A Controladoria-Geral da União (CGU), ministério de fiscalização do Executivo, informou nesta semana que pretendia divulgar o cartão de vacinação do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL). A medida, se efetivada, quebrará o sigilo de 100 anos imposto ao documento no governo anterior e segue uma orientação do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), anunciada ainda durante a campanha, de abrir informações de acesso restrito da gestão passada.
A previsão era de que o cartão fosse divulgado até o fim de semana, a partir de recursos encaminhados à CGU contra decisões anteriores que haviam negado o acesso. Porém, nesta sexta (17), o órgão informou que a quebra de sigilo deste caso ainda será analisada, alegando que há uma investigação em curso sobre uma suposta adulteração na carteira de vacinação do ex-presidente.
"Considerando que a investigação é sigilosa e não está concluída, a CGU submeteu a matéria à avaliação de sua Consultoria Jurídica para emitir parecer quanto à viabilidade de divulgação da decisão sobre o sigilo relacionado a esse tema, por estar em curso a apuração correcional", diz a nota da CGU.
Nos bastidores, porém, há o temor, especialmente de outras áreas do governo, de que a divulgação abra brecha para que informações privadas de saúde de autoridades do atual governo tenham de ser abertas, caso isso seja pedido via Lei de Acesso à Informação (LAI) ou mesmo na Justiça.
A decisão de divulgar o documento pode significar uma virada no entendimento anteriormente definido pela CGU, que, por tratar de uma informação pessoal de Bolsonaro, se ancorava no direito à intimidade e à privacidade do ex-presidente, garantido pela Constituição.
Essa restrição se baseia ainda na regra da LAI que só permitia a divulgação de informações privadas em caso de consentimento expresso da autoridade ou previsão legal – e não há lei que obrigue uma autoridade a publicar dados de sua saúde.
Em entrevistas recentes, o novo ministro-chefe da CGU, Vinicius Carvalho, afirmou que, diante de pedidos pendentes da imprensa para ter acesso ao cartão, o órgão passou a rediscutir a questão.
“Há uma discussão quando se está diante de uma política pública de vacinação no meio de uma pandemia. As pessoas eram estimuladas ou desestimuladas a se vacinarem e isso gerava impacto no índice de contaminação, nas mortes. Em uma situação como essa, será que há interesse público numa carteira de vacinação de uma autoridade pública?”, disse ele ao jornal Folha de S.Paulo no início do mês.
Ele ainda argumentou que, como o próprio Bolsonaro já declarou que não se vacinou contra a Covid, não haveria propriamente uma quebra de sigilo.
“Se essa preocupação de intimidade é algo assim tão relevante, a pessoa pode dizer: ‘Não vou falar, é da minha intimidade’. Então, uma coisa para ser problematizada é a distância que existe entre uma declaração e um cartão de vacina. E aí também um contexto histórico que se vivia naquele momento em relação a esse tema”, afirmou Vinicius Carvalho ao portal Metrópoles.
Motivos de divulgação não estão claros, avaliam especialistas
Consultados pela reportagem, especialistas no tema e alguns advogados próximos do ex-presidente manifestaram estranheza e espanto com a decisão da CGU. Para eles, não há mais sentido em divulgar o documento, porque Bolsonaro já não exerce cargo público, a vacina foi adquirida pelo seu governo e amplamente aplicada no Brasil, e ainda pelo fato de o momento mais grave da pandemia já ter terminado.
O advogado e professor Acacio Miranda da Silva Filho, doutor em direito constitucional e mestre em direito penal, pondera que agentes públicos têm uma proteção menor de sua privacidade, inclusive no que diz respeito à sua própria saúde, porque pode ser importante que a sociedade saiba se algum problema pode afetar a capacidade de um presidente de governar.
Mas no caso de Bolsonaro, Miranda avalia que não está claro exatamente por qual motivo se busca a divulgação de seu cartão de vacinação.
“Isso está sendo discutido agora nos Estados Unidos, com o atual presidente Joe Biden, e foi também na época de Donald Trump. Suponha que ele sofra de uma doença que o afete em termos intelectuais. Acho que a população tem o direito de saber que seu representante está sofrendo essa doença e quais são os efeitos que ela traria para o exercício do cargo. É diferente da intimidade em termos familiares", começa o advogado.
