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Participação popular

‘Despetização’ ou retrocesso: os efeitos da extinção de conselhos por Bolsonaro

Jair Bolsonaro
Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil (Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil)

Uma das medidas que mais chamou a atenção no pacotão anunciado nos 100 dias de governo de Jair Bolsonaro (PSL) é o decreto que prevê a extinção de quase todos conselhos do Poder Executivo federal. A expectativa do governo é reduzir drasticamente o número de colegiados em funcionamento e aumentar a eficiência e a transparência de seus trabalhos. O governo argumenta que esses conselhos foram aparelhados pelo PT. Mas críticos têm apontado risco de insegurança jurídica e à democracia participativa no Brasil, já que esses colegiados têm a participação de representantes da sociedade civil para ajudar o governo a definir políticas públicas nas mais variadas áreas.

De acordo com o Decreto n.º 9.759, editado em 11 de abril, estarão extintos a partir de 28 de junho todos os conselhos, comitês, comissões, grupos, juntas, equipes, mesas, fóruns, salas e “qualquer outra denominação dada ao colegiado”, exceto os previstos em estatutos de instituições federais de ensino e aqueles criados ou já modificados pelo próprio governo desde 1º de janeiro. O decreto também não afetará órgãos colegiados criados por lei, a não ser que a legislação não tenha estabelecido as competências do órgão.

Ninguém sabe quantos conselhos serão extintos: podem ser mais de 1 mil

Ministérios, órgãos e entidades da administração pública terão até o dia 28 de maio para enviar à Presidência da República a lista completa dos colegiados que presidem. Todos os conselhos afetados pelo decreto, para continuarem os trabalhos ou serem recriados, precisarão se adequar às novas regras.

Ainda não há clareza sobre a extensão da mudança: um levantamento preliminar da Associação Brasileira de ONGs (Abong) aponta para 70 colegiados que podem ser extintos. Bolsonaro falou em mais de mil colegiados.

Mas a estimativa da Casa Civil é menor. “Os mais de 700 conselhos na administração direta e indireta, que vinham de uma visão completamente distorcida do que é representação e participação da população, tinham como gênese a visão ideológica dos governos que nos antecederam, de fragilizar a representação da própria sociedade [por meio de seus representantes eleitos]”, disse o ministro-chefe da Casa Civil, Onyx Lorenzoni (DEM-RS).  Para o ministro, o descontrole dos colegiados resulta em “gastos com pessoas que não tinham nenhuma razão para estar aqui, além de consumir recursos públicos e aparelhar o Estado brasileiro”.

Pode ser afetada pela decisão uma série de conselhos sociais, como o CNCD/LGBT (combate à discriminação contra LGBTs), CNDI (idosos), CTPCC (transparência e combate à corrupção), Conad (política sobre drogas), Conatrae (trabalho escravo), CNPI (política indigenista) e Conaeti (trabalho infantil). Ainda há dúvidas sobre o Comitê Gestor da Internet brasileira (GCI.br), que cuida da governança da rede mundial no Brasil, mas a maioria dos especialistas consultados pelo portal especializado Tele.síntese avalia que o GCI.br não deve ser afetado. A extensão dos efeitos do decreto, porém, só deve ficar clara no prazo de 28 de junho.

Novo decreto tende a reduzir custos e melhorar eficiência

Entre as novas exigências, que se somam às que constam no Decreto 9.191/2017, cada colegiado tem de realizar suas reuniões por videoconferência se seus membros estiverem em estados diferentes. Eles também têm de apresentar estimativa de custo com passagens e diárias, se não houver possibilidade de realizar a reunião por videoconferência. Essas medidas tendem a reduzir os gastos governamentais com os conselhos.

Como regra geral, o novo decreto limita ainda o número de membros dos colegiados a sete e proíbe a criação de subcolegiados. Além disso, passa a ser obrigatório que as convocações para reuniões tenham horário de início e fim.

A primeira reação de membros de colegiados foi a de incerteza, diante da novidade introduzida pelo decreto. Mas há quem veja vantagens.

“Esse é um decreto interessante, que estabelece uma espécie de porteira normativa. Em vez de deixar as coisas andando automaticamente, você coloca uma porteira: o que não for confirmado até 28 de junho, estará eliminado”, afirma Carlos Ari Sundfeld, professor de direito administrativo da FGV-SP e presidente da Sociedade Brasileira de Direito Público (SBDP). “Existem conselhos que não são criados por lei, mas por decretos do presidente da República e por outros atos regulamentares inferiores: resoluções de ministros, portarias de diretores e secretários. Estes todos serão atingidos pelo decreto”, explica.

Para Egon Bockmann, professor de direito público da Universidade Federal do Paraná (UFPR), os requisitos formais para o funcionamento dos colegiados estabelecidos pelo decreto de 2017 e pelo decreto editado pelo atual governo são positivos. “São regras típicas de governança e isso efetivamente tende a gerar eficiência”, diz. “De fato, há muitos casos de reuniões em que os participantes não fazem a lição de casa e há gastos desnecessários com hospedagem e estadia. E ainda seria interessante que essas reuniões fossem também divulgadas com antecedência e depois disponibilizada a agenda do debate”, afirma.

