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A suspeita de que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva tenha agido para liberar um empréstimo para a Argentina em um banco de desenvolvimento internacional é só o mais recente indício de que o governo brasileiro tenta influenciar as eleições no país vizinho. O governo Lula vem fazendo investidas sucessivas para ajudar a esquerda argentina, como aproximar o país dos Brics (bloco formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), financiar importações e tentar construir um gasoduto.
Segundo analistas, tudo isso para tentar impedir a vitória do libertário Javier Milei, candidato de direita e favorito para ganhar as eleições de 22 de outubro na Argentina. Embora não haja provas das intenções de Lula, muitas de suas ações teriam potencial para ajudar o presidente peronista Alberto Fernándes e seu candidato Sérgio Massa, que tenta vencer Milei.
A ação mais recente foi apontada pelo jornal Estado de S.Paulo nesta semana. Lula teria pressionado a ministra do Planejamento, Simone Tebet, a aprovar um empréstimo à Argentina através do Banco de Desenvolvimento da América Latina e Caribe (CAF). Com o dinheiro recebido do banco, o país pagou parte da dívida que tem com o Fundo Monetário Internacional (FMI).
Tebet negou e o governo brasileiro disse que o empréstimo do CAF à Argentina foi para ajudar o país, que está com escassez de reservas financeiras. Mas o deputado federal Gustavo Gayer (PL-GO) protocolou nesta quarta-feira (4) um pedido de investigação no Ministério Público Federal para que seja apurada suspeita de que Lula tenha utilizado dinheiro público brasileiro para financiamento indireto da campanha eleitoral argentina.
Só as investigações vão definir se Lula agiu de caso pensado ou não. Mas o candidato esquerdista Massa usou a notícia do empréstimo em sua campanha eleitoral. Ele afirmou, na época da transação em julho deste ano, que a dívida com o FMI seria paga “sem usar um único dólar”.
Na prática, o CAF repassou US$ 1 bilhão para o FMI e assim quitou parte da dívida argentina com o fundo. Isso possibilitou que o FMI emprestasse mais US$ 7,5 bilhões ao governo argentino, que está em uma grave crise econômica.
“Entendo que, por mais que existam alegações de que não houve ingerência política no processo, o fato é que Alberto Fernández e Lula, nestes últimos meses, cercaram-se de visitas e reuniões nas quais, claramente, havia um componente de companheirismo", disse o doutor em filosofia pela PUCRS e mestre em Relações Internacionais pela UFRGS Cezar Roedel.
Lula tentou incluir Argentina no Banco dos Brics
Quando Lula assumiu seu terceiro mandato presidencial neste ano, a Argentina foi o primeiro destino internacional do petista. Logo após as primeiras conversas presidenciais com Fernández, Lula anunciou que tentaria dar ao país acesso a recursos do Novo Banco de Desenvolvimento (NDB – que também é chamado de Banco dos Brics). Mas nem mesmo com a ex-presidente Dilma Rousseff à frente da instituição financeira, Lula conseguiu fazer com que o país tivesse acesso aos recursos do NDB.
O petista ainda tentou intermediar uma possível mudança no estatuto da organização para que o crédito à Argentina tivesse o destino que Fernández "bem entendesse". Isso porque a legislação do NDB prevê que o valor seja destinado a obras de infraestrutura no em países-membros, o que não é o caso da Argentina.
Sem acesso ao NDB, Lula não desistiu da tentativa de ajudar o país de Fernández. Em agosto, quando os Brics anunciaram a expansão do bloco, o nome indicado por Lula para entrar no grupo foi o do vizinho sul-americano. Além da Argentina, outras cinco nações foram convidadas para aderir ao grupo no próximo ano. O processo está em andamento.
Itamaraty tentou financiar gasoduto argentino pelo BNDES
Em recentes negociações entre as chancelarias do Brasil e da Argentina, os países discutiram a possibilidade de o Brasil financiar, através do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), as obras de conclusão do Gasoduto Néstor Kirchner. A instalação está localizada na região de Vaca Muerta, uma formação geológica localizada no norte da Patagônia, na Argentina, e promete ligar a reserva de gás natural ao Brasil em dois anos.
Essa possibilidade, contudo, não é muito bem-vista por economistas devido ao passado de calotes que o Brasil sofreu através do mesmo método para ajudar outros países, além escândalos de corrupção envolvendo construtoras brasileiras. A Argentina também tem um histórico de calores internacionais.
Já especialistas em energia dizem que a construção do gasoduto tem alto valor estratégico, pois o principal gasoduto internacional do Brasil hoje vai parar de operar em breve. Isso porque as reservas da Bolívia estão escasseando.
O Brasil já fez financiamentos similares para a Venezuela durante os primeiros mandatos de Lula e de Dilma Rousseff.
