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Polêmica

6 respostas para entender o inquérito sigiloso do STF que censurou reportagem

A deusa da Justiça. Foto; Pixabay
Censura à reportagem que cita Dias Toffoli manchou reputação do tribunal junto aos brasileiros. Foto: Pixabay (Foto: )

O Supremo Tribunal Federal (STF) foi tragado por uma polêmica nessa semana que manchou a reputação da principal corte jurídica do país. Isso num momento político em que já não goza lá de tanto prestígio junto aos brasileiros.

Tudo por causa de um inquérito aberto de ofício (sem ser requerido por outro órgão) pelo presidente do STF, Dias Toffoli, no dia 14 de março, para investigar a disseminação de notícias caluniosas (fake news) e ameaças contra ministros da Suprema Corte. O gesto foi entendido como uma tentativa de perseguir setores do Ministério Público que fazem críticas públicas a membros do STF.

Para relatoria da investigação, Toffoli escolheu o colega Alexandre de Moraes, que passou a emitir ordens de busca e apreensão para a Polícia Federal cumprir. Moraes usou desse inquérito para determinar um ato de censura contra uma publicação da imprensa que citava o presidente do Supremo.

Essa decisão foi reprovada internamente por outros ministros da Corte e por diversas entidades da sociedade civil, como a Ordem dos Advogados do Brasil e o Ministério Público Federal.

A reportagem reuniu algumas peguntas e respostas para os leitores entenderam a enrascada em que o Supremo se meteu. Acompanhe abaixo:

O STF pode abrir inquérito de ofício?

Para a quase unanimidade dos juristas, procuradores e advogados que têm se manifestado na imprensa e em redes sociais, não. Para a Procuradoria-Geral da República (PGR), também não. Mas, para os ministros Dias Toffoli e Alexandre de Moraes, sim.

O fundamento que o presidente do STF invocou para abrir o inquérito é uma combinação dos artigos 13, inciso I e 43 do regimento interno do tribunal (RISTF). Diz o artigo 13 que “são atribuições do Presidente: I – velar pelas prerrogativas do Tribunal” e o artigo 43 que “ocorrendo infração à lei penal na sede ou dependência do Tribunal, o Presidente instaurará inquérito, se envolver autoridade ou pessoa sujeita à sua jurisdição, ou delegará esta atribuição a outro Ministro”.

O atual regimento data de 1980, mas foi recepcionado em bloco pelo tribunal com força de lei. A maior parte dos juristas, no entanto, tem levantado dúvidas de que o artigo 43 seja compatível com a Constituição de 1988, por duas razões principais. Primeiro, ele violaria o artigo 102, inciso I da carta magna, que dispõe sobre as competências originárias do STF. O próprio Supremo já decidiu que essas competências são taxativas, ou seja, elas não podem ser estendidas por lei ou interpretação.

Segundo, um inquérito dessa natureza violaria o que, no jargão jurídico, se chama de “sistema acusatório”, introduzido no Brasil em substituição ao “sistema inquisitório” pela Constituição de 1988. Nesse último sistema, o juiz acumula funções acusatórias e decisórias. No primeiro, coloca-se como equidistante entre a acusação, que cabe ao Ministério Público, e a defesa.

A procuradora-geral da República, Raquel Dodge, fez disso o centro de sua contestação ao inquérito: “o sistema penal acusatório estabelece a intransponível separação de funções na persecução criminal: um órgão acusa, outro defende e outro julga. Não admite que o órgão que julgue seja o mesmo que investigue e acuse”, escreveu no despacho em que determinava o arquivamento do inquérito.

Moraes contestou, afirmando que Dodge confunde a titularidade exclusiva da ação penal por parte do Ministério Público, prevista no artigo 129 da Constituição, com a condução do inquérito: “o sistema acusatório de 1988 concedeu ao Ministério Público a privatividade da ação penal pública, porém não a estendeu às investigações penais, mantendo a presidência dos inquéritos policiais junto aos delegados de Polícia Judiciária e, excepcionalmente, no próprio Supremo Tribunal Federal, por instauração e determinação de sua Presidência, nos termos do 43 do Regimento Interno”, escreveu na decisão que ignorou Dodge.

