PT faz post comemorativo para celebrar 341 mil novos filiados em cinco meses.| Foto: Antônio More/Arquivo Gazeta do Povo
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A comemoração pública do Partido dos Trabalhadores (PT) no dia 6 de março pelo aumento significativo de aproximadamente 341 mil novas filiações em menos de cinco meses tem provocado questionamentos e desentendimentos, dentro e fora da sigla, potencializado o racha interno por causa das eleições do diretório nacional em julho próximo.

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As suspeitas são de um possível “inchaço artificial” no número de filiados desde as eleições de outubro de 2024 até o dia 28 de fevereiro - data-limite para que novos filiados tenham direto a voto em julho - e resultaram em pelo menos dez mil pedidos de apuração dentro do próprio PT. (Leia mais sobre a questão abaixo.) Os questionamentos ocorrem porque 13% de todos os correligionários do PT se filiaram somente nos últimos meses, o que elevou o número total de filiados a 2.949.507. Foram 341.315 novas fichas assinadas somente no período, média de quase 2,3 mil por dia.

Segundo o PT, esses 341 mil novos filiados aderiram à Campanha Nacional de Filiação entre o fim do ano passado e fevereiro deste ano e estão aptos a votar no Processo de Eleição Direta (PED) 2025. As fichas das novas adesões à sigla são avaliadas pelos diretórios estaduais, aos quais cabe a tarefa de validá-las ou impugná-las. Após essa etapa, ainda é possível recorrer ao diretório nacional do PT.

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Esse é outro ponto de divergências internas. Uma mudança no estatuto do partido no fim do ano passado permitiu que filiados até 28 de fevereiro pudessem votar para escolher a nova presidência da silga e novos dirigentes. Antes, o estatuto previa direito à votação para quem havia assinado ficha ao menos um ano antes ao pleito.

“O PT vive um racha interno que não chega a ser histórico, mas memorável para o período. As disputas internas pela presidência do partido estão escalando semana após semana com linhas divergentes cada vez mais acentuadas, inclusive entre o que deseja o próprio presidente Lula (PT), que teria Edinho Silva como preferido, e [outra ala da legenda representada por] sua recém-empossada secretária de Relações Instituições, Gleisi Hoffmann, que aparentemente não quer Edinho na presidência e trabalha para viabilizar outra linha”, alerta o cientista político Gustavo Alves.

O dirigente partidário do PT em São Paulo Valter Pomar é um dos críticos internos no avanço desenfreado de novas filiações. Em um documento direcionado à executiva nacional do partido, ele disse que “o PT precisaria ser bem maior do que ele é hoje”. “Mas para que tenhamos militantes e não apenas fichas assinadas, é preciso que o partido coordene as campanhas de filiação. Enquanto isso não ocorrer, é indispensável que a direção nacional do partido impeça que ocorra aquele tipo de filiação que parece ter como único objetivo conquistar espaço nas instâncias partidárias”.

O PT foi indagado pela reportagem sobre possíveis discrepâncias e apurações sobre a idoneidade das filiações, mas até a publicação da matéria não obteve retorno.

A Gazeta do Povo também procurou o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) para questionar sobre os procedimentos de apuração sobre movimentos atípicos em filiações partidárias e possíveis rastreamentos de irregularidades.

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Em nota, o Tribunal disse que a Resolução 23.596/2019 trata de regramentos de filiação partidária e disciplina o “encaminhamento de dados pelos partidos políticos à Justiça Eleitoral, incluindo eventuais procedimentos em casos de indícios de fraude ou simulação na inclusão do registro de filiação ou na sua retificação”. Segundo o TSE, o Sistema de Filiação Partidária (Filia) passou por atualizações para maior segurança do usuário e das informações.

Para o comentarista político e advogado Luiz Augusto Módolo, há sinais claros que “o domínio de Lula sobre o PT começa a ser contestado e os seus possíveis sucessores começam a brigar pelo seu espólio”. “O movimento atípico de filiações pode ser ou tentativa de tomada do PT ou mero jogo de uma das facções internas do PT para tentar se sobressair e cacifar dentro do próprio partido”, alerta.  

PT recebe milhares de questionamentos internos sobre idoneidade de novos filiados

Dentro do Partido dos Trabalhadores há questionamentos sobre um possível “inchaço artificial” que pode estar focado nos aptos a votar e serem votados nas eleições internas de julho. Até o fim de semana passada, o PT já havia recebido cerca de dez mil questionamentos internos em diversos municípios do país sobre esses novos filiados. Correligionários ouvidos pela reportagem disseram que esse número pode triplicar até o dia 15 de março, data limite para apresentação de pedidos de impugnação.

