Uma lei aprovada em 1996 mudou o panorama das exportações brasileiras. Com o objetivo de ampliar o comércio exterior, a Lei Kandir (35/1996) desonerou o ICMS de exportações de produtos primários e semi-elaborados, o que inclui a produção do agronegócio e a mineração, e isentou do imposto também a compra de máquinas e equipamentos.
A isenção do tributo sobre circulação de mercadorias e serviços iria até 2002, e os estados seriam compensados pelo governo federal, com valores definidos em lei. Após isso, houve a extensão e o executivo teria a ‘liberdade’ de definir os valores anuais, fundamentalmente por medida provisória – teoricamente, após o Ministério da Fazenda negociar com os estados.
Desde então, a polêmica segue viva. Em 2018, por exemplo, nem sequer houve repasse, reclamam os deputados ouvidos pela reportagem. Em outros anos, os repasses foram ‘migalhas’.
Lei Kandir morreu, afirma Paulo Guedes
No que depender do aperto de cintos do ministro da Economia, Paulo Guedes, os estados podem não ver a cor do dinheiro este ano. “A Lei Kandir morreu há muito tempo”, disse o ministro na Comissão de Assuntos Econômicos (CAE) do Senado, dia 27 de março. Em nota enviada à Gazeta do Povo, o ministério da reforça a fala de Guedes.
“O ME entende que a atual configuração da Lei Kandir não é positiva nem para a União, nem para os Estados, que anualmente discutem se a compensação da desoneração estabelecida para a Lei Kandir é ou não devida, gerando uma competição predatória por recursos”, afirmou a Pasta.
Neste sentido, o principal medo da bancada ruralista é que o sepultamento da Lei Kandir faça os estados voltarem a cobrar ICMS das exportações. Situação que tem potencial para estremecer as relações do agronegócio com o presidente Jair Bolsonaro, onde fica grande parte de sua base eleitoral, especialmente desde que a bancada declarou apoio incondicional ao capitão do exército. Para se ter uma ideia, dela saíram dois ministros: Onyx Lorenzoni (Casa Civil) e Tereza Cristina (Agricultura).
VÍDEO: Produtor rural explica as consequências de uma possível revogação da Lei Kandir
“Não podemos exportar imposto, nem tirar os estados da crise fiscal tributando produção agrícola. Isso não cabe no custo de produção. As exportações são em dólar: se aumentar o custo, estaremos fora do mercado. Se em algum momento o governo fizer esse exercício, iremos exigir a compensação por outros tributos”, afirma o deputado federal Alceu Moreira (MDB-RS), presidente da Frente Parlamentar Agropecuária (FPA).
Segundo cálculo da Confederação Nacional da Indústria e Agropecuária (CNA), caso a Lei Kandir fosse extinta, o impacto sobre o faturamento das exportações do setor ficaria na ordem R$ 47,9 bilhões – tendo como base os resultados de 2018. Produtor rural de Itambé, município localizado no Noroeste do Paraná, e um dos líderes do movimento Brasil Verde Amarelo, Valdir Fries comenta os riscos da revogação da Lei Kandir:
“Se formos tributados, perderemos todo o mercado que conquistamos. Vai sobrar muito produto no mercado interno. Não podemos deixar de plantar, mas automaticamente devemos reduzir os investimentos em tecnologia que aplicamos na lavoura. Isso gera todo um movimento financeiro, e quem sofre as consequências é o estado, pois aumenta o desemprego”.
Quer pagar quanto?
O Supremo Tribunal Federal até tentou resolver o impasse. Em novembro de 2016, fixou um prazo para o Congresso regulamentar a compensação financeira. Em caso de ausência, o Tribunal de Contas da União (TCU) bateria o martelo. Entre idas e vindas, nada foi legislado – e o governo continuou pagando o ‘quanto queria’.
Em fevereiro deste ano, o ministro do STF Gilmar Mendes deu mais 12 meses para o Congresso legislar sobre o tema, após o TCU afirmar que a União não tem mais a obrigação de fazer repasses bilionários aos estados.
O pepino, então, ficou para a sequência do ano. Enquanto o ministério da Economia informa que desenha uma proposta para encerrar as discussões sobre a Lei Kandir “mudando a forma de transferir recursos da União para Estados e Municípios”, a bancada ruralista vê com bons olhos a Proposta de Lei Complementar 511/2018, de relatoria do senador Wellington Fagundes (PR-MT).
