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A pressão pela saída do ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, é cada vez maior, causando um racha entre as alas política e militar do governo, podendo inclusive ser um divisor de águas sobre a postura do Palácio do Planalto na relação com o Congresso futuramente. A Gazeta do Povo conversou com interlocutores do Planalto, Itamaraty e parlamentares para entender o cenário político com uma eventual demissão do chanceler brasileiro e seus desdobramentos.
Insatisfação com o combate à pandemia
O enfrentamento da Covid-19 deixou os ânimos exaltados. Para o governo, os esforços para superar a pandemia estão sendo bem conduzidos, mas, para o Parlamento, a execução e a eficácia das medidas adotadas ainda são insuficientes. A escolha do ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, que não teve o consentimento da cúpula das duas Casas, só azedou a relação.
Depois de pressionar pela saída do general Eduardo Pazuello do Ministério da Saúde, o Centrão agora concentra os esforços para minar Araújo. O problema é que a ala militar do governo não está nada satisfeita com essa postura. Não que ministros oriundos das Forças Armadas e outros conselheiros do presidente Jair Bolsonaro sejam afeitos ao chanceler. Pelo contrário. Eles apenas discordam da forma como o Centrão vem exercendo essa pressão.
“Ninguém vai chorar a falta do Ernesto se ele for demitido hoje. Há muito tempo, temos diagnosticado que, assim como o [Ricardo] Salles [ministro do Meio Ambiente] e o [Abraham] Weintraub [ex-ministro da Educação], o Ernesto só contribui para atrapalhar o governo, não ajuda em nada”, explica um interlocutor militar palaciano. “Mas, por outro lado, o Centrão não é exatamente a coisa mais querida. É um aliado útil, mas perigoso”, comenta outro.
A leitura feita por militares do governo é que a coação exercida não é, necessariamente, sobre o chanceler, mas sim, sobre Bolsonaro. “É o Centrão tentando interferir na atribuição [de nomeação e exoneração de ministros] que não é deles, é do presidente. Resolveram colocar o pé na porta e agora usam de poder e chantagem para achacar o presidente”, critica um dos interlocutores.
No Itamaraty, leitura é a mesma: "bola da vez será o presidente"
A mesma avaliação é reforçada no Itamaraty. “Se, eventualmente, o ministro sair, a bola da vez será o presidente. Não será outro ministro. Pelo simbolismo, esse será o último fusível”, analisa um interlocutor de Araújo. “O pessoal do [Arthur] Lira [presidente da Câmara] obviamente está interessado na saída dele. Naturalmente o Centrão quer ter mais presença no governo e se cacifar. É uma demonstração de poder junto ao presidente”, comenta um assessor da chancelaria.
Diferentemente de outras ocasiões, quando Araújo foi pressionado, mas ficou, a fritura atual é muito mais intensa. O mesmo assessor estranha o fato do chanceler não ter recebido o apoio de aliados da articulação política do governo em sua recente sabatina no Senado, na quarta-feira (24). “Ninguém se apresentou para defender o ministro, isso é uma coisa absurda”, lamenta.
A impressão no Itamaraty é de que a articulação política do planalto — que é conduzida pela Secretaria de Governo — foi omissa. “Quando não conivente", diz o mesmo interlocutor. "Não sei se foi um movimento deliberado, mas foi muito estranho o ministro não receber o apoio de um senador aliado, fosse o [líder do governo no Senado] Fernando [Bezerra] ou o Flávio [Bolsonaro]. No mínimo, há uma descoordenação grande, para não dizer falta de interesse da coordenação política”, acrescenta.
Centrão promete jogo duro para tirar Ernesto
A avaliação política feita por fontes ouvidas pela Gazeta do Povo é de que o próprio presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), chegou ao ponto de ameaçar Bolsonaro em seu discurso de quarta-feira (24), quando falou em “apertar o sinal amarelo” e que alguns “remédios políticos no Parlamento são conhecidos e são todos amargos” e podem ser até “fatais”. Na quinta-feira (25), o presidente da República se reuniu com Lira e afirmou não ter “problema nenhum” entre ele e Lira.
A pressão sobre o governo também não é menosprezada por lideranças políticas do Congresso. Parlamentares criticam a articulação política do Planalto, a falta de diálogo e até acordos não cumpridos. Por ora, congressistas evitam falar sobre um possível impeachment de Bolsonaro, o que poderia ser o dito “remédio fatal” citado por Lira, até por entenderem que a relação entre os poderes pode melhorar com a saída de Pazuello e Araújo.
“O Ernesto tem que sair, senão o Bolsonaro não faz mais nada. O Pazuello já foi. Ele é outro nome que o presidente precisa demitir para voltar a ter tranquilidade no Parlamento”, resume um dos congressistas ouvidos.
"Política externa ruim"
Para não parecer uma crise de governo, os parlamentares explicam que Bolsonaro começou a mudança pelo Ministério da Saúde. “É uma área mais sensível e que teria o apoio da mídia”, diz um deles. Agora, Câmara e Senado exigem a saída de Araújo “para ontem”. “A política exterior do Ernesto é muito ruim. Para o Brasil ter crescimento pós-pandêmico, precisa fechar convênios. Mas as brigas que ele arrumou com a China só ajudaram a comprometer a negociação de vacinas”, diz um parlamentar.
Deputados e senadores avaliam que o chanceler “flertou” com a China por necessidades e entendem que, hoje, ele não conta com respaldo nem dos chineses, nem dos Estados Unidos e dos aliados de ambos os países por conta disso. “Conseguiu desagradar os nossos dois principais parceiros comerciais. Está todo mundo [no Parlamento] contra ele. Faltam insumos e vacinas por inabilidade diplomática, não comercial”, sustenta um aliado de Arthur Lira.