Sundfeld explica ainda que, além dos requisitos normativos, a criação ou manutenção de colegiados no governo dependerá de uma análise de conveniência, como é próprio da edição de atos normativos estatais. “Há uma reclamação eterna dentro da administração federal de que há uma quantidade enorme de conselhos que foram criados apenas para ‘fazer de conta’ e que não funcionam. Outros conselhos foram compostos no passado com certas características para atender algum lobby. E, mesmo entre os que funcionam, acabam sendo um fator de paralisia e distorção do processo decisório”, diz. “Há casos em que os conselhos, por serem contrários a alguma medida, acabam criando problemas políticos para as autoridades eleitas”, afirma.

Decreto levanta discussão sobre democracia participativa no Brasil

O Decreto 9.759/2019 também revogou por completo o Decreto 8.243/2014, que criou a Política Nacional de Participação Social (PNPS) durante o governo de Dilma Rousseff (PT). O texto de Dilma tinha como objetivo “fortalecer e articular os mecanismos e as instâncias democráticas de diálogo e a atuação conjunta entre a administração pública federal e a sociedade civil” e o Sistema Nacional de Participação Social (SNPS), que seria uma espécie de conselho dos conselhos para gerir a PNPS e coordenar a atuação dos colegiados federais.

A experiência dos colegiados participativos, no Brasil, data de pelo menos 1941 – quando foi instalado o Conselho Nacional de Saúde (CNS), durante a ditadura de Getúlio Vargas. As experiências de democracia participativa começaram a ganhar força no Brasil na década de 1980, acompanhando o processo de redemocratização, mas a grande maioria dos conselhos, que aumentaram em número durante a década de 1990, é fruto da Constituição de 1988 –que previu várias instâncias de participação popular e social em políticas públicas. Ainda assim, o Brasil tem notas historicamente baixas nos quesitos participação política e cultura política nos índices de democracia, como o do Instituto Idea e o da Revista The Economist.

O decreto 8.243/2014, de Dilma, foi concebido para tentar sistematizar a atuação desses colegiados todos, que foram se multiplicando pela administração pública. Mas foi percebido como um “decreto bolivariano” para minar as bases da democracia representativa no país ao criar conselhos com representação supostamente popular (mas aparelhados ideologicamente na prática) para estabelecer políticas públicas.

Em outubro de 2014, com a reeleição de Dilma, a Câmara dos Deputados aprovou um projeto de decreto legislativo apresentado pelos então deputados Mendonça Filho (DEM-PE) e Ronaldo Caiado (DEM-GO) para sustar o Decreto 8.243/2014. O projeto nunca chegou a ser apreciado pelo Senado.

Para ex-integrante do governo do PT, decreto de Bolsonaro é 'desastroso'

Para Pedro Pontual, ex-diretor de participação social da Secretaria-Geral da Presidência da República durante o governo de Dilma Rousseff, o decreto de Bolsonaro é “desastroso” porque busca “desconstruir e esvaziar todo um sistema de participação social nas políticas que veio sendo construído ao longo das últimas décadas”. Pontual está envolvido com a construção de mecanismos de democracia participativa desde a década de 1970.

Pontual também criticou as declarações de Onyx Lorenzoni que justificaram a edição do decreto, afirmando que a criação de conselhos não começou com os governos petistas e que o decreto de 2014 não teria sido inspirado pela experiência bolivariana, quando, na verdade, – ele buscava apenas sistematizar a existência e as competências dos colegiados

“A democracia é a soma equilibrada da democracia representativa, da eleição pelo voto, com a democracia participativa, que inclui esses vários mecanismos, em uma relação de soma, equilíbrio e complementariedade”, diz Pontual, que não nega que a experiência dos conselhos precisava de aperfeiçoamento. “Órgãos de controle como o TCU [Tribunal de Contas da União] já vinham acompanhando esses colegiados. Mas, sob o véu de uma suposta racionalidade administrativa, o [atual] governo está buscando esvaziar esses conselhos”, afirma.

Já José Moroni, membro do conselho diretor do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), aponta que a generalidade do decreto, que não se preocupou em distinguir entre os colegiados, pode gerar insegurança jurídica. Moroni também afirma que a extinção e recriação de colegiados pode abrir espaço para aparelhamento desses órgãos, por meio da indicação de novos membros.

“Além disso, a argumentação que o governo faz é preocupante, porque diz que esse sistema foi criado para minar a representação via partidos políticos. Mas isso é um autoritarismo, porque muitos países – mesmo Estados Unidos, Israel e Europa – criaram vários mecanismos desse tipo, uma vez que, diante da complexidade social, a representação partidária não consegue refletir a totalidade da sociedade”, diz.

Nem todos vão na mesma linha, porém. “Sou fã incondicional da democracia participativa, mas ampliar por demais o número de comissões e o debate acaba resultando na ineficiência do processo. As comissões são boas se tiverem escopo específico; começo, meio e fim; agenda pré-definida, e um objetivo claro. Colegiados para conversar sobre temas genéricos não são efetivos”, pondera Bockmann, da UFPR.

“É natural que, em se tratando de conselhos criados pelo poder executivo, o chefe do poder executivo eleito possa revê-los todos”, diz Sundfeld. “O que é importante é que a governança pública seja boa, ou seja, que os lobbies sejam atendidos à luz do dia, com clareza. E que eles sejam ouvidos por instrumentos adequados. A legislação tem progredido muito nisso”, afirma.

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