Ernesto Araújo, em 2019, durante Seminário Empresarial Brasil-China; para ex-ministro, Brasil está se tornando uma colônia agrícola do país asiático| Foto: Isac Nobrega/PR
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Ernesto Araújo, ex-ministro de Relações Exteriores do governo de Jair Bolsonaro, concedeu entrevista à Gazeta do Povo, por videoconferência, na última quarta-feira (24), e tratou de temas relacionados à direita brasileira, às eleições americanas e à influência da China. No passado, Araújo afirmava que Donald Trump poderia ser uma referência para a nova direita brasileira, agora o ex-ministro considera que a inspiração deve ser o presidente da Argentina, Javier Milei.

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Naquele tempo, em 2016, ele argumentava que o discurso do republicano trouxe ao Brasil ideias antes impensáveis, e que passaram a fazer parte do debate público e das propostas colocadas à mesa da sociedade. Agora, considera que sua influência poderia se limitar a apenas fortalecer eleitoralmente o grupo de Bolsonaro. Em vez disso, a direita, a seu ver, deveria observar o que Milei está fazendo na Argentina na economia, na política externa e na preservação da família.

“Está reduzindo a inflação, trazendo investimentos, devolvendo emprego, devolvendo a confiança econômica. A Argentina e o governo Milei, para mim, é que tem que ser o paradigma hoje da direita brasileira, mais do que o Trump”, diz.

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Na entrevista, Araújo também comentou a entrada de Kamala Harris como adversária de Trump na corrida eleitoral, disse como avalia que será a disputa nos estados americanos entre democratas e republicanos. Ele ainda defendeu sua gestão à frente do Itamaraty e reforçou o alerta ao Brasil do risco representado pelo eixo China-Rússia.

Após ser dispensado do cargo de ministro, em 2021, Ernesto Araújo se licenciou do cargo de diplomata. Hoje, vive em Connecticut, nos EUA, onde a esposa, também diplomata, serve num consulado brasileiro. Ele também oferece reflexões sobre política interna e internacional em seu canal no YouTube.

Leia, abaixo, os principais pontos da entrevista:

Um eventual governo Trump pode criar uma nova onda de direita na América Latina que chegue ao Brasil? Muita gente acredita o que aconteceu em 2016 e 2018 possa se repetir em 2024 e 2026.

Ernesto Araújo: Numa palavra, diria que sim. Mas vamos às nuances. Depende do que se considera direita brasileira. No que diz respeito à América Latina, a eleição do Trump favorece uma atmosfera nos países rumo à direita.

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Na prática, isso signifique, talvez, a volta da direita na Colômbia, onde Gustavo Petro faz um governo péssimo e impopular. O Chile também é um país que teve tendência à direita, agora está com um governo de esquerda, que não é tão ruim quanto o da Colômbia. E a tendência é que não ganhe um candidato de esquerda na próxima eleição.

Na Bolívia não vai mudar sem uma pressão externa muito grande, assim como na Venezuela. São países que estão na mão da esquerda, não em virtude de eleições, mas de todo um sistema de manipulação. No México, em que a esquerda acabou de ganhar e onde a direita está muito fraca e que não é conservadora, a eleição está longe, daqui a 6 anos, Trump pode influenciar talvez na questão da imigração, condicionar acordos comerciais ao México, conter a imigração ilegal, como aconteceu quando ele foi presidente.

E no Brasil?

Ernesto Araújo: Tem gente que acha que não existe direita fora do bolsonarismo. Eu acho que existe, e que precisa existir. Tenho uma preocupação com essa expulsão de qualquer tipo de ideia, na direita brasileira, que não seja uma adesão pessoal e cega ao ex-presidente Bolsonaro. Eu acho que isso está matando, na verdade, a direita brasileira.

E acho que a vitória do Trump talvez reforçaria essa visão da direita brasileira como restrita ao bolsonarismo. Sinceramente, no meu ponto de vista, não acho isso bom. Acho que a direita tem que ser uma direita de ideias e não uma direita de pessoas. E a eleição do Trump reforçaria justamente o que o bolsonarismo tem feito, que é uma direita dentro do sistema. Ele não é mais uma tentativa de mudar o sistema, mas uma tentativa de conquistar mais cargos eleitorais dentro do sistema.

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O Trump, na primeira vitória dele, abriu muito espaço para uma direita de ideias. Hoje, como a direita de ideias está sendo sugada pelo bolsonarismo, a vitória do Trump – e como ele se identifica e é amigo do Bolsonaro, as famílias são amigas – a tendência é que vá reforçar apenas esse núcleo, e manter a noção de que não interessam as ideias, mas sim a figura do Bolsonaro, para eleger em 2026 as figuras apoiadas pelo ex-presidente.

O Trump só faria uma diferença para a direita no Brasil se tivesse o mesmo efeito que teve em 2016. No sentido de que toda uma série de ideias que as pessoas não sabiam que eram pensáveis, são pensáveis. Quem começou isso, na verdade, foi Olavo de Carvalho.

Olavo trouxe as ideias e Trump mostrou que elas são eleitoralmente viáveis num país como os Estados Unidos, com a influência que têm. A eleição do Trump significaria a volta a uma direita de ideias? Se for, está ótimo, mas tenho medo que não seja.