A reportagem também indagou ao PT sobre esses processos e a forma como estão sendo conduzidos, mas não obteve retorno. A decisão sobre a validade dessas filiações cabe aos diretórios estaduais, podendo ser revista pelo diretório nacional em caso de recurso.

Vejamos o que aconteceu nas eleições municipais de 2024 - com partidos de centro dominando a cena política. O que aconteceu com as filiações no PT precisa ser averiguado. Se há movimentos internos e irregulares por trás disso, isso também precisa ser esclarecido”, pontua Alves.

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Para o cientista político Murilo Carvalho, a alteração no estatuto permitindo que filiados até 28 de fevereiro votem nas eleições internas, em vez de exigir um ano de filiação, tem um duplo efeito. “Por um lado, amplia o horizonte de participação democrática, permitindo que novos militantes tenham voz ativa no processo. Por outro, em um cenário de crescimento atípico nas filiações, levanta suspeitas de que o movimento possa ser utilizado como uma estratégia para influenciar os rumos da disputa interna, favorecendo determinadas correntes ou lideranças”, alerta.

Para Carvalho, as críticas internas e os pedidos de investigação evidenciam uma tensão sobre a transparência e a lisura desse processo. “Para preservar a legitimidade das eleições internas, é crucial que o partido adote critérios rigorosos para validar as novas filiações, assegurando que reflitam engajamento genuíno e não interesses circunstanciais”.

O cientista político completa que, mais que um episódio isolado, esse caso destaca um desafio estrutural enfrentado por partidos políticos: como crescer e renovar quadros sem comprometer a integridade dos seus processos democráticos internos.

“A forma como o PT conduzirá essa situação, seja por meio de auditorias internas, maior transparência ou escuta das bases, terá impacto direto na coesão partidária, na legitimidade das lideranças eleitas e na percepção pública sobre a saúde democrática da sigla”, avalia.

Dirigente do PT elenca inconsistências e cita cidade onde há mais filiados que votos no partido

Entre os críticos internos do crescimento acelerado de filiados no PT está Valter Pomar, dirigente e integrante da corrente interna Articulação de Esquerda. Ele aponta que o aumento expressivo de filiados em algumas cidades, inclusive em locais onde o PT teve desempenho eleitoral fraco no ano passado, levanta suspeitas sobre as novas e elevadas filiações e chega a elencar municípios onde o PT passou a ter mais filiados do que votos alcançados em 2024.

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Em um texto de recurso direcionado à Sonia Braga, secretária nacional do PT, Humberto Costa, presidente em exercício da sigla, e Henrique Fontana, o secretário-geral da sigla, Pomar afirma que na reunião da comissão executiva nacional em 7 de março, Humberto Costa teria afirmado que no PED 2025 deve votar o maior número possível de pessoas em nome de um “republicanismo”. 

“Nesse espírito, venho pedir que se aplique o previsto no estatuto do PT, artigo décimo, parágrafo único, a saber: Para os casos em que as Comissões Executivas Estaduais ou a Nacional considerarem ter havido volume excessivo de novas filiações, causando prejuízos à democracia partidária, será decretado, sob sua supervisão, o recadastramento de todos os novos filiados e novas filiadas [...]".

Ele defendeu uma campanha nacional organizada e permanente de filiações, não periódica como a realizada no fim do ano. “Atualmente, quem filia são as próprias pessoas, as tendências, os mandatos, os líderes individuais e, inclusive, gente de direita que entra no Partido e quer se apossar dos diretórios. O resultado deste processo descentralizado e muitas vezes caótico é um crescimento, tanto em termos de quantidade quanto em termos de qualidade, que muitas vezes não beneficia principalmente o Partido, enquanto força coletiva organizada. Mas beneficia grupos que buscam usar estas filiações exclusivamente para ganhar as eleições internas e dirigir o Partido”, critica.

Para Pomar, há “excessos relativos” e como exemplo cita que a maior parte das novas filiações se concentra em alguns poucos estados e cidades, inclusive onde o PT teve um baixo desempenho eleitoral nas eleições 2024.

“Mesmo assim, é preciso dar o benefício da dúvida. Quem sabe, passada a derrota eleitoral, não tenha havido um esforço extra nestes estados e cidades, exatamente para criar as condições para vitórias futuras? Coerente com o benefício da dúvida, o estatuto prevê a possibilidade de um recadastramento, com o objetivo de separar o joio do trigo, separar as filiações legítimas daquelas que foram feitas de forma contraditória com as diretrizes de nosso Partido”. Ele também diz que diante do cenário seria “difícil ter um quadro preciso e coerente do ocorrido”.

