Durante passagem por Cabo Verde, na África, na quarta-feira (19), o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), "agradeceu" aos africanos por "tudo o que foi produzido durante 350 anos de escravidão" no Brasil. A declaração dele ocorreu logo após a União Europeia reconhecer oficialmente os danos causados pela escravidão aos países da América Latina e Caribe no período colonial.
A fala de Lula é moralmente condenável porque trata a escravidão como algo que seria positivo para o Brasil, em uma visão utilitarista que não leva em conta o sofrimento e os direitos das centenas de milhares de pessoas que foram escravizadas. Mas, no contexto das relações internacionais, por ora, a fala aponta mais para uma gafe diplomática ou ato falho do que para uma aprovação deliberada da escravidão com algum objetivo político.
Lula disse a José Maria Neves, o presidente de Cabo Verde, arquipélago que fazia parte da rota de tráfico negreiro para o Brasil no período colonial:
"Temos uma profunda gratidão ao continente africano por tudo que foi produzido durante 350 anos de escravidão no nosso país. A forma de pagamento que um país como o Brasil pode fazer [está em] tecnologia, na possibilidade de formação de gente para que tenha especialização para as várias áreas que o continente africano precisa, [como] industrialização e agricultura. Queremos agora, com minha volta à Presidência, recuperar a boa e produtiva relação que o Brasil tinha com o continente africano."
Europeus reconhecem que tráfico de escravos foi uma "barbárie abominável"
Lula fez o infeliz agradecimento pela escravidão logo após participar de discussões na III Cúpula da Celac (Comunidade de países da América Latina e Caribe) - União Europeia, que ocorreu nesta semana na Bélgica. Um dos resultados desse encontro foi uma declaração formal conjunta na qual a União Europeia reconheceu a devastação causada pela escravidão.
Mas, pelo texto da declaração, os europeus reconhecem e lamentam erros do passado. Eles não agradeceram aos cidadãos africanos por terem realizado trabalhos e gerado riquezas em regime de escravidão, como fez Lula.
"Reconhecemos e lamentamos profundamente o sofrimento incalculável infligido a milhões de homens, mulheres e crianças como resultado do comércio transatlântico de escravos", diz o décimo ponto da declaração conjunta.
A cúpula da Celac-União Europeia também registrou formalmente que "a escravidão e o tráfico de escravos, incluindo o comércio transatlântico de escravos, foram tragédias terríveis na história da humanidade não apenas por causa de sua barbárie abominável, mas também em termos de sua magnitude, natureza organizada e especialmente sua negação da essência das vítimas, e que a escravidão e o tráfico de escravos são um crime contra a humanidade".
O documento também diz que a Europa e a América Latina apoiam os princípios da Declaração e Programa de Ação de Durban, um documento produzido pela ONU em 2001. Ele prevê a adoção de uma série de medidas para evitar e punir crimes de racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerância.
Desejo de reparação marcou cúpula entre europeus e latinos
Nações do Caribe foram as mais veementes em exigir que os europeus registrassem na declaração final da cúpula da Celac - União Europeia os estragos causados pela escravidão em países em desenvolvimento.
Um dos mais eloquentes porta-vozes da pauta foi o premiê de São Vicente e Granadinas, Ralph Gonsalves, que ocupa a presidência rotativa da Celac. Ele exigiu ações de Justiça reparatória pela escravidão e genocídio de povos nativos da América Latina e Caribe.
A pressão da Celac fez a União Europeia registrar apoio formal ao um plano criado em 2014 pelos as 15 países que formam a Comunidade do Caribe (Caricom).
Entre os pontos, os países exigem um pedido público de desculpa; o cancelamento das dívidas que alguns Estados mantêm com seus antigos colonizadores e o investimento da Europa no desenvolvimento do Caribe.
Até o momento, no entanto, pouco tem sido feito nesse sentido além do reconhecimento de culpa.
"Mea culpa" europeia foi reação a ações russas de propaganda
Especialistas analisam que o reconhecimento de culpa pela escravidão tenha sido mais um movimento do bloco europeu para se reaproximar da América Latina e do Caribe. O intuito seria contra-atacar em um esforço de guerra de propaganda promovido pela Rússia pela internet em países do chamado Sul Global, especialmente na África.
O países do Ocidente iniciaram uma campanha de sanções e isolamento diplomático da Rússia desde o inicio da invasão à Ucrânia em 2022. Isso gerou uma polarização com Estados Unidos e seus aliados do G7 (grupo dos países democráticos mais desenvolvidos do mundo) de um lado e Rússia e China de outro. Os dois blocos passaram então a cortejar os países em desenvolvimento não envolvidos diretamente com a guerra. Eles estão em busca de apoio diplomático e comercial.