Se a vitória do Trump carregar energia apenas para o bolsonarismo brasileiro, isso vai fortalecer as ideias de liberdade econômica? Não necessariamente. Vai favorecer as ideias do conservadorismo filosófico? Vai favorecer o alinhamento com os países democráticos ocidentais? Não sei, espero que sim, mas acho que não.

Haveria uma nova inspiração, então, para a direita brasileira?

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Ernesto Araújo: Para mim, o mais importante para o futuro da direita brasileira é o exemplo do Javier Milei, na Argentina. A direita brasileira precisa se modelar no Milei e no governo que ele está fazendo. Um compromisso com o libertarianismo econômico, junto com uma coluna vertebral sólida conservadora, de valores conservadores, de família, contra o aborto e tudo isso. E uma política externa de claro, inequívoco e inegável aproximação e aliança com os países do Ocidente democrático. São os três elementos que a direita brasileira precisa voltar a ter.

A Argentina está muito mais perto, e é muito mais relevante o exemplo do Milei para o Brasil. Ele foi no CPAC e teve aquele oba-oba, mas as pessoas têm que olhar o que o Milei está fazendo, e [o que fez] de diferente do que Bolsonaro fez.

O Milei está fazendo aquilo o que eu gostaria de ter feito. Tentei fazer até um certo ponto, mas lá não tem ‘Centrón’ [referência ao Centrão no Brasil], o lobby chinês não está tão avançado na Argentina. O pensamento do estamento militar brasileiro prejudicou muito a formulação de uma nova política externa que a gente precisava ter formulado. Na Argentina, o estamento militar não tem influência absolutamente nenhuma no governo Milei, o que é muito bom.

O Milei é o nosso exemplo. Está reduzindo a inflação, trazendo investimentos, devolvendo emprego, devolvendo a confiança econômica. A Argentina e o governo Milei, para mim, é que tem que ser o paradigma hoje da direita brasileira, mais do que o Trump. O Trump talvez como inspiração, porque foi presidente, voltou e ganhou. Mas eu não vejo hoje no presidente Bolsonaro, caso possa voltar a concorrer, a mesma garra que ele tinha, em parte inspirado em Trump, em 2018. Não vejo a mesma garra de transformação do país.

Kamala Harris acaba de se consolidar como candidata Democrata nas eleições americanas. Em pouco tempo atraiu grande apoio financeiro e performance melhor que Joe Biden nas pesquisas. Você acha que Donald Trump ainda é o favorito?

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Ernesto Araújo: Sim, mas menos favorito. Kamala Harris tem o fator da novidade política eleitoral. Isso sempre conta muito, embora ela já seja conhecida como vice-presidente. Ela entra um pouco como uma folha em branco, até porque tem tido uma presença bastante discreta na sua carreira política, não se notabilizou por nenhum feito.

Isso gera um maior entusiasmo por parte da máquina Democrata, que tinha chegado um pouco no fundo do poço, de falta de entusiasmo, com a candidatura Biden, tanto por parte dos doadores, quanto por parte da máquina do partido, quanto por parte do eleitorado em geral.

Começou a recuperar um pouco de energia que tinha perdido, e esses fatores de mobilização colocam a Kamala Harris numa trajetória ascendente nesse primeiro momento. Não que o Trump esteja numa trajetória descendente.

Outro fator é que a renúncia do Biden e a aparição da Kamala pegou um pouco da atenção imediata das pessoas em relação ao atentado contra o Trump, que era um fator que beneficiava a candidatura dele, com a simpatia pela vítima de um atentado. Inclusive a desconfiança de que teria havido, pelo menos, negligência por parte do serviço secreto, portanto, do governo Biden, de proteger o Trump. Isso estava gerando uma onda positiva em favor do Trump, que de certa forma amainou bastante.

O período que a gente entra agora vai ser o da construção da personalidade da Kamala Harris como candidata a presidente. Vai ser provavelmente um trabalho de mídia, mais que qualquer outra coisa. A mídia americana é praticamente Democrata, age como se fosse marqueteira de campanha. Se vão conseguir construir uma imagem, não sei, mas a situação coloca os Democratas um pouco mais na ofensiva, porque estavam completamente na defensiva.

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Pessoalmente, acho difícil construir a imagem da Kamala Harris. É uma personalidade política bastante vazia. Não tem nenhuma fala marcante. Positivamente marcante, certamente não.

Qual será o mote da campanha de Kamala Harris?

Ernesto Araújo: A questão identitária vai ser talvez o principal elemento, que é um pouco da reedição da construção da imagem do Barack Obama. Uma pessoa negra, de origem indiana, e ao mesmo tempo mulher. Envolve também uma desconstrução do Trump, como alguém racista e misógino. Mas há uma diferença entre Kamala e Obama. Ele tinha uma habilidade de usar a imagem identitária, de primeiro candidato a presidente negro, mas não explicitamente, combinando com um discurso muito suave, moderado, voltado para classe média, sem falar de grandes temas de reforma social e sem procurar uma polarização racial.

Havia uma habilidade de criar uma ideia de que, como era um candidato negro, então tudo que fosse contra ele seria racismo. Mas ele não alegava isso. Era figura sorridente, simpática, que não ficava apelando para a questão racial. Se mostrava como um presidente moderno, unificador. Não acho que a Kamala Harris tenha a habilidade de fazer essa construção.