À época, Brasil financiou, através de empréstimos com o BNDES, algumas obras de infraestrutura em solo venezuelano, como a linha 5 do metrô de Caracas; linha 2 do metrô de Los Teques e Siderúrgica Nacional. Em tese, as obras são realizadas por empresas brasileiras e o dinheiro é emprestado por meio delas. O país que contrata a construção, no entanto, fica responsável por devolver o valor emprestado.
Em caso de inadimplência, o BNDES aciona o Fundo de Garantia à Exportação (FGE) para receber o valor devido pelo país estrangeiro. A União assume a dívida e o Brasil é quem deve passar a cobrar o país devedor. Atualmente a dívida da Venezuela com o Brasil chega a quase US$ 3 bilhões e não há perspectiva de quando o país vai quitá-la.
Lula e Haddad disponibilizaram dinheiro para Argentina comprar comida e autopeças
Durante uma visita de Massa à Brasília, o candidato à presidência e ministro argentino fechou um acordo milionário com Lula e o ministro da Fazenda do Brasil, Fernando Haddad.
Haddad anunciou que financiaria US$ 600 milhões à Argentina através de exportações brasileiras. A operação vai contar com uma cooperação do Programa de Financiamento às Exportações (Proex), do Banco do Brasil, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e o Banco de Desenvolvimento da América Latina e Caribe (CAF).
Na prática, os exportadores brasileiros de alimentos e autopeças vão vender para a Argentina, mas serão pagos pelo Banco do Brasil e esse, por sua vez, será segurado pelo CAF. Ou seja, com a manobra o Brasil passa a ser o credor da dívida, preservando as empresas brasileiras. Mas a promessa também melhora a imagem do candidato da esquerda no ano da eleição argentina.
Foro de São Paulo tenta dar fôlego ao peronismo na Argentina
Os problemas econômicos da Argentina não são recentes, mas se tornaram ainda mais profundos durante o mandato de Fernández. Com as reservas em dólar extremamente baixas, o país tem enfrentado problemas para pagar dívidas externas e conseguir financiamentos de organismos internacionais.
Além da amizade entre Lula e Fernandes, a co-dependência econômica Brasil-Argentina é uma das justificativas de Lula para tentar ajudar o país vizinho. Em declarações, o brasileiro chegou a dizer que pretendia "fazer de tudo" para apoiar a Argentina. Mas analistas dizem que esses esforços também têm o intuito de criar uma boa imagem para Massa durante sua campanha eleitoral.
“O jogo do Foro de São Paulo sempre foi indireto e muitas vezes sutil. Desde o episódio do Banco do Brics a coisa já estava escancarada: dar fôlego ao companheiro Fernández e à campanha de Massa", disse Roedel.
O Foro de São Paulo foi fundado pelo ditador cubano Fidel Castro (1926-2016) em parceria com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva na década de 1990, logo após o colapso da União Soviética. O objetivo oficial da organização é integrar povos da América Latina e do Caribe, mas na prática funciona como uma confraria de governantes, políticos e organizações ativistas em nome de um projeto político de esquerda para o subcontinente.
Influência do Brasil sobre o empréstimo do CAF deve ser investigada
As investigações sobre o alegado lobby de Lula para viabilizar o empréstimo do CAF à Argentina ainda nem começaram, mas já dividem analistas. Isso porque a ação foi viabilizada por 19 votos contra dois e o Brasil só tinha direito a um voto. A reportagem do jornal Estado de S.Paulo diz que Lula teria exercido influência sobre outros países.
"Creio que a tentativa supere o Lula como ator isolado. Ela potencialmente envolve mais parceiros do Foro de São Paulo, que são os maiores acionistas do banco”, avalia Roedel.
Já Rogério Pereira de Campos, doutor em Ciências Sociais e pesquisador da Fundação Araporã, defende que a influência do Brasil sobre o CAF é “pequena”.
“Politicamente falando, a influência do Brasil ali dentro é muito pequena. Quem tem maior peso ali são os países andinos: Colômbia, Peru e Equador, por exemplo. Esses países, inclusive, têm voto com peso dois e o Brasil com peso um”, afirmou
Mas Campos disse que declarações do presidente Lula apoiando o governo peronista podem causar um grande mal-estar entre os dois países e, por isso, elas devem ser evitadas a todo custo. “Ele não pode fazer declarações de apoio abertamente, porque isso interfere diretamente, sobretudo nesse período da reta final das eleições na Argentina. Isso pode causar um mal-estar enorme com a vitória de Milei”, explica.
“É necessário monitorar como esses essas ações influenciam o comportamento dos eleitores argentinos. Segmentos do peronismo manifestam certo apreço por Lula, mas Javier Milei pode capitalizar notícias como essa para mobilizar ainda mais a parcela do eleitorado insatisfeita com a crise econômica e com a atual casta política peronista”, afirmou o analista político da BMJ Consultores Associados, Nicholas Borges.