Pelo menos nove candidatos, um a prefeito e oito a vereadores, foram assassinados no Brasil no período entre as duas últimas semanas da pré-campanha e toda a campanha eleitoral até o primeiro turno, segundo revela um levantamento da Gazeta do Povo feito com base em dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). As mortes ocorreram todas até no máximo uma semana antes do primeiro turno, mas nenhuma foi esclarecida e a votação ocorreu normalmente nas cidades onde as vítimas concorreriam.
Analistas ouvidos pela reportagem dizem que os assassinatos podem estar ligados a tentativas do crime organizado de influenciar resultados nas eleições. Já a presidente do TSE, Cármen Lúcia, ao comentar as eleições no domingo (6), mostrou que os assassinatos políticos não estão entre as principais preocupações do tribunal. O TSE está mais focado no combate ao que considera "fake news" nas redes sociais e na investigação de compra de votos.
"Fake news e mentiras digitalizadas ou não eram uma preocupação enorme [para o TSE]. Entretanto, não aconteceu o que era inicialmente previsto: de ter um super uso nem de Inteligência Artificial, e nem nada disso", disse a ministra, que também defendeu maior regulação sobre as plataformas digitais.
Na antevéspera da eleição, sexta-feira (4), o então candidato a prefeito de São Paulo Pablo Marçal divulgou um laudo falso ligando o concorrente Guilherme Boulos a uso de cocaína. No dia seguinte (5), já havia laudos comprovando a falsidade do documento e a rede social Instagram foi obrigada a derrubar o perfil de Marçal. O ministro Alexandre de Moraes intimou o ex-candidato no mesmo dia a prestar esclarecimentos sobre o uso feito por ele da rede social X.
A mesma velocidade e diligência não ocorreram em relação a assassinatos possivelmente ligados ao processo eleitoral. Quando se soma aos nove candidatos os assassinatos de assessores políticos, o número de mortes sobe para 30 no período eleitoral.
“Não deveria mais haver espaço para a violência política nestes níveis, são medidas primitivas. As disputas - que deveriam ser no campo democrático e do debate político - se transformaram em alguns locais em estrutura de bangue-bangue, na qual tirar a vida de um candidato ainda é uma prática para eliminar um adversário. O que precisa é haver investigação e resposta para isso”, lamenta o advogado especialista em direito eleitoral Márcio Antunes. Praticamente todas essas mortes seguem sob investigação.
Bangue-bangue é mais comum em cidades pequenas no interior dos estados
Entre os casos mais emblemáticos está o registrado no dia 27 de agosto, quando o prefeito de João Dias, no interior do Rio Grande do Norte, Marcelo Oliveira (União Brasil) foi morto a tiros. Ele concorria à reeleição. O pai do político, Sandi Oliveira, também foi morto no mesmo atentado. A Secretaria de Estado da Segurança Pública e Defesa Social do Rio Grande do Norte (SESED-RN) investiga as motivações dos crimes.
Eleito em 2020, o então prefeito chegou a renunciar em julho de 2021, mas voltou à função em outubro de 2022. Ele alegou à Justiça que havia renunciado porque estava sofrendo ameaças de morte.
A governadora do Rio Grande do Norte, Fátima Bezerra (PT), disse no dia do crime que “nenhuma forma de violência será tolerada no Rio Grande do Norte”. Mas aquele não foi o único episódio registrado no estado.
Poucos dias antes, em 9 de agosto, a candidata a vereadora Edivania Bezerra de Freitas (MDB), de 44 anos, foi encontrada morta na cidade de Venha-Ver (RN). Ela foi localizada sem vida debaixo de um carro no meio de um lamaçal. A polícia prendeu um suspeito. O homem disse que a candidata havia morrido em um acidente, mas a versão é contestada pela polícia, que encontrou sangue dentro do veículo. O caso é investigado como homicídio.
No dia 3 de agosto, o candidato a vereador em Pombos, no estado de Pernambuco, José Sebastião da Silva (Republicanos), de 42 anos, foi assassinado a tiros. A morte foi na cidade de Vitória de Santo Antão, na zona da mata de Pernambuco. A Polícia Civil disse que o crime segue sob investigação.