E se ficar nessa questão racial e de gênero, não significa muito em termos de conteúdo. Acho que os americanos que estão em dificuldade econômica, pessimistas sobre seu país, não vão se mobilizar por isso. A grande novidade foi o Obama, como o primeiro presidente negro. O fato de poder ser uma presidente mulher, a Hillary Clinton, embora não tenha sido, desgastou muito essa ideia. Não conseguiu ser eleita nem transformar isso em empatia com as pessoas.

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E Trump, deve mudar a campanha com a entrada de Kamala Harris?

Ernesto Araújo: Vai ter que fazer uma reengenharia, porque, na eleição para presidente nos Estados Unidos, a campanha não é de um partido contra o outro, mas de uma pessoa contra a outra. Mudando a pessoa, muda necessariamente a estratégia, a mensagem, que tem que ser adaptada a quem é o seu é adversário. E grande parte da campanha é de destruição do adversário.

É o que os Democratas fazem contra o Trump o tempo todo, e os Republicanos estavam fazendo ao mostrar as debilidades do Biden. Agora têm que achar quais são os pontos fracos da Kamala Harris. Para se defender, Trump terá que trabalhar o discurso de que não é racista.

Antes, a campanha Biden estava tentando colar nele a imagem de ter sido condenado, no caso da Stormy Daniels [atriz pornográfica que teria sido paga na campanha de 2016 para não revelar que fez sexo com Trump]. Mas acho que essa narrativa meio que cansou.

E qual deve ser o mote da campanha de Trump?

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Ernesto Araújo: O Trump tem um programa concreto, que é deter a imigração ilegal, tentar reindustrializar o país, e restaurar um sentido de nacionalidade, de cidadania comum. Isso não muda.

A ideia de que Estados Unidos, ou qualquer país, não é simplesmente um lugar com um bando de gente morando. É uma comunidade que tem uma cultura, determinados valores, tradições e afetos em comum, e não um grande estacionamento, onde cada um vai e faz suas compras. O candidato a vice-presidente, J. D. Vance, traz um pouco dessa temática, aliada a uma segunda dimensão, que diz respeito à classe econômica trabalhadora mais empobrecida.

Embora alguns pensem que a globalização tenha sido boa para os países desenvolvidos, para o americano médio não foi. Desde os anos 90, ele está com sua renda em termos reais estagnada, seu poder de compra reduzido, e enfrenta precariedade de emprego. Ao longo dos últimos 30 anos, ele sofreu com diferentes políticas econômicas que exportaram os empregos, sobretudo os industriais, para o México, para o Sudeste Asiático, para a China principalmente.

Houve um empobrecimento da classe média, que passou a depender de empregos precários, na área de serviços, e que sente que o país não faz mais nada por ele. E ao mesmo tempo, essas pessoas são desprezadas pela grande mídia e pelas elites. Grosso modo, a elite financeira da Costa Leste, e a elite cultural e tecnológica da Costa Oeste, do Silicon Valley.

Essas elites prosperaram nesse período, mas mantêm um imenso desprezo pelo americano médio, daquele país sobre qual você simplesmente voa de Los Angeles a Nova York. A classe média baixa se revolta, pois é vista como um bando de gente ignorante, e que rejeita temas privilegiados dessas elites, como o ‘woke’, a ideologia de gênero e a questão do clima.

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O Trump e o Vance apelam a essas pessoas, dizendo que os representam, que não os desprezam. Ao contrário, que entendem a sua vida – caso do Vance, que vem dessa origem, cujo livro ‘Hillbilly Elegy’, é uma elegia desse caipira.

Uma imagem estereotipada desse caipira americano está no filme de comédia ‘A Família Buscapé’. É assim mesmo?

Ernesto Araújo: Eu conheço razoavelmente os Estados Unidos. Pelas minhas contas, já visitei 27 dos 50 estados, alguns mais, outros menos. A imagem que se faz na Costa Leste e na Costa Oeste, e que a imprensa brasileira e a europeia fazem desse americano, de que são um bando de ignorantes, racistas, preconceituosos, é completamente distorcida.

As pessoas se revoltam de serem vítimas dessa caricatura e querem alguém que os represente, não só por uma questão de autoestima – e Trump e Vance devolvem isso a essas pessoas –, mas alguém que vai trabalhar pelos seus interesses na questão comercial, por exemplo. De tentar reindustrializar ou ao menos de parar a desindustrialização do país.

E uma questão muito importante, que é o ponto do Vance no livro dele, é de que se trata de uma questão social e econômica, não uma questão racial. Ou seja: a linha divisória dos Estados Unidos não é entre brancos e negros, ou entre brancos e não brancos. Não, é entre as elites enriquecidas e a classe média, a classe média baixa e trabalhadora empobrecida.

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Não é que o país está bom para brancos e ruim para negros. Não, o país está bom para os multimilionários e seus temas, na Costa Leste e na Costa Oeste, e está ruim para todo o resto, para o americano médio, tanto branco, quanto latino e negro.

E como os Democratas, que têm a preferência dessas elites, respondem a isso?

Ernesto Araújo: Eles reforçam o discurso do identitarismo, dizendo que os Republicanos são racistas e quem é negro ou latino tem que votar nos Democratas, não importa o conteúdo das políticas de um e de outro. E isso cola com muitos eleitores. Para as pessoas brancas dessa maioria empobrecida, falam que se votarem nos Republicanos, é porque são racistas. Há a introjeção de racismo e de culpa e isso faz com que as pessoas esqueçam dos seus interesses, deixem de comparar qual a plataforma dos partidos.

