“Não posso admitir que, com dinheiro público, se façam filmes como o da Bruna Surfistinha. Não dá. Não somos contra essa ou aquela opção, mas o ativismo não podemos permitir, em respeito à família”. A fala foi proferida pelo presidente Jair Bolsonaro (PSL) no último dia 18 de julho e acendeu o sinal de alerta no meio cinematográfico brasileiro. Uma semana depois, uma nova declaração, feita em uma live no Facebook, caiu como uma bomba. “Vamos buscar a extinção da Ancine. Não tem nada que o poder público tenha que se meter em fazer filme. Que tenha uma empresa privada, sem problema nenhum. Mas o estado vai deixar de patrocinar isso daí.”
A Ancine à qual Bolsonaro se referiu é a Agência Nacional do Cinema, criada em 2001 para fomentar, regular e fiscalizar a produção de cinema e audiovisual no Brasil. Produtores e cineastas reagiram à declaração, sustentando que a medida prejudicaria um setor que tem movimentado bilhões na economia ao longo dos últimos anos. No dia 2 de agosto, o presidente amenizou o discurso e disse que poderia recuar do anúncio. “Tem a questão do audiovisual que emprega muita gente, então tem que ver por esse lado”, afirmou.
Apesar disso, a incerteza ainda ronda a indústria de cinema no Brasil, com a perspectiva de mudanças que não estão bem claras. Isso em um momento dos mais positivos para o cinema nacional. No ano passado, foram lançadas 185 produções brasileiras, o maior número desde a chamada “retomada” na década de 1990, que levaram mais de 24 milhões de espectadores aos cinemas. Desde o início do ano, o Brasil tem marcado presença nos principais festivais do mundo, conquistando prêmios como os de Bacurau, de Kléber Mendonça Filho, e A Vida Invisível de Eurídice Gusmão, de Karim Aïnouz, em Cannes.
Mas, afinal, o quanto o poder público “se mete” a fazer filmes, como diz o presidente? Para entender como funciona a produção cinematográfica no Brasil, a Gazeta do Povo explica as várias etapas desse processo e responde alguns questionamentos importantes sobre o tema.
Como começa um filme?
Já não basta mais apenas “uma ideia na cabeça e uma câmera na mão”, como pregou o cineasta Glauber Rocha, expoente do Cinema Novo, na década de 1960. Para viabilizar financeiramente um filme, é necessário que essa ideia esteja bem formatada em um projeto, com estimativas de custos, mão de obra e cronograma de execução. “Muitas vezes leva dois ou três anos até o projeto ficar maduro o suficiente para ir atrás de incentivo”, diz o produtor Antônio Júnior, que desde 2007 comanda a Grafo Audiovisual, produtora curitibana responsável por mais de 20 curtas e longas-metragens, entre eles os premiados Para Minha Amada Morta e Ferrugem, de Aly Muritiba. De acordo com ele, é feita uma avaliação criteriosa da viabilidade de cada projeto, o que inclui não apenas uma boa premissa, mas também custos e qualificação dos profissionais envolvidos. A fase seguinte, de captação de recursos, pode levar mais alguns anos. “O financiamento paga a etapa de produção. Antes disso, o investimento é nosso.”
De onde vêm os recursos?
Se o produtor tem dinheiro ou conhece algum mecenas disposto a bancar a produção, ótimo. Mas como isso é raro, o poder público oferece algumas alternativas. Hoje, a principal delas é o Fundo Setorial do Audiovisual (FSA), criado em 2007 justamente para fomentar a produção cinematográfica e audiovisual do país. Suas receitas vêm principalmente da arrecadação da Condecine – Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica Nacional, cobrada sobre a exploração comercial de obras audiovisuais. Redes exibidoras, emissoras de televisão e produtoras de conteúdo estão entre os contribuintes obrigatórios.