Mas, se o regimento permite, esse inquérito é legal?

Mesmo que o artigo 43 do regime interno do STF não viole a Constituição, isso não significa que este inquérito específico poderia ser aberto. Os críticos da medida têm apontado outras inconsistências no despacho inicial de Toffoli. Eis o que diz o artigo 43: “ocorrendo infração à lei penal na sede ou dependência do Tribunal, o Presidente instaurará inquérito, se envolver autoridade ou pessoa sujeita à sua jurisdição, ou delegará esta atribuição a outro Ministro”.

O despacho de Toffoli delimita a investigação de “notícias fraudulentas (fake news), denunciações caluniosas, ameaças e infrações revestidas de ‘animus calumniandi’ [intenção de caluniar], ‘diffamandi’ [de difamar] e ‘injuriandi [de injuriar]’, que atingem a honorabilidade e a segurança do Supremo Tribunal Federal, de seus membros e familiares”, mas nenhum desses fatos aconteceu “na sede ou dependência do tribunal”.

O “poder de polícia” do presidente do tribunal foi regulamentado pela Resolução 564/2015 do tribunal, que regulamenta os artigos 43 e seguintes. Nela, fica clara a intenção de evitar crimes dentro do STF: “o exercício do poder de polícia destina-se a assegurar a boa ordem dos trabalhos no Tribunal, proteger a integridade de seus bens e serviços, bem como a garantir a incolumidade dos ministros, juízes, servidores e demais pessoas que o frequentam”, diz a resolução.

Outra questão concreta diz respeito à falta de delimitação do objeto do inquérito e da possível autoria de eventual crime, o que tem consequências na discussão sobre o foro competente para tocar o inquérito: se não há autoridade com foro privilegiado perante o STF que tenha cometido crime no exercício da função, o inquérito não poderia correr perante a corte. Essa questão do foro não passa despercebida da resolução 564/2015.

O artigo 43 do RISTF autoriza o presidente do STF a instaurar inquérito se a infração à lei penal “envolver autoridade ou pessoa sujeita à sua jurisdição”, mas deixa aberta essa possibilidade mesmo se não for o caso, uma vez que o parágrafo 1º diz que “nos demais casos, o Presidente poderá proceder na forma deste artigo ou requisitar a instauração de inquérito à autoridade competente”. Na resolução de 2015, porém, só se diz que “nas demais hipóteses, o Presidente poderá requisitar a instauração de inquérito à autoridade competente”.

Por que AGU emitiu parecer favorável ao inquérito?

No dia 23 de março, a Rede Sustentabilidade protocolou no tribunal a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 572, questionando a validade do inquérito 4.781 do STF. A ação, que tem um pedido de medida cautelar, foi distribuída para o ministro Edson Fachin que, por sua vez, pediu a manifestação da PGR, do presidente do Supremo e da Advocacia-Geral da União (AGU).

A manifestação da AGU chegou ao gabinete no dia 3 de abril e surpreendeu muita gente, porque o governo se manifestou contrariamente à ação do partido. Em relação ao inquérito concreto, a AGU entendeu que a prerrogativa do STF de zelar por suas prerrogativas vale para todo o território nacional.

“Trata-se de interpretação sistemática do RISTF [que] enfatiza que a literalidade [do artigo 43] não exaure as responsabilidades administrativas do Presidente do Supremo Tribunal Federal na defesa da Corte, sobretudo nas hipóteses em que estejam sob ameaça as prerrogativas institucionais do tribunal”, escreveu.

Sobre a questão do foro, a AGU argumenta que não é possível saber desde logo quem são os autores e quais são os crimes, mas que, quando forem identificados, serão processados nos tribunais adequados, se for o caso.