"Mas, no caso do Bolsonaro, neste momento, acho que a questão da vacina não interessa mais. Porque existem outros mecanismos para responsabilizá-lo por eventuais ações ou omissões”, diz, ao rebater uma possível justificativa para a divulgação, de investigar Bolsonaro pela forma como conduziu o combate à pandemia. “O interesse público já não é mais atual, em nada mudaria as circunstâncias atuais”, completa.
Ele cogita a possibilidade de uso da informação, a pretexto de dar transparência, para fins políticos. “Você torna subjetiva uma interpretação que não deveria ser assim”, afirma.
O professor e doutor em direito constitucional pela USP Dircêo Torrecillas também entende que não faz mais sentido quebrar esse sigilo, violando inutilmente a privacidade de Bolsonaro.
“Quando se trata da intimidade, o sigilo deve ser preservado. Salvo por questão de segurança nacional, um interesse público maior em jogo. Mas aqui é uma coisa particular. É mais um abuso de poder que cometem certos órgãos”, diz.
Ele lembra que o inciso X, do artigo 5º da Constituição, que diz serem invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, também assegura o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação. Com base nisso, Bolsonaro poderia pedir uma indenização do Estado por divulgar uma informação privada sem seu consentimento.
Dois advogados próximos do presidente foram consultados e demonstraram perplexidade com a decisão da CGU. Eles pediram para não ser identificados em razão da delicadeza do tema, mas disseram que, antes mesmo de um eventual pedido de indenização, após a divulgação, seria possível acionar o Supremo Tribunal Federal (STF) para impedi-la, antes que ocorra.
A ação apropriada, no caso, seria um mandado de segurança, que é peticionado quando o responsável por ilegalidade ou abuso de poder for uma autoridade pública.
Decisão pode levar à divulgação de informações pessoais de Lula
Para outro advogado que pediu reserva, a decisão da CGU abre caminho para que cidadãos peçam ao governo informações mais detalhadas, inclusive de prontuários médicos, sobre o estado de saúde das autoridades no exercício do cargo. Um exemplo seria o próprio Lula, que recentemente teve de tratar uma lesão na laringe – em 2011, um câncer foi tratado na região.
Em 2020, a privacidade e intimidade de Bolsonaro em questões de saúde chegou a ser objeto de controvérsia na Justiça, com decisões divergentes. Na época, início da pandemia de Covid, o presidente havia retornado de uma viagem aos Estados Unidos na qual mais de 20 integrantes de sua comitiva foram diagnosticados com Covid. Pelas redes sociais, Bolsonaro informou que seu exame resultou negativo. Mas o jornal O Estado de S. Paulo acionou a Justiça Federal para obter os laudos e confirmar se, de fato, Bolsonaro estava sem Covid, como anunciou.
O juiz de primeira instância deferiu uma liminar para dar ao jornal acesso aos exames. Disse que restrições ao direito de acesso à informação devem ser interpretadas de maneira estrita, cabendo ao agente público, no caso, provar a necessidade de manter o sigilo. Depois, observou que a Lei de Acesso à Informação (LAI) permite divulgar informações privadas, sobre as quais foi imposto sigilo, para os casos de “proteção do interesse público e geral preponderante” ou de “recuperação de fatos históricos de maior relevância”.
A decisão foi mantida na segunda instância, e a Advocacia-Geral da União (AGU), que fazia a defesa de Bolsonaro, recorreu ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), em Brasília. O então presidente da Corte, João Otávio de Noronha, suspendeu a liminar, impedindo a entrega do exame ao jornal, invocando o direito à intimidade.
O Estadão recorreu ao Supremo, onde a ação foi sorteada para a relatoria do ministro Ricardo Lewandowski. Antes que ele tomasse uma decisão sobre o recurso, a AGU, a pedido de Bolsonaro, resolveu espontaneamente entregar os exames e disponibilizá-los no processo, com acesso público.
O ministro, então, declarou a perda de objeto, uma vez satisfeito o pedido do jornal de obter o documento, e deixou de avaliar se a ordem da primeira instância, caso concretizada à revelia do presidente, violaria ou não seu direito à intimidade.
O resultado, como havia anunciado Bolsonaro, era mesmo negativo para a Covid. Meses depois, quando o ex-presidente contraiu a doença, ele informou o diagnóstico numa entrevista à imprensa e permaneceu isolado por 14 dias, como recomendavam as autoridades sanitárias.
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