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Uma década após a deflagração, em 17 de março de 2014, a Lava Jato, megaoperação responsável por desvendar o maior esquema de corrupção da história do país, é vítima de uma série de reveses impostos pela Justiça e pelo cenário político. Seus triunfos em diversas frentes também têm sofrido retrocessos, sobretudo no que diz respeito aos acordos de leniência com empresas denunciadas, de delação premiada e de repatriação, totalizando a expressiva quantia de R$ 26 bilhões.
Mas, apesar das derrotas impostas por decisões respaldadas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) e da perseguição implacável aos seus protagonistas – com destaque para o ex-juiz e atual senador Sergio Moro (União Brasil-PR) e o ex-chefe da força-tarefa, ex-procurador e ex-deputado Deltan Dallagnol (Novo-PR) –, a Lava Jato sobrevive no imaginário popular como um caso excepcional e inspirador de exitoso enfrentamento à ampla e histórica relação promíscua entre setor público e privado no Brasil, provocando um breve intervalo nela.
Em decisões recentes, o STF suspendeu multas de acordo de leniência, anulou condenações e arquivou inquéritos. Nos últimos meses, por exemplo, o ministro Dias Toffoli suspendeu o pagamento das multas da Odebrecht. Para 74% dos brasileiros, a Corte “incentiva a corrupção” ao relaxar nas punições a empreiteiras, conforme revelou recente pesquisa do Instituto Quaest*.
Para os especialistas consultados pela Gazeta do Povo, a operação nasceu como monumental empreitada judicial e evoluiu ao nível de bandeira política. Com esses legados combalidos, ela persiste hoje como esperança de uma retomada do combate nacional à corrupção em futuro ainda sem horizonte visível.
Rodrigo Chemim, promotor do Ministério Público (MP) do Paraná, destaca que poucos trunfos da Lava Jato restaram, como a expertise nas operações e a valorização do compliance. “De toda forma, a principal conquista foi uma clara confirmação daquilo há muito conhecido: a corrupção profundamente arraigada no poder”, acrescentou.
Outro ponto positivo apontado por ele foi ter induzido empresas a acelerarem os processos de integridade, o que contribuiu efetivamente para a cultura de autocontrole. “Tais avanços foram, contudo, obscurecidos pelo desmantelamento da operação”, lamentou. A legislação anticorrupção e a jurisprudência sofreram graves perdas, incluindo o esvaziamento das agências de controle.
Chemim vê como momento mais desolador da Lava Jato a perseguição aos principais nomes da operação. “A cassação, ano passado, do mandato de Deltan Dallagnol, numa decisão juridicamente insustentável, com extensão forçada de uma regra de sanção, é algo que não se vê numa democracia”, disse. Ele acrescenta que a possibilidade de cassação de Sergio Moro “só amplia o sentimento de desesperança”. A alegação de que houve coação dos investigados, contraditada pela transparência e pelas homologações da operação, é outra situação que prejudica a confiança nos agentes públicos.
O promotor lembra que o Brasil é historicamente leniente com os crimes da elite, mas teve uma breve mudança entre 2016 e 2018, retornando em seguida aos padrões anteriores, o que reforça a desvantagem cruel para a população carente, mais dependente do Estado. “Apesar da sua grande riqueza, o país segue enfrentando desafios na distribuição justa de recursos, perpetuando a injustiça social”, disse. Por essa razão, ele teme um futuro sombrio para as políticas anticorrupção no curto e médio prazo. “No momento, a mensagem aos investigadores é clara: certos poderosos são intocáveis, e investigá-los pode resultar em retaliação, impedindo que se construa uma nação menos influenciada por práticas corruptas”, lamentou.
Volta do combate à corrupção exige boa vontade dos políticos
A Lava Jato, na visão da professora de Direito Constitucional Vera Chemin, também figura como símbolo no enfrentamento da corrupção dentro do contexto jurídico-político brasileiro. Apesar de ter havido desmantelamento meticuloso da operação, por meio de estratégias políticas e decisões cruciais do STF, que resultaram na anulação de todos os atos praticados por procuradores e magistrados em diversas regiões do país, principalmente na 13ª Vara Federal de Curitiba, onde teve início, “a operação permanece na história como resposta efetiva contra crimes cometidos por agentes públicos e políticos”.
Ela sublinha que, embora possam ser apontados eventuais excessos, “os responsáveis pela operação conseguiram inequivocamente comprovar a prática de atos ilícitos contra a Administração Pública, tanto interna quanto externamente, evidenciados por confissões e significativas devoluções de valores desviados dos cofres públicos que prejudicaram a população”. “A Lava Jato representa a linha divisória entre um Brasil impune e um breve período de transparência, mesmo que tenha retornado ao antigo status quo. Ela mostrou ser possível e viável combater a corrupção estrutural do Estado brasileiro, contando que haja cooperação e vontade política”, disse.
Na perspectiva de Ricardo Peake Braga, advogado especializado em liberdade de expressão, apesar de possíveis excessos em casos isolados, a Operação Lava Jato representou um momento crucial na história brasileira. “Pela primeira vez, houve a crença de que empresários e políticos poderosos não estavam imunes à lei. Lamentavelmente, essa mudança foi efêmera, pois o sistema patrimonialista-oligárquico que domina o país conseguiu reagir e recuperar o controle”, ponderou.