Para a AGU, o inquérito 4.781 é um inquérito judicial – presidido por um juiz – hipótese que até o artigo 43 ser tirado da cartola era discutida apenas por causa da previsão da Lei Orgânica da Magistratura que garante aos juízes o direito de ser investigado por seus pares. “Embora não seja desenvolvido no âmbito policial, mas por intermédio da condução de magistrado, essa apuração possui, no plano geral, características coincidentes com as dos inquéritos comuns”. Pela mesma razão, a AGU entende não haver violação ao “sistema acusatório”.

O que aconteceu com o documento da Lava Jato que cita Toffoli?

O pivô da decisão do ministro Alexandre de Moraes, que fez a bomba do inquérito 4.781 explodir perante a opinião pública, com a censura da reportagem da revista Crusoé, foi um e-mail que a defesa do empreiteiro Marcelo Odebrecht enviou à força tarefa da Lava Jato, em Curitiba, em que delator elucida que “o amigo do amigo do meu pai” na planilha da empresa seria o então advogado-geral da União, Dias Toffoli, hoje presidente do STF.

O documento chegou aos procuradores na terça-feira (9 de abril), e a reportagem foi ao ar na quinta-feira (11). Em um trecho dela, os repórteres escrevem que o documento tinha sido “remetido” à PGR, mas, na sexta-feira (12), Raquel Dodge soltou uma nota dizendo que nenhum documento tinha chegado à Procuradoria. Toffoli pediu então providências e Moraes fiou-se na nota da PGR para dizer que a reportagem espalhava “fake news” para atrair ao inquérito 4.781 a competência decisória.

Na segunda-feira (15), depois que a decisão do ministro do STF veio à tona, a TV Globo informou que também teve acesso ao documento, mas que ele havia desaparecido dos autos do processo. Na terça-feira (16), o juiz Luiz Antonio Bonat, titular da 13ª Vara Federal de Curitiba, levantou o sigilo do seu despacho, informando que remeteu à PGR o documento horas depois da nota.

“Determinei, a pedido do MPF, o desentranhamento da documentação que instruía o despacho de 09/04/2019 da autoridade policial (evento 200) e a sua remessa, bem como de qualquer outras mensagens que eventualmente façam referência a agentes com foro privilegiado, à Procuradoria-Geral da República”, escreveu.

“Levante-se o sigilo da referida decisão, mantendo-o no mesmo nível do processo, eis que não há justificativa para que a decisão permaneça em sigilo superior, bem como para permitir acesso pela Defesas cadastradas e afastar possíveis interpretações equivocadas a respeito do seu conteúdo”, completou Bonat.

É possível reverter as decisões de Moraes e anular o inquérito?

O caminho mais curto para reverter as decisões de Alexandre de Moraes e eventualmente extinguir o inquérito é o plenário do STF. Até o momento, o ministro Marco Aurélio Mello foi o único a se manifestar publicamente, mas outros ministros têm avaliado que a posição de Toffoli e Moraes tende a ser derrubada no plenário. O placar mais provável, caso nada mude e Toffoli vote, seria de 7 a 4, especula-se com base em posicionamentos recentes dos ministros da Corte.

Há dois caminhos para a discussão chegar ao plenário e ambos dependerão, antes, de o presidente da Suprema Corte, Dias Toffoli, colocar a discussão em pauta. O primeiro seria Raquel Dodge apresentar um agravo regimental contra a decisão de Moraes que ignorou o pedido de arquivamento do inquérito. O segundo seria o ministro Edson Fachin, relator da ADPF 472, aprontar seu voto e liberá-lo para o plenário.

Na terça-feira (16), Fachin deu cinco dias para Alexandre de Moraes e Raquel Dodge se manifestarem. Como a ação inicial da Rede Sustentabilidade tem um pedido de cautelar, Fachin poderia ainda, em tese, decidir liminarmente sobre a questão e suspender o inquérito, contrariando a decisão do presidente do STF.