Pelo que dizem os deputados, a proposta é flexível. Em 2018, o grande problema teria sido a negociação de bastidores: a União queria pagar R$ 3,9 bilhões ao ano, e os estados queriam R$ 39 bilhões, valor previsto na proposta de Fagundes – 75% para estados e 25% para municípios.
Aprovada em Comissão Mista Especial do Congresso, a LC 511/2018 espera para ir à Plenário na Câmara. “Queremos até deixar o montante [que não foi pago pelo governo aos estados] para trás e colocar algo em torno de R$ 30 bilhões ao ano. É sentar com a equipe econômica e buscar a negociação”, admite o deputado federal Neri Geller (PP-MT), ex-ministro da Agricultura (2014-2015) e uma das lideranças da FPA nesse tema. Ele defende a versão da relatoria de Fagundes, mas mostra disposição em negociar.
“Precisamos pensar daqui para frente. Uma proposta que temos é que o governo concorde com uma devolução de 30% do valor da Lei Kandir, a partir do ano que vem, e aumentando 5% ano, até chegar o valor total. Por exemplo, se o estado do Paraná tem R$ 100 milhões para receber, concordaria em receber 30%, ou seja, R$ 30 milhões no primeiro ano, 35% no segundo ano, 40% no terceiro”, sugere o presidente da FPA, Alceu Moreira.
O problema é que a ideia de Guedes é outra: “Nós estamos fazendo algo muito melhor no lugar. Quanto esperavam ganhar [em 2018], R$ 1,9 bilhão? E quanto era o fundo de exportação, mais R$ 1 bilhão? Somando dava menos de R$ 4 [bilhões]. Pois é: vamos fazer um negócio que dá R$ 4,5 [bilhões]”, disse o ministro no Senado. Guedes espera estar com o programa pronto para início em 2020.
A Lei Kandir e a dívida da união com os estados
Neri Geller tem esperanças que o ministro Paulo Guedes seja flexível para o debate, já que a proposta é ‘deixar para trás’ um passivo bilionário. “Se olharmos para trás, seriam R$ 200 bilhões corrigidos”, informa o deputado federal. “Há cálculos de que a União deveria ter repassado algo em torno de R$ 670 bilhões [desde 2003]”, afirma Renato Conchon, coordenador do Núcleo Econômico da CNA.
Vice-presidente da FPA na Câmara, Sergio Souza (MDB-PR) tem cálculo parecido: R$ 650 bilhões no total, sendo R$ 54 bilhões a dívida para o Paraná. Ao ano, o estado esperava R$ 295 milhões. Ou seja, com ou sem reforma tributária, o governo federal tende a ser pressionado.
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“Sem a Lei Kandir, o custo de produção seria 13% ou 14% maior. Isso não cabe no bolso do produtor rural, e o governo tem que achar uma solução: seja um acordo para repor as perdas dos estados, uma nova lei para tirar mineração [da lei] e ficar somente o agro, ou a criação de uma legislação em que não se tributa exportação”, afirma Souza.
Impacto direto nos produtores
Renato Conchon vai além: “Nenhum país tributa exportação. A Argentina criou uma alíquota de retenção da soja e a participação de mercado global caiu de 15% para 8% em 2015”. O coordenador da CNA dá outro exemplo: “Somos o maior mercado de celulose da China. Exportamos, em 2018, ao valor de US$ 748 por tonelada. Com o ICMS, saltaria para US$ 875 dólares. Hoje somos mais competitivos que outros concorrentes como Indonésia, Canadá e Chile. Com a revogação [da Lei Kandir], a celulose brasileira seria mais cara que a desses três principais concorrentes. E esse impacto se reverteria na perda desse mercado”.
O produtor rural Valdir Fries lembra ainda da atual condição de transporte da safra, que encarece a produção: “A viabilidade econômica de colheita e transporte são mínimos”. Sergio Souza reforça: “O escoamento da safra na argentina é cinco vezes mais barato que no Brasil, e nos Estados Unidos, inclusive, os produtores têm subsídios para o plantio”, compara o deputado, em relação à produção brasileira contra seus dois principais rivais no comércio exterior de grãos.
O problema logístico leva ainda à outra conclusão apontada por Conchon. Ele lembra que não são apenas os produtores que sofreriam com o fim da Lei Kandir, já que os gastos dos estados estão desequilibrados. “É muito fácil falar em aumento de arrecadação”, destaca. “Mas o problema fiscal não é pura e simplesmente de receita: é de gestão.”
Procurado pela reportagem, o Ministério da Agricultura preferiu não se posicionar neste momento.
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