional durante seu interrogatório na comissão, o senador disse que ela foi “responsável por milhares de mortes”. “Ela que ela usou o Amazonas como cobaia e é verdade. Se isso é humilhação, o problema é dela”, disse.

Na queixa contra Aziz, que também chegou ao STF, Mayra o acusou de calúnia, difamação, injúria e também de violência psicológica contra a mulher.

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“A sua agressividade descomunal teve o nítido propósito de imputar falsamente o cometimento de crime à Querelante, de lhe ofender o decoro, ferir-lhe moralmente, bem como de lhe difamar, destruindo a carreira de uma médica devotada a sua profissão”, disse a defesa. Acrescentou que as falas do senador causaram a ela “melancolia extrema” e “levou às lágrimas familiares próximos que sabem da sua competência e compromisso com a preservação da vida dos enfermos”.

Não adiantou. Nesse caso também, os ministros consideraram que as declarações estavam protegidas pela imunidade parlamentar. O voto condutor foi do ministro Dias Toffoli, relator do caso, que conseguiu adesão dos demais para arquivar a queixa.

Reconheceu que as palavras de Aziz a Mayra podem ser consideradas “excessivas e pesadas”, mas que eventual punição por elas caberia ao Senado, no âmbito da comissão de ética, por eventual quebra de decoro. “A entrevista possuía caráter de prestação de contas e de fiscalização das atividades investigadas na comissão parlamentar de inquérito, consistindo as falas do Senador em clara oposição e descontentamento com a atuação da médica que ocupava cargo no Ministério da Saúde”, afirmou o ministro no voto.

Ele foi seguido por unanimidade por André Mendonça, Nunes Marques, Alexandre de Moraes, Edson Fachin, Luís Roberto Barroso, Luiz Fux, Dias Toffoli, Cármen Lúcia, Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes e Rosa Weber.