Em 2016, quando Trump venceu Hillary Clinton, havia um meme com ela numa campanha, nos estados do Meio Oeste, que perderam indústria, perguntando o que o público queria. As pessoas respondem ‘emprego’ e ela respondia ‘ok, banheiro transgênero, entendi!’. Essa desconexão das elites foi responsável, em grande parte, pela derrota dela.

Uma vitória do Trump, agora, depende de um número suficiente de pessoas olharem para os seus interesses econômicos e para sua condição de americanos. E uma vitória dos Democratas depende que as pessoas não olhem para os seus interesses econômicos e apenas para a cor da sua pele e sua etnia, e de acordo com o mantra de há um partido racista e outro não.

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Além de empregos precários e renda estagnada, o que aflige a classe média americana?

Ernesto Araújo: O elemento novo nessa eleição e chave é a questão da imigração maciça. Estimativas apontam que 10 milhões de imigrantes ilegais chegaram no governo Biden. Os Republicanos e Trump se opõem fortemente a isso. Já havia um pouco disso no primeiro mandato, com a construção do muro com o México. Mas ele diz que tinha controlado a imigração ilegal e agora ela disparou.

A imigração ilegal afeta muito a população mais pobre americana, que compete com os estrangeiros [pelos] empregos de mais baixa remuneração, de serviço provisório. A escola do filho do americano de classe média baixa já estava com a qualidade muito degradada, e agora, numa sala que tinha 40 crianças, existem 70, sendo que as outras 30 não falam inglês, chegaram agora e não têm como acompanhar o nível da daquela escola, que já era ruim.

Na saúde, americanos de baixa renda têm direito, pelo programa ‘Medicaid’, a atendimento gratuito nas emergências e para determinados tratamentos. Na Califórnia, que é um estado praticamente de imigrantes Ilegais, é impossível ter um atendimento normal em razão da alta demanda no sistema de saúde público.

A questão da imigração afeta também a segurança. Estão sendo formadas gangues venezuelanas, por exemplo, em vários lugares. Se admitirmos que 99% dos imigrantes é formanda por gente boa, e 1% seja criminoso ou mal intencionado, são 100 mil pessoas. Dá para fazer bastante gangue. Esse não é um problema racial. Você pode ser branco, negro, qualquer cor, e enfrenta problemas gravíssimos de segurança [se] tem gangue no seu bairro.

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Há também a ideia difundida pelos Democratas, e reproduzida mundo afora, de que Trump poderia acabar com a democracia americana e, portanto, ser uma ameaça também ao mundo democrático. Que impacto teria, em termos globais, uma vitória de Trump? Um aumento real dos conflitos já existentes, ou uma acentuação do choque ideológico nos EUA?

Ernesto Araújo: Trump e os Republicanos hoje são mais conscientes do que a gente chamaria de guerra cultural, ou de choque civilizacional. De que existe uma civilização ocidental, com seus valores, sua história, e que os Estados Unidos e a democracia são parte disso. Vejo esse tema voltando à tona, mas de maneira mais concreta e focada na China. No sentido de que ela é a grande ameaça não só aos Estados Unidos, mas à liberdade no mundo.

Para eles, é claríssimo que a China tem um projeto de hegemonia mundial totalitária. Não é apenas uma corrida econômica e comercial, é uma disputa ‘apocalíptica’ entre o princípio da liberdade, representado pelo Ocidente, e o princípio totalitário, representado pela China. Não são simplesmente dois atores equivalentes concorrendo pelo mesmo prêmio. São atores que têm uma visão de mundo e um projeto de mundo completamente diferente. Aqui falo um pouco das minhas ideias, mas acho que isso está refletido no que eu vejo dos americanos.

Da perspectiva brasileira, acho que a gente não deve conceber isso como uma rivalidade geopolítica entre dois atores equivalentes. Há uma rivalidade entre dois modelos de mundo, entre duas visões de ser humano, inclusive. A visão ocidental herdada dos gregos e do cristianismo é uma visão centrada na liberdade e na espiritualidade. O ser humano é material e espiritual ao mesmo tempo. No outro lado, você tem uma visão totalitária, de organização de cima para baixo, de uma sociedade totalmente controlada e materialista. Ou seja, o ser humano é apenas material.

São duas coisas muito profundas que estão no conflito, e não apenas Estados Unidos e China. Existe um conflito civil mundial em cada país, e quase que em cada pessoa, em cada família, entre dois futuros possíveis para a humanidade. E vejo o pessoal do Trump com essa noção.

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De 2020 para cá, Biden e o Ocidente foram incapazes de conter um essa influência na China no mundo?

Ernesto Araújo: A China está em expansão há muito tempo. E por que a questão de nação e soberania é tão importante nessa grande batalha? Porque uma das armas do lado totalitário hoje é o multilateralismo, a ONU e a ideia de que tudo tem que ser tratado multilateralmente.

O multilateralismo não é um campo neutro. Hoje, é um campo totalmente confortável para os totalitários e cada vez mais desconfortável para os países democráticos. A Agenda 2030 e tudo que emana das decisões sobre o clima e do Fórum Econômico Mundial – que embora não seja um órgão multilateral oficial, acaba cumprindo esse papel – em nada incomoda a China.