No dia 20 de agosto, um atirador invadiu a casa de Ilso Justino dos Santos, candidato a vereador pelo Podemos. Santos já era vereador em Ervália, interior de Minas Gerais. Além dele, um homem de 39 anos que estava na residência também foi morto. Um suspeito, de 20 anos, foi preso. Segundo a PM, o atirador disparou seis vezes. A motivação está sendo investigada.
No dia 30 de agosto, o vereador e candidato à reeleição Leomar Cazoti Mandato (PV), de 43 anos, foi assassinado a tiros durante um evento político em Governador Lindenberg, no Espírito Santo. O caso também é apurado pelas autoridades.
No dia 4 de setembro, o candidato a vereador Welinton de Aguiar Mendonça (PSB), de 40 anos, foi morto a tiros dentro do carro no município de Tanguá, no Rio de Janeiro. A Polícia disse que o candidato não havia relatado ameaças ou intimidações, mas a hipótese de latrocínio está descartada, pois nenhum pertence foi levado. A principal linha de investigação é a de execução. Em uma nota, a direção estadual do PSB disse que “repudia a violência e manifesta total solidariedade à família e aos amigos de Welinton" e pede "uma investigação rápida e rigorosa para garantir que os responsáveis por esse crime bárbaro sejam punidos com o rigor da lei".
No dia 6 de setembro, o candidato a vereador José Simplício de Oliveira (PP), de 52 anos, foi morto a tiros em Tupanatinga, no Agreste de Pernambuco. Segundo a Polícia Civil, uma mulher de 44 anos, que estava no carro com a vítima, também foi atingida, mas sobreviveu. O caso também segue sob investigação.
No dia 25 de setembro, outro candidato a vereador foi morto a tiros, desta vez em Nova Iguaçu, no Rio de Janeiro. João Fernandes Teixeira Filho (Avante) foi atingido pelos disparos que também feriram duas mulheres que estavam com ele. Elas foram socorridas e sobreviveram. O candidato tinha 48 anos e estava dentro do carro quando foi surpreendido pelo atirador. As investigações apontam que ele pode ter sido vítima de uma emboscada.
No dia 27 de setembro, o candidato a prefeito de Amajari, Antonio Etelvino Almeida (PRD), de 66 anos, morreu no Hospital Geral de Roraima (HGR). Antônio estava internado em estado grave na UTI do HGR após ser alvejado com quatro tiros enquanto dormia em um sítio na noite de 24 de setembro. Ainda não se sabe o motivo do atentado e nem o autor do crime.
TSE diz ter criado observatório para monitorar violência política
O número de assassinatos de candidatos na campanha e no fim da pré-campanha foi mais baixo do que o registrado nas eleições de 2020, quando 25 mortes de candidatos foram contabilizadas.
A presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Cármen Lúcia, anunciou no fim de setembro a criação de um observatório permanente para monitorar e combater a violência política, além de detectar a infiltração de indivíduos ligados a facções no processo eleitoral, seja por meio de candidaturas ou financiamento de campanhas. Por ora, o órgão não anunciou nenhuma medida prática.
Especialistas ouvidos pela reportagem avaliam que a legislação eleitoral não evoluiu para acompanhar os processos necessários, a fim de barrar pessoas com ligações com facções criminosas e milícias de entrar na política. Caso haja uma reformulação da lei, ela não deve se transformar em instrumento de perseguição política ou coação de adversários.
No Rio de Janeiro, por exemplo, a filha do traficante Fernandinho Beira-Mar, líder do Comando Vermelho (CV), que cumpre pena de mais de 300 anos no Presídio Federal em Catanduvas (PR), teve sua candidatura deferida pela Justiça Eleitoral. Ela era suplente em Duque de Caxias e foi eleita no fim de semana com 7.355 votos. A filha do traficante foi condenada a 4 anos e 10 meses de prisão pelo crime de organização criminosa, mas, mesmo assim, obteve o deferimento de sua candidatura.
"Enquanto isso, o Deltan [Dallagnol] teve o mandato cassado por questões que, para muitos especialistas e juristas, sequer caracterizam crime eleitoral. Que lei é essa, que permite interpretações de todas as formas?", questionou o especialista em segurança pública Sérgio Leonardo Gomes.
Gomes também critica a preocupação em combater a desinformação, enquanto os crimes contra a vida de candidatos se intensificam, a exemplo do avanço de candidaturas ligadas à criminalidade.
Por que facções e milícias tentam se envolver com eleições?
