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O encanto da chamada Faria Lima – a avenida da capital paulista que reúne escritórios dos principais bancos e corretoras do país – com o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, acabou. A paixão fugaz durou apenas quatro meses: logo após ele ter superado as desconfianças iniciais de sua indicação, passou a ser visto como um contraponto positivo às posturas do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), tidas como ameaçadoras para a estabilidade econômica. Em meados de agosto, porém, a situação mudou, com a perda total da credibilidade em suas metas fiscais. Sem conseguir dar segurança à evolução das contas públicas, Haddad e o governo se distanciam do mercado financeiro e passam a depender ainda mais do Congresso, colocando em risco a própria governabilidade.
Após protagonizar novos embates com o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), principal fiador no Congresso de uma agenda reformista para a economia, e de sofrer derrotas em votações recentes do interesse do governo, Fernando Haddad passou a ser alvo de uma crescente descrença sobre o seu compromisso de zerar o déficit da União em 2024. Essa perda de prestígio perante investidores, setores produtivos e analistas econômicos deu ainda ânimo para parlamentares e líderes do PT, como os deputados Gleisi Hoffmann (PR) e Lindbergh Farias (RJ), criticarem o ministro e pressionarem Lula a investir numa pauta econômica populista e opositora ao mercado financeiro.
A inflexão de Haddad para a esquerda, após ter sido elogiado pelo Centrão e pelos agentes financeiros na condução de acordos para aprovar a reforma tributária e o arcabouço fiscal, começou quando ele classificou o poder da Câmara como excessivo, numa polêmica entrevista dada em 14 de agosto. Na aprovação final do novo arcabouço fiscal pelos parlamentares, em sua segunda passagem pela Câmara, acabou sendo excluída a emenda proposta pelo governo para garantir um gasto extra de até R$ 40 bilhões em 2024. Antes disso, o presidente Arthur Lira havia mostrado irritação com a crítica de Haddad e avisou que estava chegando a hora de a equipe econômica começar a considerar o corte de gastos, algo que parece um tabu em gestões petistas. Nessa toada, o deputado tem ganhado apoio para levar adiante o debate e a votação de uma reforma administrativa, outro tema severamente evitado pela gestão petista.
Orçamento de 2024 evidenciou desafio fiscal gigantesco
A ruptura das expectativas de equilíbrio fiscal entre governo e mercado se cristalizou na quarta-feira (30), quando a ministra do Planejamento, Simone Tebet, apresentou uma proposta de Orçamento para 2024 que traz uma ampliação de gastos de R$ 129 bilhões em relação a 2023. Para cumprir a meta de déficit primário zero, o governo espera por um acréscimo de R$ 168 bilhões em arrecadação, incluindo as receitas a serem obtidas mediante projetos de lei e outras medidas ainda não aprovadas pelo Congresso.
No mesmo dia, o mercado já havia sido afetado pela divulgação do segundo maior rombo da série histórica das contas federais, iniciada em 1997. O governo arrecadou em julho R$ 35,93 bilhões a menos do que o que gastou no mês. O resultado só foi melhor que o alcançado em julho de 2020, auge da pandemia de Covid-19, quando foi registrado déficit de R$ 109,6 bilhões.
O senador Rogério Marinho (PL-RN), líder da oposição no Senado, aproveitou a divulgação desses números preocupantes para fazer um alerta ao governo, enquanto ainda se comemora a recente melhora nas notas de agências de risco para a dívida brasileira. Ele frisou que o bom humor das classificadoras internacionais pode mudar rápida e radicalmente conforme o rumo que a política econômica apontar.
“É bom lembrar que o Brasil perdeu as suas notas de crédito em 2015, durante o governo Dilma, em razão de um evidente descontrole da situação fiscal, puxada por interferência em preços administrados pelo governo e por investimentos diretos em milhares de obras que acabaram paradas com o colapso das contas públicas”, disse.