“Com o aumento no volume de recursos, o FSA se tornou hoje o maior mecanismo de incentivo ao audiovisual brasileiro, realizando investimentos em todos os elos da cadeia produtiva do setor”, diz a Ancine em sua página na internet. Antônio Júnior ratifica a importância do fundo. “Existe uma indústria porque o próprio setor audiovisual vem fomentando-a. Ela se tornou autossustentável e fez com que a produção crescesse mesmo em momentos de crise severa”, avalia. Em 2018, o FSA arrecadou cerca de R$ 870 milhões, segundo a Ancine.
Estados e municípios também disponibilizam recursos para os realizadores. No Paraná, encerraram-se em julho as inscrições para o edital que irá financiar R$ 10 milhões em filmes, telefilmes, jogos eletrônicos e desenvolvimento de projetos. Desse montante, R$ 8 milhões vêm do Fundo Setorial e R$ 2 milhões do orçamento do estado. Ao todo, 314 projetos foram inscritos, 150% a mais que no edital anterior, de 2017. “Isso mostra que o audiovisual no Paraná está crescendo e as produtoras estão se mostrando capacitadas para acessar recursos. É um reflexo dos investimentos que vêm sendo feitos ao longo dos anos”, diz Priscila Pacheco, técnica da Coordenação de Ação Cultural e Economia Criativa da Secretaria de Estado da Comunicação Social e Cultura.
Já a Fundação Cultural de Curitiba tem os editais do Fundo Municipal de Cultura, que contemplam várias áreas, entre elas o audiovisual. O último, lançado no início do ano, destinou R$ 600 mil para 19 projetos do setor. Municípios como Piraquara, Londrina e Maringá já contam com editais realizados em parceria com o Fundo Setorial. Há ainda a opção de fundos internacionais, disponibilizados por outros países.
E as leis de incentivo, como funcionam?
A Lei do Audiovisual (8.685/93), assim como a Lei Rouanet (8.313/91), são mecanismos de apoio indireto a projetos da área. Não se trata do repasse direto de recursos públicos, mas da autorização para que o realizador capte a verba junto a empresas e pessoas físicas. Ao investir no projeto, a pessoa ou empresa tem esse valor abatido dos impostos devidos. Segundo a Ancine, em 2018 foram captados mais de R$ 377 milhões através de leis de incentivo ao audiovisual. O estado do Paraná e a Prefeitura de Curitiba também têm suas leis de incentivo, que operam nos mesmos moldes.
O que acontece depois que o filme fica pronto?
Até alguns anos atrás, uma parte dos filmes feitos no Brasil acabava ficando restrita a festivais porque a distribuição não era incluída nos projetos de financiamento. Um exemplo: o filme londrinense Leste Oeste, de Rodrigo Grota, foi concluído em 2016. A estreia nos cinemas, porém, aconteceu somente no início deste mês, com recursos viabilizados pelo edital do governo do Paraná. Hoje, os recursos do Fundo Setorial contemplam também a distribuição, fazendo com ela esteja inclusa no projeto, garantindo assim a exibição nos cinemas depois de pronto o filme.
Como forma de assegurar espaço às produções nacionais, existe a cota de tela, mecanismo que desde a década de 1930 assegura reserva de mercado à produção nacional. Conforme o número de salas, os complexos de cinema são obrigados a exibir uma quantidade mínima de filmes brasileiros ao longo do ano, sob pena de multa. “O problema é que essas cotas foram afrouxadas e não vêm sendo respeitadas”, observa o produtor Antônio Júnior.
Qual tem sido o retorno para o país?
Segundo dados da Ancine, os filmes brasileiros foram vistos por mais de 24 milhões de pessoas no ano passado, arrecadando mais de R$ 290 milhões em bilheteria. A dimensão dos números, porém, é bem maior. No fim de julho, após as declarações de Bolsonaro, a Associação dos Servidores da Ancine divulgou uma carta na qual sustenta que a indústria cinematográfica gera 350 mil empregos diretos e indiretos, com um impacto de R$ 19,8 bilhões na economia, equivalente a 0,57% do PIB nacional. Além disso, os impostos gerados pelo setor somam R$ 2,1 bilhões, comparável a setores como esportes e turismo. Estima-se que, a cada R$ 1 investido no audiovisual, R$ 2,60 retornam em impostos.