Não fala nada de liberdade, de necessidade de democracia. Tudo é em função de eficiência econômica e de serviços, controle do que você come e do que consome por causa do clima. E tudo em uma perspectiva distributivista também, e não de livre iniciativa.

O multilateralismo não é simplesmente um lugar onde países com visões diferentes discutem. Ele tem uma ideologia própria, que vai se impondo com base no prestígio do conceito, mas que é muitíssimo mais semelhante ao projeto totalitário chinês do que a concepção de liberdade do Ocidente. A China e o totalitarismo se valem disso, e de um momento em que os EUA não estão mais defendendo uma ideia de nação, que é a ideia de que você tem a necessidade de uma coesão social em cada país, baseada em algo além de simplesmente um papel de cidadania, de que o polo das decisões tem que ser o próprio país.

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O sistema multilateral funciona assim: você tira poder decisório dos governos e da sociedade dos países democráticos e transfere inicialmente para instâncias multilaterais. No fundo, está transferindo isso para as potências totalitárias. É uma bomba de sucção de liberdade.

E quanto a essa ideia de que haveria uma ordem internacional liberal desde a Segunda Guerra, que Trump tentou acabar com isso, que Biden a teria restaurado, e que se Trump voltar, ele vai acabar com ela... Ora, quem está acabando com essa ordem é a China, seus aliados e o programa totalitário. E isso há muito tempo, sobretudo desde o começo do ano 2000.

A ordem liberal do pós-guerra é uma ordem basicamente baseada no princípio da liberdade. Se você vê um mundo onde o poder crescente é de países totalitários, e o poder decrescente é de países democráticos e liberais, a ordem liberal está sendo destruída não pelo Trump, mas apesar do que ele tentou fazer.

Mas você acha que o Trump poderia preservar a ordem liberal no mundo? Porque o que se ouve é um Trump com um discurso de interesse para dentro dos Estados Unidos, de salvar o próprio país do poderio chinês.

A ordem liberal precisa de uma superpotência da liberdade. E quem vai ser essa superpotência? O Uruguai, o México, a Áustria? Não. Vai ter que ser os Estados Unidos, é o único que tem essa possibilidade. Eu tenho o sonho de que o Brasil um dia será.

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Mas [até lá] você precisa dos Estados Unidos forte. Não será a Europa, que não tem essa vontade. Então precisa haver um país - Estados Unidos - forte e confiante em si mesmo e nos seus valores. Se você mora num bairro que está cheio de bandidos, você quer que tenha ao seu lado alguém que seja forte, e você quer estar junto, dentro de uma coalizão.

Para o Ocidente se preservar, o papel de liderança dos Estados Unidos é imprescindível?

Ernesto Araújo: Totalmente. Liderança, com poder industrial, militar e convicção nos seus valores. Que são valores da liberdade, como acho que são, no fundo, os valores do povo brasileiro, embora não sejam hoje praticados pelo governo brasileiro.

E a gente se identifica com eles não porque são americanos, mas porque a gente é pró-liberdade. E quem é pró-liberdade gosta que exista uma grande potência pró-liberdade e quer estar junto para defender a liberdade.

Para um mundo onde haja lugar – idealmente crescente, mas pelo menos mantido – para as democracias, você precisa ter um quantum de poder na mão das democracias. Se você tiver democracias militarmente e economicamente enfraquecidas, e países totalitários fortalecidos e com projeto expansionista, claro que esses vão, como já estão, exportando o modelo deles.

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E, por isso, Trump precisa reforçar os Estados Unidos, como o Brasil precisaria se reforçar, como os países europeus precisariam se reforçar, em vários sentidos. Não é só uma política econômica saudável. É também no sentido de adesão e convicção nos seus próprios valores.

E quanto à ONU e aos demais organismos multilaterais?

Ernesto Araújo: Você não vai construir uma ordem mundial liberal baseada na ONU, que é um campo de ação dos totalitários. A ONU coloca o Irã na presidência do Conselho de Direitos Humanos, não faz absolutamente nada pela democracia na Venezuela nem em lugar nenhum. Vá à Agenda 2030 e procure a palavra democracia. Não tem nada.

A ordem verdadeira de liberdade no mundo tem que ser baseada num país ou num grupo de países fortes para manter essa ordem, e não nas Nações Unidas. E a espinha dorsal da ordem liberal são os Estados Unidos. Se fosse ou for amanhã o Chile a grande potência, será o Chile. Se for o Brasil, será o Brasil. Mas precisa haver uma espinha dorsal, um país ou uma coalizão.

Nesta semana, o ex-ministro José Dirceu, formulador do PT, defendeu uma ‘parceria estratégica’ do Brasil com a China, onde está de visita. Segundo ele, o mundo que vai predominar será formado por China, Indonésia, Índia, Irã, Rússia. O Brasil, rico em recursos naturais, teria que aderir, e daí também a ênfase no BRICS, agora ampliado. Frente a isso, a dificuldade de Trump para preservar a ordem liberal não seria mais difícil, inclusive por eventual afastamento do Brasil, cujo governo atual não tem simpatia por ele? Dirceu, aliás, manifestou interesse na adesão do Brasil à nova Rota da Seda, bem como na atração de capital e tecnologia da China para investimentos no país.