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Pomar destaca que, de acordo com o sistema de contagem de filiados do próprio PT, existem cidades no Brasil em que o partido registrou mais filiados do que votos na sigla. “[...] Há um número de municípios (entre 67 e 216) onde houve um crescimento muito expressivo (de 50% a 100%), em muitos dos quais não parece haver correlação entre a votação em 2024 e o crescimento do número de filiados”, alerta Pomar.

Documento alerta para dúvidas e inconsistências em novas filiações

O dirigente do PT Valter Pomar elencou no documento ao diretório nacional que a única fonte de dados disponível para as consultas de filiados é a tabela da Secretaria Nacional de Organização (Sorg), órgão do PT responsável por propor políticas de construção e organização do partido. Entre as atribuições do sistema está a atualização do Cadastro Nacional de Filiados. Segundo Pomar, foi possível estabelecer vários parâmetros e encontrar dúvidas ou inconsistências.

“Chama a atenção a falta de correspondência entre o tamanho e o resultado eleitoral dos estados [diante do] crescimento no número de filiados. O Amapá tem 571 mil eleitores, o Piauí tem 2,698 milhões. Os resultados eleitorais também foram muito diferentes. Qual a explicação política para o Amapá ter mais filiados novos do que o Piauí?”.

No Amapá, o crescimento se concentrou em duas cidades: Macapá e Santana. “Em Macapá, o PT não teve candidatura própria a prefeito nas eleições de 2024. Elegemos um vereador em Macapá. Todos os vereadores petistas obtiveram 7.676 votos [somados], mas entre outubro de 2024 e fevereiro de 2025 crescemos de 9.970 para 13.135 filiados. Filiamos 3.165 novas pessoas ao Partido, um número superior à votação obtida pelo único vereador eleito”, descreve.

Pomar atribui o crescimento nas duas cidades no estado a pessoas ligadas ao senador “Randolfe Rodrigues”, a quem descreveu como “ex-PT, ex-Psol, ex-Rede, ex-sem partido e agora novamente PT”. A assessoria do senador não respondeu ao pedido de entrevistas com o congressista.

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No Amazonas, o PT registrou dez mil novas filiações, a maioria concentrada nas cidades de Alvarães, Manaus, Maués, Parintins e Benjamin Constant. 

Dessas cinco cidades, o PT só teve candidato a prefeito em Manaus. “Em duas delas, temos mais filiados que votos para vereador em 2024: Maués (1.508 filiados para 529 votos) e Parintins (2.136 filiados para 936 votos). Noutra, tivemos 1.739 votos para vereador e filiamos 840 novos pessoas, uma proporção inusitada”.

PT registra 82 mil novos filiados no Rio de Janeiro

Para o dirigente partidário, o caso mais ilustrativo que descreveu como “problema” que vem “detectando” está no Rio de Janeiro, onde foram registradas 82 mil das 341 mil novas filiações. “O estado tem aproximadamente 13 milhões de eleitores, enquanto o estado de São Paulo tem cerca de 34 milhões de eleitores. Mas em São Paulo tivemos 22.229 novas filiações, contra 82.832 do Rio de Janeiro”, disse Pomar.

Ele citou também que, em todo o Brasil, há 45 cidades onde houve maior número absoluto de novas filiações, sendo 13 no Rio de Janeiro.  “É evidente a desproporção entre cidades do Rio de Janeiro versus cidades dos demais estados”.

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O petista diz que o caso mais gritante de desproporção aparece em Itaguaí (RJ) - onde o PT não teve candidatura a prefeito, nem a vereador. “Entretanto, passamos de 1.240 para 2.254 filiados, um acréscimo de 1.014”. Em São Gonçalo (RJ), onde o PT teve seu pior resultado eleitoral nas urnas desde 2020, havia em outubro do ano passado 18.825 filiados, em fevereiro de 2025 eram 29.490, ou sejam, 10.670 a mais.

O dirigente do PT lembra que, em todo o país, a sigla atingiu pouco mais de 7,3 milhões de votos. “Portanto, o número atual de 2.949.507 filiados e filiadas no país como um todo corresponde a mais ou menos 40% do total de votos em nossas candidaturas no país como um todo. Mas em Mesquita (RJ) o número atual de filiados (6.456) supera o número de votantes [no PT] em outubro de 2024 (4.986)”.