As ramificações do crime organizado na política brasileira não são recentes, mas vêm se ampliando, avaliou o especialista. Membros de facções ou milícias começaram a financiar ou apoiar candidaturas visando obter benefícios políticos, como por exemplo impedir ações policiais em suas áreas ou fazer com que o poder público faça vistas grossas a crimes administrativos, como loteamentos irregulares, furto de energia elétrica, entre outros. Alguns prefeitos já foram investigados por suposta ligação com facções.
Esse tipo de influência é mais comum nas eleições municipais do que em pleitos para Câmara, Senado, governadores ou presidente. Por ora, as facções e milícias, em geral, focam em obter benefícios específicos em determinadas regiões e não se interessam em tentar influenciar políticas públicas gerais.
Em 2018, no Rio de Janeiro, o então prefeito de Japeri, Carlos Moraes, foi preso sob suspeita de ligação com o tráfico de drogas. Em 2020, ele foi condenado a seis anos de prisão em regime semiaberto, mas sempre se declarou inocente, e sua defesa alega que ele jamais se associou a traficantes.
Em 2016, um prefeito de Embu das Artes (SP) foi investigado sob suspeita de lavagem de dinheiro por meio de uma rede de postos de combustíveis. Havia suspeita de que ele operava para uma facção criminosa, mas no ano passado a Justiça determinou o arquivamento do inquérito, alegando falta de indícios de autoria e materialidade. O então prefeito sempre negou as acusações.
Em 2022, um prefeito de Seropédica, no Rio de Janeiro, também foi investigado por suspeitas de ligação com milícias. Ele se declarou inocente e sem vínculos com grupos criminosos.
Segundo o especialista em política Gustavo Alves, o objetivo dessas organizações é influenciar ou barrar ações de segurança pública, enfraquecer medidas de combate aos crimes e garantir apoio político para atividades ilegais.
"É comum que, em municípios com predominância de facções ou grupos criminosos, haja tentativas de infiltração, e isso tem se espalhado por todo o país. Nas eleições municipais, isso fica mais evidente, quando essas facções conseguem exercer maior influência econômica e coação, e a resposta nem sempre chega de forma rápida e eficiente pelas autoridades", afirmou o especialista.
O TSE não informou à reportagem sobre investigações relacionadas a membros de facções ou organizações criminosas nas eleições deste ano, seja por meio de candidaturas ou financiamento de campanhas. No entanto, entre os exemplos está uma operação realizada há duas semanas pela Polícia Federal em João Pessoa (PB), denominada "Território Livre".
Seis pessoas foram presas sob suspeita de envolvimento com organizações criminosas que atuavam para influenciar o resultado das eleições do último domingo (6). Entre os detidos estava a primeira-dama da capital paraibana, Lauremília Lucena. Segundo a Polícia Federal, ela teve papel importante na nomeação de pessoas ligadas a facções criminosas na prefeitura. O prefeito Cícero Lucena (PP) alegou que a prisão foi política e que sua esposa sofreu um "ataque covarde e brutal" de adversários, afirmando que provará na Justiça que foi vítima de perseguição. A Gazeta do Povo não conseguiu contato com a defesa da primeira-dama.
De acordo com o inquérito policial, o grupo também agia para coagir candidatos não ligados à organização criminosa e moradores que não apoiavam os nomes indicados por essa organização. As investigações também revelam, segundo a Polícia Federal, que a esposa de um traficante atuava politicamente por meio de uma ONG, buscando recursos em forma de doações de campanha.
Em Manaus, semanas antes das eleições, o candidato à reeleição David Almeida (Avante) afirmou, durante uma entrevista, ter sido ameaçado de morte por traficantes durante a gravação de um programa eleitoral. Manaus terá segundo turno no dia 27 deste mês, entre Almeida e Alberto Neto (PL). "Esses casos precisam ser resolvidos com rapidez, especialmente quando envolvem ameaças de morte feitas por traficantes", alertou o especialista.
Na capital do Amazonas, a polícia investiga se o Comando Vermelho (CV) tentou influenciar as eleições, determinando onde candidatos poderiam ou não fazer campanha, coagindo moradores a remover adesivos de candidatos não apoiados pela facção ou intimidando-os para que apoiassem os nomes apresentados pela organização criminosa.
