Ouça este conteúdo
Em menos de uma semana o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) chamou de monstros bebês que foram frutos de estupro, disse que o Brasil mereceu o 7x1 na Copa do Mundo de 2014, que artistas de cinema e novela não deveriam ensinar "putaria" e aconselhou uma beneficiária de um programa de habitação a parar de ter filhos. Segundo analistas ouvidos pela reportagem, além de terem desagradado a direita e a própria esquerda, as declarações mostram quem é Lula realmente e não o personagem "paz e amor" e progressista que sua equipe de marketing tenta construir.
“Por que uma menina é obrigada a ter um filho de um cara que estuprou ela? Que monstro vai sair do ventre dessa menina?", disse Lula em entrevista à rádio CBN na terça-feira (18) criticando o Congresso por estar discutindo o projeto de lei antiaborto, que equipara o procedimento realizado após a 22ª semana com o crime de homicídio.
Em 2022, a campanha eleitoral de Lula havia dado publicidade a uma carta aos evangélicos, onde o texto dizia: "Nosso Projeto de Governo tem compromisso com a Vida plena em todas as suas fases. Para mim a vida é sagrada, obra das mãos do Criador e meu compromisso sempre foi e será com sua proteção. Sou
pessoalmente contra o aborto".
Segundo o cientista político Valdir Pucci, professor da Faculdade Republicana, Lula tentou se aproveitar da derrota da oposição em tentar votar neste momento o projeto de lei antiaborto. “Foi uma frase feita de improviso que, na verdade, saiu muito mal, ficou muito feia saindo da boca de um presidente porque ele está, em tese, chamando uma criança de monstro”.
Fala sobre sexualidade foi estratégia política ou ato falho?
Durante a homenagem ao Dia do Cinema Brasileiro, na quarta-feira (19), Lula surpreendeu a classe artística, predominantemente de esquerda, dizendo: “Eu sou da turma em que artista, cinema e novela não é para ensinar putaria. É para ensinar cultura. É para contar história, é para contar narrativas e não para dizerem que nós queremos contar coisas erradas às crianças. Não, nós só queremos fazer aquilo que se chama arte. Quem não quiser entender o que é arte, dane-se.”
Pucci opina que essa declaração de Lula foi estratégica e não um ato falho. Segundo ele, ao mesmo tempo em que mantém sua posição de defesa dos investimentos em cultura, ele faz um aceno positivo ao eleitorado conservador ao criticar a exposição da sexualidade em produções culturais.
"Então, é uma tentativa durante essas falas de improviso justamente de manter acesa a polarização, uma vez que ele entende que é a polarização na sua estratégia política é boa para a sua possível reeleição", afirmou o analista.
Mas se Lula tiver saído do roteiro de forma desproposital, outra interpretação possível é que elas indiquem que ainda predomina em Lula o pensamento de líder sindical e a ideologia marxista de luta de classes, que fundamentou inicialmente o pensamento do Partido dos Trabalhadores. Só mais tarde Lula e o PT passaram a abraçar o progressismo.
Para o cientista político Elton Gomes, professor da Universidade Federal do Piauí (UFPI), as recentes polêmicas mostram que o presidente aparenta não se importar em manter a “persona” que políticos mais tradicionais buscam manter em aparições públicas.
“Sempre vai existir uma divergência entre a imagem que o político busca construir e aquilo que ele de fato é. Se é que um político, seja Lula ou qualquer outro, tem condições de viver uma vida fora do personagem”, disse Elton Gomes. Essa percepção se soma ao fato de que Lula geralmente não obedece ao roteiro repassado pelos assessores mais próximos.
Um exemplo disso é outra fala de Lula desta semana. Ao discursar durante ato de entrega de moradias do Minha Casa, Minha Vida, em Fortaleza (CE), nesta quinta-feira (20), o presidente disse para uma beneficiária do programa habitacional que ela precisava “parar de ter filhos”.
A mulher, que segundo Lula, tem 25 anos, é mãe de três crianças. O presidente disse que ela deveria começar a estudar para manter as crianças. Lula, por sua vez, tem cinco filhos e não possui educação superior. A fala dele reflete também o pensamento do governo de tentar intervir em todos os aspectos da sociedade, inclusive em decisões de cunho estritamente pessoal.
Fala de Lula sobre Copa de 2014 dá a entender que Brasil tem que ser punido por combater corrupção
Ao discursar durante a posse da nova presidente da Petrobras, Magda Chambriard, nesta quarta-feira (19), no Rio de Janeiro, Lula afirmou:
“Vocês estão lembrados quando nós começamos a fazer a Copa do Mundo, a quantidade de denúncias de corrupção dos estádios? E muita gente inventou aí - da direita mesmo: tudo tem que ser padrão Fifa, porque o Brasil tem que dar saúde padrão Fifa, o Brasil tem que dar não sei o que lá padrão Fifa. Na tentativa de desmoralizar a Copa do Mundo. E, Deus é justo, nós tomamos de 7 a 1 naquela Copa, da Alemanha. Já que é para castigar, vamos castigar.”