Pomar também cita o caso de Maricá, que é comandado pelo prefeito Washington Quaquá, atual vice-presidente do PT. Sem citar o nome de Quaquá, que está no centro de outra disputa interna no PT, só que com a ministra da Igualdade Racial Anielle Franco, o dirigente paulista diz que “Maricá está em sexto lugar em número absoluto de novos filiados: 9.541”.

“Enquanto Maricá tem 223 mil habitantes. Só para comparar com duas outras cidades em que reelegemos nosso projeto: em Juiz de Fora, fomos de 6.174 para 6.762, ou seja, 588 novas filiações. E em Contagem, fomos de 8.533 para 9.044, ou seja, 511 novas filiações. Ou seja: mesmo que possam existir motivos políticos que explicam o ocorrido, ainda assim estamos diante de um crescimento desproporcional”, descreve.

Ao diretório nacional, Pomar diz que há elementos suficientes para se recorrer à Sorg, à Comissão Executiva Nacional e ao Diretório Nacional para que aprove o seguinte recurso:

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  • Em todas as cidades aptas a participar do PED, nas quais a Sorg detecte um número de filiados maior do que o número de votos dados à chapa de vereadores do PT nas eleições municipais de 2024, se determine recadastramento, nos termos do artigo décimo, parágrafo único;
  • Determinação de imediato recadastramento, nos termos do artigo décimo, parágrafo único, nas cidades de Brejo Grande (SE), Propriá (SE), Alvarães (AM), Maués (AM), Parintins (AM), Benjamin Constant (AM), Goianésia do Pará (PA);
  • Determinação de imediato recadastramento, nos termos do artigo décimo, parágrafo único, nas cidades de Itaguai (RJ), Belford Roxo (RJ), São Gonçalo (RJ), Mesquita (RJ), Itaguaí (RJ) Maricá (RJ), Petrópolis (RJ), Japeri (RJ), São João de Meriti (RJ), Itaboraí (RJ), Nova Iguaçu (RJ), Duque de Caxias (RJ), Niterói (RJ) e Rio de Janeiro (RJ); 
  • Determinação de imediato recadastramento, nos termos do artigo décimo, parágrafo único onde houve um crescimento igual ou maior que 10 vezes a média nacional, que foi de 13%:
  • Que o Diretório Nacional garanta urna eletrônica nos estados e cidades com maior número de filiados, bem como nas 67 cidades em que o número de filiados mais que dobrou entre outubro de 2024 e fevereiro de 2025.
  • Que a Sorg forneça as seguintes informações: quantos novos filiados se filiaram individualmente, quantos novos filiados tem abonador de filiação; quantos novos filiados foram registrados utilizando senha de dirigente partidário.

Humberto Costa diz que crescimento em filiações no PT é natural e pode refletir desempenho nas urnas em 2024

Coube ao senador Humberto Costa (PE), presidente interino do PT, sair em defesa das novas filiações, que fizeram o partido chegar a marca de 2,9 milhões de filiados. Ele disse que tanto o número de novas filiações quanto os pedidos de impugnação seguem dentro do esperado. Segundo ele, o partido possui mecanismos internos para analisar eventuais irregularidades e as indagações são naturais.

Costa também argumentou que, em algumas cidades, o aumento no número de filiados ocorreu de forma natural, como reflexo de vitórias eleitorais recentes do partido e que em algumas regiões o partido saiu vencedor no pleito de outubro passado, o que, segundo ele, teria atraído de forma natural mais pessoas à legenda.

Já o presidente do Diretório estadual do PT no Maranhão, Francimar Melo, chegou a celebrar os números, mas pediu cautela ao analisar as novas filiações. Melo disse que impugnações vêm sendo feitas de forma individualizada e avaliou que o resultado é um sinal que “o partido está vivo e movimentou muito a base”. “Agora é fazer essa análise caso a caso e fazer os encaminhamentos que forem necessários”, afirmou.

Para o comentarista político Luiz Augusto Módolo, há que se atentar para figuras que aparecem como “donos de partido”. “Existem, por força de omissões na legislação eleitoral, estatutos partidários que favorecem a concentração de poder. Dezenas de partidos brasileiros existem, pois o prêmio é alto: acesso a verbas bilionárias de fundos partidário e eleitoral, incentivado por um “presidencialismo de coalizão” que premia os partidos com mais parlamentares com mais verbas públicas e acesso ao horário gratuito de TV, gratuito para eles, e faz o chefe do Executivo eleito refém de arranjos que contemplem esses partidos que sequer têm ideologia definida”.

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Módolo avalia que, diante desse cenário, não à toa se combatem às candidaturas avulsas, “que seriam um meio de quebrar um pouco o poder de caciques partidários”.

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]