As autoridades ainda não identificaram se as supostas ameaças ao candidato vieram da organização criminosa, mas a região onde ele sofreu as ameaças tem forte atuação do CV. "Esse é o tipo de investigação que precisa ser realizada antes das eleições, não depois", ressaltou Gomes.
O que as instituições dizem fazer para conter o crime organizado neste ano
Para o especialista em segurança pública Sérgio Leonardo Gomes, é preciso fazer uma reformulação de leis e adotar medidas de enfrentamento às facções. Segundo ele, os mecanismos de fiscalização e controle precisam existir para barrar a ação de criminosos. “A legislação, as regras, o endurecimento da lei precisam ser muito claros para o combate a criminosos, não para serem usadas contra adversários ou desafetos políticos como um ato de perseguição política, e, principalmente, à interpretação dada à lei pelos operadores da justiça, para não a manipularem conforme a conveniência”, salientou.
Na última semana antes do primeiro turno das eleições, diante do avanço preocupante de organizações criminosas sob o processo eleitoral, Cármen Lúcia anunciou a criação de um observatório permanente para combater a violência política, no lugar do atual Núcleo de Garantia do Direito dos Eleitores do TSE. A magistrada reforçou a necessidade de identificar os motivos de assassinatos de candidatos e falou sobre evidências de envolvimento de organizações criminosas nas escolhas de prefeitos e vereadores pelo Brasil, mas admitiu que o sistema é falho e lento.
“Os números são alarmantes [de violência]. Precisamos de uma resposta diferente, pois as abordagens atuais têm se mostrado ineficientes. Essa situação requer uma reformulação institucional, procedimentos mais eficazes e mudanças na legislação. O Estado deve agir de forma a reduzir a violência, e isso deve ser comprovado estatisticamente”, disse a ministra ao jornal O Globo poucos dias antes da eleição.
Para o especialista em segurança pública, uma resposta ágil e eficiente torna o crime eleitoral menos atraente às organizações. “É preciso ter uma resposta ágil caso contrário as facções seguirão avançando”, destacou.
Uma comissão composta pelo Ministério Público e a Polícia Federal cruzou e segue cruzando informações neste segundo turno, a pedido do TSE, na tentativa de identificar candidatos ligados, de forma direta ou indireta, a organizações criminosas ou financiados por elas.
“Mas quanto tempo essas respostas podem levar? Isso precisa ser ágil e eficiente, repito, não como instrumento de perseguição ou coação política ou de opinião, mas para barrar criminosos que tentam se infiltrar nos processos eleitorais”, reforçou Gomes.
O Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) também disse que está em alerta para o avanço das organizações criminosas nas eleições municipais deste ano. No mês passado, o órgão publicou a Resolução CNMP nº 297/2024. O objetivo é identificar e combater a influência desses grupos durante as escolhas nas urnas.
“A Resolução determina uma ação integrada entre o Ministério Público Eleitoral, os Grupos de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaecos) e os Núcleos de Inteligência dos Ministérios Públicos Federal, Estaduais e do Distrito Federal e Territórios”, descreve o CNMP.
São compartilhadas informações e estratégias para identificar e desmantelar redes criminosas, seja por meio de financiamento ilícito de campanhas ou de corrupção eleitoral.
“É importante manter o sigilo e a proteção de informações sensíveis durante essas operações e prever que o Ministério Público Eleitoral e os Gaecos promovam investigações e operações de inteligência coordenadas, utilizando ferramentas tecnológicas avançadas para monitorar e reprimir atividades criminosas a fim de assegurar a lisura e a legitimidade das eleições”, completa o Conselho Nacional do Ministério Público.
A Resolução também autoriza que o Ministério Público Eleitoral solicite apoio operacional a Núcleos de Inteligência dos Ministérios Públicos para a condução de investigações e operações de campo.
Em outra frente de ação, o Sistema Brasileiro de Inteligência e a Polícia Federal contam com relatórios que podem auxiliar no trabalho investigatório no período eleitoral, informou o Ministério Público Federal (MPF). “Essas informações podem ser agregadas às ferramentas e rotinas da Secretaria de Perícia, Pesquisa e Análise do Ministério Público Federal (Sppea) para cruzamento de dados e análise de informações relacionadas à prática de crimes nas eleições”, explicou.
“Porém, enquanto o Estado precisa seguir ritos e burocracias, as organizações criminosas não seguem qualquer burocracia, são ágeis e avançam muto mais rapidamente que o Estado”, avaliou Alves.
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