Ao menos nove estádios da Copa do Mundo foram alvos de denúncias apuradas pela Operação Lava Jato. Em 2022, membros do Partido dos Trabalhadores foram condenados por superfaturamento em contratos de obras do Estádio Mané Garrincha, em Brasília (DF).
O cientista político Valdir Pucci avalia que a frase do presidente foi infeliz para ele, pois deu a entender que o Brasil precisa ser punido por buscar combater a corrupção. Na opinião do analista, Lula tenta fazer uma defesa do PT, mas a analogia acaba sendo muito ruim. Isso porque o presidente diz que o combate à corrupção é que merece ser castigado. “E aí cola nele justamente a ideia de que o PT é um partido que compactua com a corrupção.”
Além disso, a ao se referir à direita, Lula deixa claro que não abandonou o caráter combativo e polarizador da eleição - ao contrário da figura de marketing do "Lula paz e amor".
Comunicação do governo ficou datada
Após recente queda de popularidade de Lula, a Secretaria de Comunicação da Presidência da República (Secom) vem sendo pressionada a trabalhar para mudar o cenário. Em abril, o órgão chegou a realizar uma licitação de R$ 197 milhões para contratar empresas de mídia. Entretanto, a visão do PT, Lula e o governo sobre comunicação pode estar interferindo na efetividade das ações.
Segundo o analista Elton Gomes, a comunicação do governo ficou datada e já não corresponde aos padrões de redes sociais, que são utilizadas em larga escala pelos brasileiros. Ele avalia que a atual gestão ainda está presa aos moldes da comunicação “analógica”, onde era possível ter um maior controle sobre o discurso e as palavras do presidente.
“Eu diria que o trabalho da Secretaria de Comunicação é um trabalho que ficou datado, não acompanhou as transformações comunicacionais do período mais contemporâneo e ficou muito restrito a um paradigma comunicacional anterior, em que você tinha muito mais controle e a informação era centralizada nos veículos tradicionais. Essas declarações do Lula, antigamente, ficariam restritas a campos específicos. Com as redes sociais, essas declarações são vistas em tempo real e pelo país inteiro”, disse Elton.
Vitória eleitoral e apoio no STF dão a Lula sensação de conforto
Segundo alguns analistas, a vitória eleitoral de 2022 pode ter dado ao petista a sensação de que suas falas não teriam impacto político. O alinhamento de parte da imprensa e de ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) são avaliados como fatores importantes para o posicionamento do presidente.
“Lula está muito à vontade nesse mandato. Ele literalmente foi tirado da prisão, foi recolocado em condições políticas e ainda se elegeu. Por conta disso, ele está se sentindo bastante empoderado para falar o que pensa e tomar as decisões que ele acredita serem as mais adequadas para ele”, disse o cientista político Adriano Cerqueira, docente no Ibmec de Belo Horizonte.
Ele também avalia que o presidente está tendo o mesmo comportamento que tinha quando era líder sindical, antes de ser eleito em 2002. Em 2000, o petista chamou a atenção por chamar a cidade de Pelotas, no Rio Grande do Sul, de “exportadora de viados”.
“O início da carreira política do Lula foi uma carreira extremista, radical. Essas declarações podem indicar que ele está retornando às origens”, disse o cientista político.
Outro ponto de vista é o do cientista político Valdir Pucci. Segundo ele, apesar dos diversos erros em declarações, as falas de Lula estariam inseridas em uma estratégia que visa manter a polarização política no país, "surfar" na opinião pública, satisfazer seus apoiadores do PT e tentar se aproximar do eleitor conservador. “O Lula é um estrategista político, se não fosse, não teria ganho três eleições no Brasil é nos últimos anos”, afirmou.
“Melhora” na popularidade pode explicar falas polêmicas
As declarações de Lula ocorrem ao mesmo tempo em que uma pesquisa do instituto DataFolha mostra uma oscilação alegadamente positiva na popularidade de Lula após quase um ano de queda. De acordo com o levantamento, 36% avaliam o governo Lula como "ótimo" ou "bom", pequena oscilação ante os 35% verificados em março.
A reprovação - aqueles que consideram a gestão "ruim" ou "péssima" - passou de 33% na rodada anterior para 31%. Os que avaliam o trabalho do governo como regular saíram de 30% para 31%.
Metodologia: A pesquisa foi realizada com 2.008 entrevistados de 16 anos ou mais entre os dias 4 e 13 deste mês. A margem de erro é dois pontos percentuais para mais ou para menos.
Para Cerqueira, Lula pode ter avaliado de forma distorcida a pesquisa, que não apresenta uma melhora efetiva na popularidade.
“Ao meu ver pode ter sido uma tentativa forçada (do Lula) de navegar em uma suposta onda de melhora. É importante lembrar que essa pesquisa do DataFolha não mostra uma melhora, mas oscilação. Além disso, esses 36% são a base efetiva do Lula. É aquele percentual do eleitorado que vota nele. Aquele apoio que ele conseguiu para além da base, em 2022, não está mais lá”, disse o cientista político.