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Relatórios oficiais de demonstrativos financeiros apontam que o Brasil já injetou recursos no Banco de Desenvolvimento da América Latina, o chamado CAF, equivalentes a cerca de R$ 2,6 bilhões ao longo dos últimos dez anos. A instituição emprestou US$ 1 bilhão à Argentina recentemente, em uma operação que a ministra Simone Tebet, do Planejamento, afirmou não ter dinheiro do país.
A notícia de que o CAF fez a operação à Argentina como um “empréstimo-ponte” para acessar recursos do Fundo Monetário Internacional (FMI) surgiu na quarta (4) a partir de uma apuração do jornal O Estado de São Paulo. Segundo a reportagem, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) teria pressionado a ministra para encaminhar a operação no banco – ela é governadora do Brasil na instituição – e influenciar a votação dos outros 18 países-membros.
Isso porque a Argentina, segundo o Estadão, já tinha atingido o limite de crédito no CAF, mas precisava da operação para ter acesso a um empréstimo de US$ 7,5 bilhões do FMI para socorrer a combalida economia local. Lula apoia o atual ministro da Economia argentino, Sergio Massa, para a sucessão presidencial do amigo Alberto Fernández na eleição do dia 22 de outubro.
Horas depois, Simone Tebet negou que tenha recebido qualquer ordem de Lula para facilitar a liberação do empréstimo ou influenciar na votação dos outros países, mesma posição adotada pela Secretaria de Comunicação da Presidência da República (Secom) mais tarde.
No mesmo dia, Simone Tebet teve de dar explicações a deputados e senadores da Comissão Mista de Orçamento (CMO) do Congresso Nacional sobre a operação, em que disse que “não tem dinheiro federal brasileiro lá, não estamos tirando dinheiro do Brasil para colocar lá”.
No entanto, relatórios do CAF consultados pela Gazeta do Povo apontam que o Brasil já aportou recursos próprios ao longo dos últimos dez anos – período em que há balanços disponibilizados para consulta pública.
Veja abaixo os aportes feitos pelo Brasil na instituição desde 2013 até junho de 2023, data do último relatório disponível. Os valores estão apresentados em dólar e em real seguindo a cotação oficial de cada período:
Fontes: relatórios oficiais do CAF dos anos de 2013, 2014, 2015, 2016, 2017, 2018, 2019, 2020, 2021, 2022 e parcial de 2023, e cotações do dólar ano a ano.
Os relatórios apontam que apenas o ano de 2019 não teve aportes do Brasil, o primeiro da gestão do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL). Nos dois anos seguintes, o governo destinou apenas cerca de US$ 15 milhões ao banco. A capitalização no CAF, no entanto, deu um salto em 2022, último ano de gestão de Bolsonaro, de US$ 43,9 milhões.
Por outro lado, apenas nos seis primeiros meses de 2023, o governo Lula já encaminhou mais da metade do montante de 2022 (US$ 31,3 milhões).
À Gazeta do Povo, o Ministério do Planejamento informou, no começo da noite de sexta (6), que a ministra informou aos parlamentares que "não houve recurso adicional repassado à CAF para o empréstimo à Argentina", que o Brasil tem uma participação de 8,8% no banco e que "estados e municípios brasileiros têm direito a apresentar recursos e tomar empréstimos na instituição". "Apenas entre 2020 e 2022, Estados e municípios brasileiros foram contemplados com US$ 4,35 bilhões (cerca de R$ 20 bilhões) em financiamentos da CAF para projetos de desenvolvimento regional e local", completou.
Operação é normal e já foi quitada, diz ministra
Ainda durante a explicação aos congressistas, Simone Tebet disse que o empréstimo à Argentina tinha um prazo de apenas 10 dias e que já foi quitado “em tempo hábil, não sei se foi uma semana, 10 dias”. Segundo a ministra, 20 dos 21 países votaram favoráveis ao empréstimo.
Simone Tebet afirmou que este tipo de operação é normal e que também se justificou pela participação da Argentina no comércio exterior brasileiro – é o terceiro maior parceiro do país e que “precisava de um fôlego”.
Apesar da ministra tentar justificar a importância da operação ao país vizinho, o cientista político Christopher Mendonça, doutor em ciência política pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), vê que Simone Tebet “tentou, de forma prática, utilizar de um recurso discursivo para defender que os recursos do CAF não estão inseridos no Orçamento geral da União, o que não é um argumento válido”.
“Os aportes financeiros anuais destinados a esta instituição bancária poderiam, sem nenhum impedimento, ser destinados para a realização de políticas públicas no Brasil”, completa.
Além da ajuda à Argentina, o CAF empresta recursos a outros países da região signatários do banco. Segundo o último relatório da instituição, calculado até junho de 2023 (veja na íntegra), o Brasil já pegou US$ 3,4 bilhões em empréstimos (R$ 16,8 bilhões na cotação de junho), que foram usados em projetos de mobilidade urbana, eficiência energética, telecomunicações, meio ambiente, entre outros, explica o site da instituição (veja aqui).
Ainda segundo o banco, uma operação de US$ 650 milhões foi aprovada no mês passado para projetos do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e para a construção de uma ponte entre Salvador e a ilha de Itaparica (BA).
Afago à Argentina
Desde o começo do novo governo, Lula busca reforçar as relações comerciais com a Argentina, com quem o Brasil tem negócios que, apenas neste ano, já somaram US$ 20,5 bilhões, com um superávit de US$ 4,4 bilhões para o país.
O presidente argentino, Alberto Fernández, esteve em Brasília pelo menos duas vezes para pedir a ajuda de Lula para encontrar uma solução para a grave crise financeira enfrentada. A Argentina está vendo a cotação do peso derreter frente ao dólar e uma inflação acumulada que já passa dos 120%.
A ajuda à Argentina já contou inclusive com uma tentativa do ministro Fernando Haddad, da Fazenda, de influenciar nas decisões do FMI. Em meados de maio deste ano, ele se encontrou com a secretária do Tesouro dos Estados Unidos, Janet Yellen, para fazer um apelo por ajuda ao país vizinho.
O governo brasileiro vê com preocupação a eleição presidencial argentina que será realizada em primeiro turno no dia 22 de outubro. O candidato libertário Javier Milei está crescendo nas pesquisas e pode ameaçar o candidato governista, Sergio Massa, de quem Lula é próximo.
Milei já expôs que pretende adotar uma série de medidas polêmicas, como dolarizar a economia do país, extinguir o Banco Central, reduzir o tamanho do estado e, a maior preocupação do Brasil, sair do Mercosul.