O que é a Ancine e para que ela serve?
Criada em 2001, a Agência Nacional do Cinema é uma agência reguladora que tem como atribuições o fomento, a regulação e a fiscalização do mercado do cinema e do audiovisual no Brasil. Apesar da autonomia administrativa, sua diretoria precisa ser aprovada pelo Senado e está submetida ao Ministério da Cidadania. Entre as funções da agência estão analisar os projetos que pleiteiam recursos, administrar o Fundo Setorial e estabelecer normas para produção, exibição e difusão do audiovisual.
Que mudanças foram feitas para o audiovisual até agora?
De concreto, as únicas mudanças já feitas pelo governo foram relacionadas ao Conselho Superior de Cinema, responsável por formular a política nacional para o setor. O presidente Jair Bolsonaro transferiu o órgão do Ministério da Cidadania para a Casa Civil, e diminuiu o número de representantes do setor audiovisual e da sociedade civil, dando maioria ao governo. A representatividade menor desagradou o setor.
Uma mudança que está perto de ser concretizada é a transferência da Ancine do Rio de Janeiro para Brasília, com o objetivo de que o órgão esteja mais próximo do governo. Na última semana, o ministro Osmar Terra se reuniu com produtores de cinema e, segundo o colunista Lauro Jardim, do jornal O Globo, a diplomata Paula Alves de Souza deverá ser nomeada a nova diretora da Ancine.
Como funciona em outros países
Estados Unidos
Donos da maior e mais poderosa indústria cinematográfica do mundo, os americanos não têm políticas governamentais para financiamento de filmes. Porém, estados e municípios costumam conceder incentivos fiscais para atrair produtores, visto que as filmagens ajudam a movimentar a economia local.
Argentina
A Argentina mantém uma política de audiovisual parecida com a do Brasil, financiando filmes por meio de editais públicos e com o apoio de empresas nacionais de comunicação. No entanto, o país investe pesadamente na distribuição, garantindo a exibição através da cota de tela e mantendo salas de cinema que priorizam a produção nacional.
França
A França conta com um dos órgãos de regulação cinematográfica mais antigos do mundo, o CNC – Centro Nacional do Cinema e da Imagem Animada, criado em 1946. O órgão administra os recursos para o audiovisual, que vêm em grande parte de uma taxa de 10,46% cobrada para cada ingresso vendido, e que serve para financiar a produção.
Espanha
Em 2016, a Espanha aprovou uma nova lei para fomentar o cinema, que estava passando por uma crise financeira. Um fundo mantido pelo governo passou a financiar a produção de filmes, ao invés de amortizar os gastos após o lançamento, como era antes. Em 2018, os recursos destinados ao audiovisual somaram mais de 88 milhões de euros.
Índia
A produção cinematográfica mais prolífica do mundo está em Bollywood, como é chamada a indústria do cinema no país. São mais de mil filmes lançados ao ano, que levam milhões de pessoas às salas de exibição. Não há incentivo governamental, visto que a indústria se tornou autossustentável há décadas, com a participação de empresas e bancos.
China
Até no cinema os chineses estão fazendo frente aos americanos. A previsão dos especialistas é que o país termine 2019 com o mercado cinematográfico mais rentável do mundo. Cerca de 75% dessa bilheteria vem de produções locais. O investimento nas produções é privado, mas o governo controla o conteúdo dos filmes e tem apertado a fiscalização sobre as receitas.
Coreia do Sul
Outro país onde a produção local supera os filmes americanos, a Coreia do Sul vem deixando de ser um nicho cult para se firmar no mercado internacional. Além do investimento de grandes empresas de tecnologia, o governo financia a produção, distribuição e exibição de filmes, e concede incentivos a empresas estrangeiras para realizar coproduções locais.
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