Mas essa saída, além de colocar ministros em rota de colisão, o que os integrantes da Corte tentam evitar em procedimentos, também poderia causar ainda mais confusão jurídica, suscitando, caso Toffoli ou Moraes resolvessem contestar Fachin, um conflito de competências que, fatalmente, teria de ser resolvido pelo plenário.

Toffoli e Moraes podem mesmo sofrer impeachment?

Depende. Assim como no caso do impeachment de presidente da República, a Lei 1.079/1950 faz do Senado o juiz dos crimes de responsabilidade dos ministros do STF – com a diferença de que, neste caso, cabe ao presidente da Casa o juízo de admitir ou não o início do processo. Sendo assim, a formação da convicção de crime depende tanto de fatores jurídicos quanto de considerações políticas.

A competência do Senado de processar ministros do Supremo está prevista no inciso II artigo 52 da Constituição. Já no artigo 39 da Lei 1.079 estão as hipóteses de crimes de responsabilidade: “I – alterar, por qualquer forma, exceto por via de recurso, a decisão ou voto já proferido em sessão do Tribunal; II – proferir julgamento, quando, por lei, seja suspeito na causa; III – exercer atividade político-partidária; IV – ser patentemente desidioso no cumprimento dos deveres do cargo; V – proceder de modo incompatível com a honra dignidade e decoro de suas funções”.

O senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE), o mesmo que é autor de dois requerimentos para criação de uma CPI dos tribunais superiores, a chamada CPI da Lava Toga, anunciou que vai protocolar um pedido de impeachment contra os ministros Dias Toffoli e Alexandre de Moraes por “uma sequência de atos de abuso de poder que configuram crime de responsabilidade”.

Crimes de abuso de autoridade, porém, estão previstos na Lei 4.898/1965 e configuram delitos comuns que, em tese, ensejariam a possibilidade de denúncia ao próprio STF, já que ministros da Corte tem foro privilegiado.

A presidência do Senado nunca deu prosseguimento a pedidos de impeachment de ministros do STF. A consultoria jurídica do Senado, em consonância com os tribunais superiores, desenvolveu o que se chama de “jurisprudência defensiva” para restringir ao máximo o espaço das hipóteses de impeachment.

“É preciso deixar muito claro que os fatos que atraem a responsabilização de altos agentes da República por crime de responsabilidade são aqueles que se qualificam e se revestem de extrema gravidade”, escreveu um advogado do Senado no último parecer disponível a pedido de impeachment do ministro Gilmar Mendes.

Uma das porteiras mais estreitas é que a consultoria não aceita reportagens da imprensa como prova para instruir o processo – como nenhum ministro do STF foi investigado formalmente, na prática é quase impossível dar início a um processo.

Por isso, os senadores que são favoráveis à abertura de um processo de impeachment, bem como da CPI da Lava Toga, sabem que a pressão sobre o presidente David Alcolumbre (DEM-AP) e o clima da Casa são fundamentais para um procedimento desta natureza ir para frente.

Predomina no Senado, entre parte do Centrão, e no PT, MDB, PSB e PDT a interpretação de que qualquer movimento nesse sentido beneficiaria o presidente Jair Bolsonaro (PSL). São esses partidos que deram a maioria dos votos pelo arquivamento da Lava Toga na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado.

Por outro lado, o governo trabalha para evitar maiores atritos com o Supremo e ficar fora desta briga em nome da estabilidade institucional. O parecer da AGU a favor do inquérito é um passo nessa direção. A decisão de Moraes de censurar a Crusoé, no entanto, repercutiu mal entre comandantes e militares da cúpula do Planalto. Bolsonaro, no entanto, fez apenas uma menção genérica, no Twitter, sobre a liberdade de expressão ser "inviolável", mas sem citar a decisão de Moraes.

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