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Criado em 2006, o Sistema Penitenciário Nacional (SPN) acabou virando uma válvula de escape para os estados brasileiros que buscam resolver problemas causados por facções criminosas nos seus sistemas prisionais. O sistema federal é destinado a abrigar presos de alta periculosidade e lideranças de organizações criminosas. Mas, segundo pesquisadores da área se segurança pública, acabou impulsionando o crescimento e a nacionalização das facções criminosas, além de proporcionar oportunidades para acordos entre elas.
São cinco unidades em funcionamento no país. A primeira a ser inaugurada, em Catanduvas (PR), opera desde junho de 2006. Há unidades também em Campo Grande (MS), Porto Velho (RO), Mossoró (RN) e Brasília (DF). A da capital federal é a mais nova, inaugurada em 2018.
As transferências de líderes de organizações criminosas de presídios estaduais para penitenciárias federais têm sido rotineiras.
Recentemente, em novembro, o Departamento Penitenciário Nacional (Depen), subordinado ao Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP), participou da Operação Império da Lei II. A operação teve como objetivo transferir, para penitenciárias federais, nove presos identificados como lideranças negativas das principais organizações criminosas gaúchas. A ação foi uma continuação da operação Império da Lei I, que enviou 18 líderes de grupos criminosos para estabelecimentos do sistema penitenciário federal em março.
Em fevereiro de 2019, Marcos Camacho, conhecido como Marcola, apontado como líder do PCC, e outros 21 integrantes da facção também foram enviados para presídios federais em uma megaoperação. No mês seguinte, Marcola foi transferido para o Presídio Federal de Brasília.
Transferências para presídios federais aproximou lideranças
A rotina dos presos é mais rígida nas penitenciárias federais. E a realidade é completamente diferente dos presídios estaduais. Mas isso não impediu as facções de se reorganizarem e aproveitarem a oportunidade das transferências de presos para crescer além de seu território original.
No livro A Guerra: a Ascensão do PCC e o Mundo do Crime no Brasil, os pesquisadores Bruno Paes Manso e Camila Nunes Dias mostram como o sistema penitenciário federal “funcionou como um elo integrando indivíduos, grupos e organizações criminosas de todos os tamanhos e lugares do Brasil”.
No livro, os autores relembram, inclusive, como Marcola conheceu seu mentor, o comunista chileno Maurício Hernandez Norambuena, sequestrador do publicitário Washington Olivetto. Os dois se conheceram dentro do sistema prisional brasileiro, mostrando a falha do Estado em isolar lideranças de facções.
Mesmo preso em Regime Disciplinar Diferenciado (RDD), o chileno conseguiu fazer amizade com Marcola. Norambuena teria influenciado de tal forma o brasileiro que, após a convivência dos dois, o PCC mudou a sua estrutura, que deixou de ser piramidal para se tornar uma organização mais horizontal.
Ainda na obra, os pesquisadores Bruno Paes Manso e Camila Nunes Dias contam que entrevistaram um membro do PCC que permaneceu um ano em penitenciárias federais. Para esse preso, o sistema federal era o “comitê central do crime no Brasil”. “Ele se referia ao fato de as unidades federais reunirem presidiários dos mais variados estados e facções, oferecendo oportunidade singular de estabelecer contatos, alianças ou rupturas”, diz um trecho do livro.
Foi no Presídio Federal de Catanduvas, por exemplo, que uma reunião entre presos em 2006 resultou na criação da facção Família do Norte. Mais tarde, a facção se aliou ao Comando Vermelho, também a partir do encontro de lideranças das duas organizações criminosas em um presídio federal, desta vez em Campo Grande.
Ex-diretor-geral do Departamento Penitenciário Nacional (Depen) entre 2011 e 2014, o promotor Augusto Rossini chegou a uma conclusão parecida em um artigo incluído no livro Execução Penal: diferentes perspectivas.
“Ao chegar em uma das quatro unidades [do sistema penitenciário federal – o presídio de Brasília ainda não havia sido inaugurado à época], o preso amplia seu leque de conhecidos. De um momento para o outro, seu campo de atuação passa de estatal para nacional”, escreveu Rossini. “Em verdade, nunca na história do país presos dos mais distantes quadrantes foram unidos pelo próprio Estado. Quando uma liderança do Maranhão se encontraria com outra do Rio Grande do Sul? Quando uma liderança de São Paulo se encontraria com outra do Mato Grosso”, escreveu também o promotor.