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Ernesto Araújo: O Brasil está dentro de um projeto de hegemonia global chinesa. O José Dirceu está interessado na Rota da Seda, porque é a rota da propina. Por isso as elites corruptas de tantos países do mundo se interessam pela nova Rota da Seda [oficialmente chamada de iniciativa Cinturão e Rota, que consiste num conjunto de investimentos da China em infraestrutura na Ásia, Europa, África e América]. Através de investimentos em infraestrutura, a China cria dependência nos países e lealdade nas elites corruptas de países ao redor do mundo.

A China tem um papel previsto para o Brasil na ordem que ela quer construir: de fornecedor de produtos agrícolas para a própria China. E a elite corrupta brasileira, da qual faz parte o PT – embora não exclusivamente, porque inclui aí outras forças políticas, o que chamo de ‘corruptariado’ – está muito confortável com isso. É totalmente um projeto neocolonial.

O Brasil está se tornando uma colônia agrícola da China, que investe no Brasil naquilo que facilita a exportação para ela dos produtos brasileiros nos quais tem interesse. Em infraestrutura? Sim, para exportar para a China. E o Brasil tem se tornado uma colônia agrícola da China com o beneplácito da elite colonial, que depende e que tem excelentes laços com essa metrópole.

O BRICS, que era um fórum de diálogo, virou uma marca desse projeto de expansão da China.

Mas não interessa ao Brasil explorar os mercados oferecidos dentro do BRICS?

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Ernesto Araújo: As pessoas têm que voltar a pensar de acordo com seus valores, um pouco no qualitativo e não apenas o quantitativo. Então quer dizer que os atores economicamente mais interessantes do mundo são um bando de ditadura totalitária que quer te transformar numa colônia? Se a bandidagem tem dinheiro, você fica com a bandidagem?

Pessoalmente, fui contra essa ideia, de tentar construir um destino com liberdade, com democracia, com economia sólida e não colonial. Ainda que os países democráticos tenham mais dificuldade de mobilizar seus recursos, com mercados mais complicados.

Há pessoas que defendem a parceria com a China falando em interesse econômico do Brasil. Não acho que seja interesse econômico do Brasil, mas da elite corrupta brasileira e de alguns setores empresariais ligados a ela. Os amigos do Lula e as empresas amigas do sistema.

O brasileiro, nesses 20 e poucos anos de construção de uma relação de dependência com a China, está melhor, comendo melhor, dormindo melhor, trabalhando melhor? Não, as pessoas estão com a renda estagnada, com inflação de alimentos, inflação de tudo. O que a parceria com a China – que a gente tentou desconstruir, mas não tive tempo para fazer isso, e não deixaram, né – traz para o povo brasileiro? Nada, zero.

O pequeno produtor rural está com o preço cada vez mais controlado pela China, está se dando mal. Quem se dá bem é o intermediário e essa elite manipuladora do agro.

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Alguns analistas internacionais acham que o Brasil está na melhor posição nessa disputa entre EUA e China, de que pode colher o melhor dos lados, mantendo um diálogo com ambos, de forma equidistante, sem aderir incondicionalmente a nenhuma potência, e negociando com todos os países. Isso será possível com Trump nos EUA, Xi Jinping na China e Vladimir Putin na Rússia?

Ernesto Araújo: Essa caracterização é completamente errada. O Brasil não tem política de equilíbrio nenhum. Desde o começo dos anos 2000, se não antes, tem uma política externa totalmente pró-China, de inserção do Brasil no bloco totalitário, cujos expoentes são China, Rússia e Irã.

Existe uma imensa confusão feita deliberadamente por muitos pseudo-especialistas em política externa, que confundem relações diplomáticas com relações econômicas, estratégia de país e estratégia comercial.

No período de 2019 e 2020, quando eu comandei a política externa, a gente não rompeu com a China, pelo contrário, nosso comércio aumentou. O que que a gente fez? Não depender da China para nossas grandes decisões estratégicas. Não admitir que a China viesse aqui mandar no nosso Congresso, na nossa Justiça, etc. Parte disso significaria não entregar para a China toda a nossa internet, toda da nossa rede de infraestrutura 5G, como acabamos entregando.

E ao mesmo tempo reforçar nossa parceria com os Estados Unidos, sim. Com um comércio menor do que com a China, mas com a possibilidade de construir uma relação muito mais profunda, inclusive econômica, que privilegiasse a diversificação da indústria brasileira, o setor privado e a inserção do Brasil nas grandes cadeias globais de valor, das novas tecnologias. Que é o que Javier Milei está tentando fazer na Argentina.

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Sua gestão foi muito criticada por um suposto isolamento. Isso não ocorreu?

Ernesto Araújo: Imagina. Tínhamos diálogo com todo mundo, presidimos o encontro do BRICS em 2019 e foi muito bom assim, tivemos excelente diálogo sem sermos escravos de ninguém.

Fizemos a mais importante visita já feita à Índia e assinamos o mais importante conjunto de acordos. Estabelecemos uma parceria estratégica, não só reconhecendo sua importância no futuro econômico, mas também porque é um país democrático, não tem projeto de hegemonia mundial. É um país de economia capitalista, são empresas privadas que vêm para investir e produzir. Não são empresas dependentes do Partido Comunista Chinês que vêm para criar infraestrutura para exportar para eles e para corromper os políticos brasileiros.