O presidente da Câmara, Arthur Lira, também acha importante não abandonar o rigor fiscal, sobretudo quando o mercado começa a desconfiar das metas do governo. “Com relação à meta para o ano que vem (déficit zero), é importante que o governo mantenha um sarrafo alto. É importante que todos nós tenhamos isso como meta para atingir”, declarou ele durante evento com empresários nesta sexta-feira (1) em São Paulo.
Para piorar a situação concreta de Haddad, que reconheceu "ter dificuldades" em cumprir suas metas fiscais, ele voltou a prometer trazer recursos para deixar as contas equilibradas, mas o maior desafio continua sendo a aprovação das medidas que incrementam a arrecadação, além de impedir que o Congresso aumente ainda mais as despesas e desonerações, como a prorrogação dos incentivos para a folha de pagamento para 17 setores. O texto ainda recebeu emenda reduzindo a alíquota previdenciária para diversos municípios conforme o PIB per capta de cada um – o que deve fazer o governo federal arrecadar, pelo menos, R$ 11 bilhões a menos por ano.
Especialistas preveem oscilações movidas a confrontos políticos
Analistas de banco deixaram registrado em seus relatórios aos clientes que os ruídos políticos em torno do governo voltaram a dominar as análises e a assustar mercados. Prova disso é que a expectativa desequilíbrio nas contas públicas pressionou a bolsa de valores e o câmbio nos últimos dias. Em meio às agruras fiscais, o desencanto com Haddad já contamina indicadores, como os juros futuros. Por fim, uma perspectiva de piora do cenário internacional, puxada pela desaceleração chinesa, também pode voltar a pressionar juros básicos, que iniciaram o mês passado com trajetória de baixa.
Para Eduardo Galvão, diretor de Public Affairs da consultoria internacional BCW, Haddad e o governo “estão fazendo uma aposta arriscada”, tentando conciliar a promessa de equilíbrio das contas públicas com ganhos reais e imediatos na economia. “No cálculo político, o melhor momento para medidas impopulares é justamente o início da gestão, mas também é preciso seguir de olho na popularidade e no apoio do Congresso”, ponderou. Neste sentido, ele condiciona a manutenção da governabilidade e do sucesso do projeto petista de reeleger Lula em 2026 à continuidade dos indicadores econômicos gerais positivos, como inflação, desemprego e crescimento do PIB.
O especialista acredita que o ministro da Fazenda esteja se amparando em um conjunto de indicadores ainda favoráveis, como desemprego em queda e subutilização de mão de obra no menor nível desde 2016, além de uma confiança do consumidor elevada, no maior patamar desde 2014, e dos juros em trajetória de queda, sem previsão de saltos na inflação. “O risco-país está caindo e houve também uma melhora na confiança do empresário de serviços, comércio, indústria e construção civil”, observou.
Mas os maiores desafios para Haddad e governo continuarão, na avalição de Galvão, concentrados na agenda fiscal, que tem sido marcada por vitórias e derrotas ao longo dos meses. “Algumas medidas de aumento de gastos ainda não foram compensadas com uma recomposição da receita, mas também ainda não engatilharam algum movimento de pessimismo”, disse. Ele concorda que a dúvida em torno do déficit zero em 2024 continuará sobressaindo, sendo um fato que Haddad terá de encarar e contornar.
A cientista política Fernanda Arraes considera compreensível o aumento da inquietação entre os investidores, que priorizam naturalmente encontrar mais estabilidade como principal elemento para as suas decisões de investimento. “A estabilidade, por sua vez, depende de cenários mais sólidos, embora estejam frequentemente sujeitos a flutuações impulsionadas por eventos específicos”, disse. No contexto das tensões entre Haddad e Lira, ela ressalta que as negociações entre o Ministério da Fazenda e o Congresso são caracterizadas por altos e baixos, especialmente no que diz respeito à reforma tributária e, mais recentemente, ao arcabouço fiscal e suas implicações ainda em fase de discussão. “Da mesma forma que tais confrontos são inerentes ao processo legislativo, as reações oscilantes dos investidores também o são”, ressalva.