Pacheco confirma pressão; Bolsonaro avalia cálculo político
A fritura sobre Araújo chegou a tal ponto que o próprio presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), faz questão de expressar publicamente sua reprovação com o chanceler. Disse nesta sexta-feira (26) que a política externa “precisa melhorar”, mas evitou afirmar o que Bolsonaro deve fazer. “O que nos cabe enquanto Senado Federal, Câmara dos Deputados, é cobrar ações, fiscalizar. Nós consideramos que a política externa do Brasil ainda está falha. Ela precisa ser corrigida, precisa melhorar”, analisou.
Mesmo sob críticas efusivas, a situação de Araújo é incerta. Interlocutores do Planalto assumem que ele não sofre a fritura apenas do Congresso. “Ele também está desgastado dentro do governo”, reconhece um assessor. Bolsonaro calcula se o exonera ou não porque gosta do trabalho de Araújo e sabe que a demissão desagradaria ainda mais a base “bolsonarista” mais ideológica.
Os assessores palacianos não-militares analisam o cálculo político feito por Bolsonaro. A demissão de Araújo pode desagradar a base popular, mas a não demissão dele amplia o mal-estar do Congresso com ele. “Se tira o Ernesto, ainda sobra o Salles entre os ideológicos. Mas a conta é: ou o presidente perde algum apoio [político] ou cria decepção na base dele. Ele já está pesando isso, mas, talvez, fique complicado neste momento manter [o chanceler], porque precisa ganhar fôlego”, pondera um técnico.
Nos quartéis, pressão é para que o Centrão recue
“Já tiraram o Pazuello e querem mais? Não me entenda mal, não gosto do Ernesto, mas gosto menos ainda da forma como o Centrão vem ganhando terreno no ‘grito’. Os ‘granadeiros’ [soldado encarregado de lançar granadas em batalha] estão ficando insatisfeitos”, desabafa um assessor da ala militar.
A analogia de “granadeiros” é uma referência de um desconforto incipiente nas bases das Forças Armadas. Militares de dentro e fora do Planalto explicam que estão sendo cobrados por amigos, familiares a explicar como e por que os políticos vêm ganhando tanta força dentro do governo. Tal sentimento é ainda reverberado pelas redes sociais, uma ferramenta muito sensível e monitorada pelo governo.
Por ora, essa insatisfação não chegou ao conhecimento dos comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica. Tampouco ao conhecimento do ministro da Defesa, o general Fernando Azevedo e Silva, segundo apurou a Gazeta do Povo com pessoas próximas dele. “Mas a tropa nos quartéis está meio incomodada e, quando isso acontece, os comandantes ou têm muita habilidade, ou não conseguem segurar a insatisfação”, explica um assessor palaciano.
É possível amenizar esse latente incômodo nos quartéis. Para alguns militares, cabe aos ministros palacianos generais e ao próprio general Azevedo e Silva buscar, junto com Bolsonaro, uma reunião com Lira e Pacheco para colocar a relação em “panos limpos”. “Os generais têm que chamar esses dois e falar: ‘a sua desenvoltura não está sendo bem vista nos quartéis’. Ou os dois [presidentes da Câmara e Senado] vão entrar no ‘caderninho de mágoa’ dos militares”, diz um assessor do Planalto.
Se esse incômodo se agravar, militares não descartam que algum movimento possa ser feito. Quando o general Eduardo Villas Bôas, ex-comandante do Exército, foi ao Twitter, em 2018, demonstrar “compartilhar o anseio de todos os cidadãos de bem” às vésperas do julgamento do habeas corpus do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva no Supremo Tribunal Federal (STF), ele o fez porque o incômodo nos quartéis atingiu o ápice. “A reserva estava em polvorosa e o incômodo já havia chegado na ativa. Isso está voltando”, alerta um interlocutor.
Planalto e Itamaraty pedem mais diálogo
Apesar das críticas no Planalto, alguns entendem ser legítima a preocupação dos aliados políticos com o empenho do governo no combate à pandemia. Mas sustentam que Bolsonaro vem fazendo os acenos de uma convergência na comunicação e postura em relação à pandemia e acham desproporcionais as recentes cobranças dos presidentes das duas Casas, sobretudo de Lira.
Quando Eduardo Cunha (MDB-RJ), ex-presidente da Câmara, “apertou o botão amarelo” e alertou a ex-presidente Dilma Rousseff (PT) sobre o desconforto do Centrão à época com o governo, ele o fez, inicialmente, sem “publicizar”, diferentemente de Lira, sustentam fontes ouvidas. “Já o Lira, não. Foi lá e fez aquele discurso. Tudo bem que estamos em uma pandemia, lamentamos as mortes, o presidente tem dito isso, mas estamos trabalhando”, defende um interlocutor.
No Itamaraty, a leitura não é diferente. Assessores e interlocutores próximos do chanceler negam que convênios estejam deixando de ser firmados por ideologia e lembram que ele segue a "política externa do presidente Bolsonaro". Entendem que Araújo desempenha um bom papel e dizem que “quem assina contrato é o Ministério da Saúde”. “O Itamaraty não assina nada. A responsabilidade em atender as demandas e negociar com outros países é deles”, destaca um técnico.
Na sabatina no Senado, o chanceler defendeu sua gestão. “Estamos reformando a nossa política externa para que ela se torne muito mais dinâmica, para que ela traga investimentos, empregos, abertura ao mundo para vencer o Brasil nas cadeias globais de valor, para que possamos defender a nossa soberania”, declarou Araújo.