O Regime Disciplinar Diferenciado (RDD), que é aplicado em algumas penitenciárias estaduais, também contribuiu para a articulação de facções criminosas como PCC e Comando Vermelho, segundo o pesquisador Welliton Caixeta Maciel, do Núcleo de Estudos sobre Violência e Segurança da Universidade de Brasília (UnB).
“A expansão, assim como o surgimento [das facções] se valeu da estrutura do Estado”, analisa o pesquisador. “Uma das formas foi pelo RDD, que foi criado, concebido, justamente com esse propósito de desarticular os grupos. Por isso foi criado o SPF [sistema penitenciário federal], como modo de desarticular o PCC e as lideranças desses grupos. Só que houve um favorecimento, não só da expansão do PCC para outras unidades da federação, como outras gangues foram criadas nos estados”, completa Maciel.
Qual a melhor estratégia para lidar com as facções?
Para o pesquisador Welliton Caixeta Maciel, a melhor estratégia para lidar com a atuação das facções criminosas é o investimento em inteligência. “A estratégia é desarticular os grupos a partir de investimento em inteligência e em ações de segurança pública”, diz o pesquisador.
Mas, apesar do discurso de combate à violência e à criminalidade que deu o tom da campanha do presidente Jair Bolsonaro em 2018, os investimentos em segurança pública do governo federal caíram no primeiro ano da gestão. A União investiu na área R$ 11,3 bilhões no ano passado, uma redução de 3,8% em relação a 2018. Enquanto isso, estados e municípios aumentaram os recursos destinados para a área, em 0,6% e 5,3%, respectivamente.
A União também diminuiu os gastos com inteligência em 37,6% em relação a 2018. O governo federal investiu R$ 77,1 milhões com informação e inteligência. Em 2018, o valor investido havia sido de R$ 123,7 milhões.
Outra estratégia, segundo Maciel, é atacar a corrupção dentro dos presídios. “Os grupos se valem de negociações com agentes do Estado. Eles cooptam diretores de presídios, agentes penitenciários, advogados, etc”, afirma o pesquisador da UnB.
Além disso, Maciel também sugere repensar o cumprimento de penas no Brasil. “Tentar outras medidas de cumprimento de pena que não priorize a prisão como pena principal", diz. Segundo ele, outro modelo de responsabilização vai tirar "mão de obra" para as facções de dentro dos presídios – e isso vai enfraquecê-las.
O que diz o Depen
A Gazeta do Povo procurou o Depen para comentar a estratégia de isolamento de lideranças de facções em presídios federais. Em nota, o órgão informou que cumpre “fielmente as atribuições legais que lhes são pertinentes, conforme estabelece a Lei n.º 7.210, de 11 de julho de 1984 e Decreto n.º 8.668, de 11 de fevereiro de 2016, buscando, com base no princípio da eficiência e demais normas do direito, praticar, da melhor forma possível, os atos administrativos relativos à execução das penas referente aos presos custodiados em estabelecimentos penais federais”.
“A inclusão de presos oriundos dos Estados no Sistema Penitenciário Federal deve obedecer o que determinam a Lei n.º 11.671/2008 e o Decreto n.º 6.877/2009, e tem caráter excepcional e prazo determinado”, informou ainda o Depen.
Recentemente, o ministro da Justiça e Segurança Pública, André Mendonça, afirmou que o governo federal tem o compromisso de melhorar a qualidade do sistema penitenciário do país. “É uma prioridade do ministério não apenas a gestão do sistema penitenciário federal, mas também a melhoria da qualidade da gestão do sistema penitenciário como um todo”, afirmou.
O ministro destacou que o trabalho do Depen com estados e Distrito Federal resultará, em 2020, na criação de 20 mil novas vagas no sistema penitenciário. Até 2023, a meta é chegar a 100 mil novas vagas.
"O sistema prisional é um dos grandes desafios da segurança pública. O que posso garantir a todas as autoridades envolvidas na fase de execução da pena é que, hoje, muitos dos indicadores de criminalidade, em especial a criminalidade violenta, se devem ao fato de não termos uma gestão adequada dentro do sistema penitenciário como um todo”, afirmou o ministro.