Ainda no começo de 2021, recebi a visita do chanceler do Japão e ouvimos a ideia, que a gente aderiu, de criar oportunidades com novas tecnologias. O chanceler do Japão falou: ‘olha, queremos um acordo comercial com o Brasil, e que vocês nos digam como, seja através do Mercosul, seja um acordo através da adesão do Brasil à TPP [‘Trans-Pacific Partnership’, ou Parceria Transpacífica, acordo de livre comércio entre Estados Unidos, Canadá, México, Chile, Peru, Japão, Singapura, Malásia, Vietnã, Brunei, Nova Zelândia e Austrália]. Pedi para o meu pessoal imediatamente começar a organizar para implementar. Mas não deu tempo.

Como você avalia a frustração desses planos e sua saída do Itamaraty? Não haveria aí um temor de perder dinheiro e prejudicar a relação comercial com a China?

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Ernesto Araújo: E vou falar uma coisa aqui: era complicada a posição do Ministério da Economia. Paulo Guedes é um querido amigo, admiro muito, mas acho que o Ministério da Economia tinha uma visão muito avessa à ideia de a gente criar uma independência em relação à China.

Não prejudicamos a relação comercial com a China, nem com ninguém. Mas acho que os interesses chineses estavam muito bem representados no nosso governo, muito melhor representados do que os interesses brasileiros. Então, esses interesses, mesmo durante o governo Bolsonaro, dificultaram nossa aproximação com os Estados Unidos, com a Índia, com Japão. Por quê? Se a China só quer fazer negócios, então tanto faz se o Brasil continuar fazendo negócio com a China, faz negócio com a Índia, com os Estados Unidos...

Mas a China não quer um Brasil independente, quer um Brasil no regaço chinês, produzindo para a China, obedecendo a China. Acho que houve falta de visão estratégica dentro do governo Bolsonaro, por parte de outros setores, do que significava a dependência em relação à China. E de como você poderia fazer uma aproximação com as grandes democracias do mundo, política e econômica, sem prejudicar a China nem os negócios com a China.

Você falou que tem muito dinheiro, e tem muito dinheiro mesmo. O dinheiro explica muita coisa no mundo.

Muitos analistas dizem que o Brasil deve buscar se beneficiar de uma posição de equilíbrio...

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Ernesto Araújo: Essa ideia de equilíbrio é um absurdo. O Brasil não tem que buscar equilíbrio nenhum, tem que buscar o que é bom para o Brasil. Se aquilo que é bom para o Brasil, tanto em termos econômicos, quanto em termos de estrutura de sociedade, de sociedade livre, está em uma parceria maior com os Estados Unidos e menor com a China, vamos a isso.

A gente tem que ter uma visão do que a gente quer como país, como nação. A gente quer ser uma economia de mercado, então qual tem que ser a referência? As grandes economia de mercado do mundo, não só EUA, mas também Europa, Índia e Japão. Se tivessem deixado a gente trabalhar, teríamos fechado o governo Bolsonaro com acordo de livre comércio com as grandes economias industriais e democráticas do mundo: Estados Unidos, União Europeia, Índia, Japão e Reino Unido também. Teríamos cinco cartas na mão, sem prejudicar a China.

Queríamos acordo de livre comércio com a China? Claro que não, porque seria para destruir ainda mais a indústria brasileira. ‘Ah, mas o mercado chinês!’. O mercado chinês está lá e o chinês compra o que quiser. Num acordo de livre comércio com a China, vai ser livre o comércio para os chineses. Eles vão importar o que a gente quiser vender? Não, só vão importar o que quiserem. Qualquer aproximação com a China é do corruptariado brasileiro, não do povo brasileiro, não da economia brasileira.

A aproximação com os Estados Unidos compensaria?

Ernesto Araújo: Com Trump, os Estados Unidos queriam comandar um processo de saída das grandes empresas internacionais da China e de volta para os Estados Unidos. Mas também de ida para outros países, o que eles chamam de ‘friendshoring’. O Biden fala disso, mas não faz.

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Que é a volta para os amigos, que é estimular a saída de investimentos dos seus adversários, para não dizer inimigos, e estimular que esses investimentos venham para os seus amigos. O Brasil estava se preparando para se tornar uma dessas ‘shores’, talvez o principal destinatário de investimentos americanos e de outros países saindo da China. Uma oportunidade gigantesca, perdida por miopia de muita gente.

Um novo governo Trump poderá acentuar o conflito dos EUA com a China? Porque o discurso de Trump sempre foi de manter uma relação amistosa com Xi Jinping e Vladimir Putin, da Rússia. Ele diz que sabia conversar com esses líderes...

Ernesto Araújo: Pode acentuar e espero que acentue esses conflitos. Pode-se dizer que Reagan [Ronald Reagan, presidente dos EUA entre 1981 a 1989] teve uma relação amistosa com o Gorbachev [Mikhail Gorbachev, último líder da União Soviética, extinta em 1991]. E ao mesmo tempo preparou os Estados Unidos para derrotar a Rússia na Guerra Fria, e conseguiu. Acho que é mais ou menos o padrão do Trump e vi pessoas falando explicitamente sobre isso. Uma vez perguntaram para o Reagan qual era a estratégia para a Guerra Fria e ele respondeu: ‘we win, they lose’ [nós vencemos, eles perdem]. Esse é o plano do Trump em relação à China.