Após obter sucesso com uma campanha de propaganda na África, a Rússia estaria voltando esforços agora para a América Latina. As inúmeras declarações de apoio feitas por Lula à Rússia são um indício dessa tendência.
Moscou quer reproduzir na América Latina modelo de propaganda usado na África
Para afastar os países da Europa e conquistar aliados, o Kremlin utilizou-se de estratégias digitais para espalhar fake news e fazer postagens anti-ocidentais e pró-Rússia na África. Presente no Twitter e no Telegram, o grupo chamado Russosphère (Esfera Russa) frequentemente faz publicações acusando a França de "colonialismo" moderno e chamando o exército ucraniano de "nazistas" e "satanistas".
Apenas no Telegram, o grupo tem mais de 40 mil inscritos e mais de três mil seguidores no Twitter. O aplicativo para troca de mensagens, no entanto, é a principal plataforma utilizada pelo grupo. Conforme revelou em janeiro a BBC, além de elogios a Putin e repassar a ideologia russa, o grupo também chega a recrutar seguidores interessados em apoiar diretamente o Kremlin na guerra.
Essa foi a campanha de guerra de informação mais bem sucedida desde o início da guerra na Ucrânia, segundo investigação da BBC. O sucesso se deve ao fato de que os abusos europeus da época colonial ainda são uma questão latente para a África nos dias de hoje. Por isso suas nações são vítimas fáceis para discursos tendenciosos de neocolonialismo.
O doutor em relações internacionais e pesquisador da universidade de Harvard Vitélio Brustolin avalia que o líder russo Vladimir Putin viu uma janela para expandir a influência que a Rússia já tinha sobre a África.
Por muitos anos, países africanos mantiveram relações com a União Soviética e esses laços se mantiveram com a Rússia. Muitos líderes africanos defendiam que as armas e o treinamento militar fornecidos pelo país eram essenciais na luta contra a minoria branca e o colonialismo enfrentado na África.
"A relação militar e de segurança entre a Rússia e a África é o cerne da influência da Rússia na África”, chegou a dizer os pesquisadores Sarah Daly e Abdelhak Bassou em relatório que avaliou a influência russa no continente africano desde o início da guerra.
Em troca de recursos minerais e se apoiando na narrativa colonial, a Rússia passou a oferecer não apenas treinamento mas também proteção militar a determinados governos da África. À Gazeta do Povo, Brustolin contextualiza que mercenários do Grupo Wagner há anos estão em território africano.
Os mercenários comandados pelo oligarca russo, Yevgeny Prigozhin, sempre atuaram em prol dos interesses do governo em Moscou. Formado por uma combinação de ex-soldados russos, condenados e estrangeiros, o Kremlin utilizou-se do grupo para expandir a influência russa no continente mais pobre do mundo.
Um dos países de grande atuação desses mercenários é no Sudão, país que rico em ouro. Interessado no produto, a Rússia fornece armas e apoio militar à região em troca do ouro sudanês. Hoje o país enfrenta uma guerra civil.
A campanha russa de informação na África já está tendo resultados práticos. Além de obter apoio político, o Kremlin está fazendo com que tropas europeias se retirem de missões de paz, como ocorreu no Mali. Outros alvos diretos da propaganda russa são Burkina Faso, Chade, Níger e Mauritânia.
A Rússia vem fazendo promessas semelhantes de venda de armamentos e tecnologia para o Brasil. Essa tendência já se consolidou na Venezuela há anos. Caracas depende totalmente do armamento e em mercenários russos nos dias de hoje.
União Europeia quer conter avanço da China e da Rússia na América Latina
Na intenção de evitar que o mesmo processo aconteça com a América Latina e países do Caribe, a União Europeia tem se movimentado para reconquistar essa região do mundo. Durante a III Cúpula Celac-União Europeia, que ocorreu na última semana na cidade de Bruxelas, na Bélgica, o bloco europeu tentou se aproximar dos países-membros da Celac.
No encontro que reuniu 60 países – 33 latinos e caribenhos e 27 europeus – a UE apresentou propostas de parcerias com os países da Celac e investimento de 45 bilhões de euros na América Latina.
A ideia era também avançar em acordos de comércio bilionários com o México, Chile e o acordo entre Mercosul e União Europeia que pode gerar mais de R$ 500 bilhões para o Brasil, mas está travado por questões ambientais.
O intuito geral era que, com o anúncio de investimentos e parcerias, a União Europeia pudesse ganhar a confiança da América Latina, mas isso não aconteceu da forma planejada. Durante a cúpula, os países não entraram em um consenso sobre a invasão da Ucrânia e a postura neutra ou pró-Rússia de alguns países latino-americanos gerou desentendimentos que prejudicaram as negociações comerciais.
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