Encorajadas por uma fala do presidente Jair Bolsonaro, empresas estão recorrendo a um dispositivo da lei trabalhista – o artigo 486 da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) – para fazer demissões em massa sem o devido pagamento de verbas rescisórias. O Ministério Público do Trabalho já recebeu denúncias de casos, instaurou inquéritos civis e não descarta ações civis coletivas contra as companhias que adotaram a prática.
As empresas estão alegando o chamado "fato do príncipe" – quando o negócio é obrigado a fechar por um ato da autoridade municipal estadual ou federal – para repassar o pagamento a governadores e prefeitos, adversários de Bolsonaro no "cabo de guerra" em torno das políticas de isolamento social. O presidente defende um relaxamento da quarentena, mas o STF garantiu a estados e municípios autonomia para determinar regras de funcionamento das atividades econômicas.
Como consequência, centenas de trabalhadores demitidos estão ficando sem a renda mensal e sem a reserva financeira que teriam com o pagamento total da rescisão. No lugar disso, recebem a informação de que as indenizações ficarão a cargo do governo estadual. O uso crescente do artigo da CLT pelas empresas foi antecipado pelo jornal "Valor".
Em 27 de março, Bolsonaro declarou que Estados e municípios podem ser responsabilizados por encargos trabalhistas de estabelecimentos que demitirem após serem obrigados a fechar. "Tem um artigo na CLT (Consolidação das Leis do Trabalho) que diz que todo empresário, comerciante, etc. que for obrigado a fechar o seu estabelecimento por decisão do respectivo chefe do Executivo, os encargos trabalhistas quem paga é o governador e o prefeito", disse o presidente na ocasião.
A crise do coronavírus já responde por 20% das novas ações trabalhistas. Nos últimos 30 dias, cerca de 10 mil trabalhadores procuraram a Justiça, alegando que foram demitidos em função da pandemia e não receberam o conjunto ou parte das verbas rescisórias.
A visão entre técnicos do próprio governo, no entanto, é de que a situação atual não é um típico "fato do príncipe". O secretário de Relações Institucionais da Procuradoria-Geral do Trabalho, Márcio Amazonas, afirma que a tese usada pelas empresas é "perigosa" e cria insegurança jurídica. Para ele, a situação é preocupante e há espaço para ação do MPT.
"Numa época de pandemia, em que se espera que seja cumprida a função social da empresa, em vez de dividir essa conta (da crise) com os trabalhadores a empresa está passando para o Estado e deixando os trabalhadores à míngua. Isso é um ato antiético."
Denúncias
No Rio de Janeiro, a Procuradoria Regional de Trabalho recebeu uma denúncia de que 690 funcionários da churrascaria Fogo de Chão foram demitidos em todo o país sob a alegação do "fato do príncipe". Um inquérito civil já foi instaurado para apurar indícios de lesão coletiva a direitos sociais garantidos pela Constituição aos trabalhadores.
Uma carta enviada ao governo estadual do Rio diz que a Fogo de Chão – que desde 2018 pertence ao fundo de investimentos americano Rhône Capital – depositaria na conta dos empregados o saldo de férias, o adicional de um terço e o 13º proporcional em até dez dias. Não houve comprovação dos pagamentos. Além disso, alguns empregados receberam parte das verbas rescisórias, que incluem o aviso prévio e a multa de 40% sobre o FGTS, enquanto outros não receberam nenhuma parcela.
Em Salvador, a juíza da 3ª Vara do Trabalho, Isabella Borges de Araújo, determinou em 30 de abril que uma empresa de transportes reintegre dez funcionários demitidos durante a pandemia do novo coronavírus. As dispensas também haviam ocorrido sob a justificativa do existência do "fato do príncipe".
O causador foi o vírus e não o governo, diz ministro do TST
O ministro do Tribunal Superior do Trabalho (TST) Alexandre Agra Belmonte disse que, em sua avaliação, governos estaduais e municipais que determinaram paralisação de atividades não agiram por critério de conveniência e oportunidade. "O artigo é inaplicável na Covid-19. Não foi ele [governo] o causador. O causador foi o vírus."
Com base na medida provisória 927, que dá alguma flexibilidade às empresas nas relações trabalhistas durante a crise, o Ministério Público do Trabalho reconhece que o atual estado de calamidade é hipótese de força maior para fins trabalhistas. Nesses casos, a empresa paga multa menor sobre o FGTS (20%), mas ainda assim precisa honrar outras verbas rescisórias.
Procurada, a Fogo de Chão informou que a demissão alcançou 439 pessoas, número menor que o apurado pela Procuradoria-Geral do Trabalho do Rio de Janeiro. A assessoria da rede disse que os dispensados foram indenizados com "o que era devido do proporcional do 13º, salário e férias, além de 20% da multa do FGTS, seguindo as normas do Artigo 486 da CLT".
O governo do Rio informou, por meio da Secretaria de Estado de Trabalho e Renda, que as medidas restritivas "não têm como causa o livre poder de escolha da administração pública", mas sim a pandemia do novo coronavírus. Procurado, o Planalto não se pronunciou.
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