Isso é importante para os Estados Unidos, mas muito mais para o mundo livre, inclusive para o Brasil, se o Brasil quiser ser um país livre. Se a China continuar na ascensão que está, e os Estados Unidos continuarem na decadência que estão, o mundo livre daqui a pouco vai ser, todo ele, um conjunto de colônias chinesas, como o Brasil já está virando.  Não é só comércio com a China, vamos seguir cada vez mais um modelo chinês.

Dizem que a China não quer exportar seu modelo, nem o Brasil quer importar o modelo chinês de sociedade e de política. Então o que é que o Barroso [Luís Roberto Barroso, presidente do Supremo Tribunal Federal] foi fazer na China? Cooperar com a China em inteligência artificial para controle das redes. Chegou lá e disse que o modelo chinês é melhor do que o modelo americano de inteligência artificial. Está nas entrevistas.

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Mas não há uma expectativa – não sei se equivocada – de que, como Trump teria que ‘salvar’ os Estados Unidos do radicalismo de esquerda, da agenda woke, etc. e América ‘great again’ [grande novamente], ele poderia se voltar para dentro e deixar Rússia e China de lado?

Ernesto Araújo: Acho que não. Não falo pelo Trump, claro, estou imaginando que pode acontecer. A Rússia é um problema porque existe um lobby pró-Rússia dentro do Partido Republicano, mas eu não acho que Trump seja parte desse lobby não. Espero também que seja assim.

Acho que o Trump e a equipe dele entendem o mundo, sabem perfeitamente que existe uma grande aliança totalitária China-Rússia, Irã também, e querem enfrentar isso, indo diretamente no patrão, que é a China. E a ideia deles é um pouco neutralizar a Rússia.

Como é que farão isso? Não sei, mas acho que eu não vou entregar a Ucrânia para a Rússia. Mas talvez ele vá voltar a uma ideia que chegou a ter, embora seja muito difícil, de formular as coisas de uma maneira que a Rússia entenda que ela tem mais interesse em uma aproximação com Ocidente e com um afastamento da China, não sendo capanga como eles estão sendo.

Me parece algo realmente difícil, porque após a invasão da Ucrânia, o Ocidente puniu duramente a Rússia com sanções econômicas. E para sobreviver, ela se agarrou à China...

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Ernesto Araújo: Exato. Mas o que Biden faz? O contrário, que é o erro: focar na Rússia e esquecer a China. O ex-secretário-geral da Otan Jens Stoltenberg deu uma declaração recente, dizendo que não se pode olhar apenas para Rússia, que não se enfrenta o expansionismo russo sem enfrentar a China. Claro que ele está pensando mais no sentido militar, mas tem também uma visão estratégica, que vai muito além.

O foco na Rússia não seria porque representa um perigo iminente para a Europa?

Então, quer enfrentar a Rússia? Tem que enfrentar a China também. As pessoas ficam focadas no teatro da Ucrânia. Não, porque o teatro hoje é o mundo todo. O governo Biden, por exemplo, diz que os Estados Unidos precisam vencer a Rússia. Ok, e os aliados da Rússia na América Latina? E a Venezuela, base de ação da Rússia? E Cuba, Nicarágua? Voltaram aquela ideia de Obama de normalizar com Cuba. Com a Venezuela, passaram a mão na cabeça do Nicolás Maduro, retirando algumas sanções. Isso não é sério, porque não está vendo o jogo.

Ernesto Araújo: Sim, esse é o foco imediato. Eu, pessoalmente, sou completamente contra qualquer concessão ao Vladimir Putin. Gosto de muitas coisas das propostas do Trump e dos Republicanos, mas se vierem com essa proposta, naquilo que me cabe, modestamente, vou criticar. Mas não acho que sejam agentes de Moscou. E acho que o eixo que estão vendo é o eixo China e não o eixo Rússia. O Trump é considerado mais favorável à Rússia, mas na verdade a tendência é que ele chegue tornando mais difícil a vida para seus aliados na América Latina: Venezuela, Bolívia, Nicarágua, Cuba. Acho que é uma visão completamente diferente do Biden, que quer enfrentar a Rússia lá, mas não quer enfrentar a Rússia aqui.

E quem hoje é o grande aliado da Rússia e da China na América Latina? O Brasil. Vamos ver, mas nessa visão de mundo que provavelmente ele trará, acho ele vai ver quem que está com os Estados Unidos e quem está contra. E o Brasil está contra. Essa fantasia de equilíbrio vai cair.

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Então, a gente tem que saber: o povo brasileiro quer estar de que lado? Hoje em dia não tem muito como não estar em um lado, de lado nenhum. Tem que estar no lado do que a gente acredita, que é lado da liberdade. Mas não: vão ver que o Brasil está do lado dos totalitários. Isso vai ficar patente, inclusive para o povo brasileiro, que hoje é enganado por esses discursinhos de que nós estamos tendo uma política de equilíbrio.

Então vai ter que ser colocado para o povo brasileiro que o governo Lula colocou o Brasil no eixo China-Rússia-Irã. É isso que vocês querem? Acho que isso vai ficar mais transparente num eventual governo do Trump.

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]