Operação teve alcance inédito do poder econômico e político
A Lava Jato teve início com uma investigação da Polícia Federal (PF) que mobilizou 400 agentes em sete unidades da federação para desmantelar esquema de desvios e lavagem de dinheiro, estimado em R$ 10 bilhões na época. Em colaboração com a Justiça Federal e o Ministério Público Federal, ela mirou inicialmente os doleiros Alberto Youssef, já sob escrutínio desde 2008 por irregularidades denunciadas na CPI do Banestado, e Carlos Habib Chater, dono do Posto da Torre, em Brasília, usado como “caixa eletrônico” e que inspirou o nome da operação. Nos anos seguintes, as suas revelações ganhariam dimensão inesperada e sérias implicações na vida nacional.
Até o presente momento, Moro e o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) figuram como principais nomes da operação. A Lava Jato atingiu o auge com a prisão do petista em 2018, mas começou a declinar no fim do mesmo ano, após a decisão do ex-juiz de deixar a magistratura e assumir cargo de ministro da Justiça do então presidente Jair Bolsonaro (à época no PSL, hoje no PL), eleito pela bandeira de combate à corrupção sistêmica. Nessa toada, Lula volta à arena eleitoral e, em 2021, o ministro Edson Fachin, relator da Lava Jato no STF, decidiu anular todas as condenações do petista provenientes da operação em Curitiba.
As muitas condenações de parlamentares, empreiteiros, líderes partidários e até membros da Justiça despertaram brutal reação dos grupos atingidos.
Apenas em Curitiba, foram 81 fases deflagradas até 2021, ano em que a força-tarefa na operação foi encerrada. Nessa vara foram expedidos 132 mandados de prisão preventiva. Lula foi réu em quatro processos e ficou 580 dias preso em Curitiba após a sentença do caso tríplex. Segundo o levantamento do MPF, foram fechados 43 acordos de leniência com empresas envolvidas em esquemas de corrupção. A Petrobras emerge como uma das principais beneficiárias da devolução de recursos, totalizando mais de R$ 6 bilhões provenientes de acordos firmados pela Lava Jato. Apenas em 2022, a estatal viu a recuperação de R$ 1,2 bilhão.
Tendo a Petrobras como epicentro, a operação atuou em quatro frentes: Curitiba, Rio de Janeiro, São Paulo e Brasília. Em sete anos de funcionamento efetivo, de 2014 a 2021, a Lava Jato teve amplitude inédita na história judicial do país, atingindo a cúpula do Legislativo, parlamentares, ex-governadores e ex-presidentes. Ao todo, 553 pessoas foram denunciadas em Curitiba e 887 no Rio. Em Brasília, foram 126 e em São Paulo, 89. Ao contrário da Operação Mãos Limpas, na Itália, de 1992, que serviu de modelo, a Lava Jato teve desdobramento internacional, levando à prisão ex-presidentes do Peru.
Manobras do STF deram o tiro de misericórdia na Lava Jato
Em março de 2019, o STF decidiu que casos da Lava Jato relacionados a caixa 2 de campanha deveriam tramitar na Justiça Eleitoral, não na Justiça Federal. A medida provocou a anulação de série de sentenças que já tinham sido expedidas. Em junho daquele ano, o site The Intercept Brasil divulga diálogos de procuradores e de Moro no aplicativo Telegram. As conversas mostravam proximidade entre juiz e acusação e impulsionaram a reversão de antigas decisões no Judiciário.
A revisão dos acordos de leniência ganhou embalo depois que as partes afetadas pela Lava Jato conseguiram ter acesso aos autos da Operação Spoofing, de 2019, relacionada ao conteúdo hackeado de conversas no Telegram entre integrantes da força-tarefa da Lava Jato, e sugeriram suposto conluio entre procuradores e Moro.
Os acordos de delação premiada, homologados pelo STF durante a Lava Jato, resultaram na recuperação de R$ 2 bilhões aos cofres públicos. O montante foi alcançado por meio do pagamento de multas ou restituição de bens, conforme o gabinete do ministro Edson Fachin, relator da operação na Corte. Ao todo, o Supremo homologou 120 acordos de delação, sendo que o relator original, Teori Zavascki, autorizou 21 antes de morrer num acidente de helicóptero em 2017. Na ocasião, a então presidente do STF, Cármen Lúcia, homologou os 77 acordos de membros da Odebrecht. Posteriormente, Fachin assumiu a relatoria e validou mais 22 acordos.
Quanto aos acordos de leniência, o ministro André Mendonça autorizou recentemente a renegociação das já encaminhadas. O ministro Dias Toffoli, por sua vez, suspendeu o pagamento de multas de J&F (R$ 10,3 bilhões) e Odebrecht (R$ 3,8 bilhões).
O STF analisou 27 denúncias apresentadas pela Procuradoria-Geral da República (PGR) no âmbito da Lava Jato. Dessas, nove foram aceitas e 18 rejeitadas. Das nove ações penais abertas, oito foram julgadas, resultando em quatro absolvições e três condenações. Um processo segue empatado, enquanto outra ação foi encaminhada para outra instância. Seis inquéritos ainda estão em andamento, sob a relatoria de Fachin.
*Metodologia
A pesquisa Genial/Quaest entrevistou presencialmente 2 mil brasileiros a partir de 16 anos em 120 municípios. A margem de erro é estimada em 2,2 pontos percentuais para mais ou para menos, para um nível de confiança de 95%.