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Fuga de Mossoró

Fuga de presos “que custou muito barato” levanta dúvidas sobre segurança em presídios federais

Presídio Federal de Mossoró de onde fugiram dois detentos (Foto: Depen / Divulgação)

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A fuga de dois detentos da Penitenciária Federal de Mossoró, no Rio Grande do Norte "que custou muito barato" para os criminosos, nas palavras do ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, está sendo avaliada por analistas e políticos como o evento mais grave ocorrido nos presídios de segurança máxima do país e levantando dúvidas sobre a segurança dessas instalações.

O sistema de segurança máxima nunca havia registrado qualquer fuga, rebelião ou entrada de materiais ilícitos desde sua inauguração em 2006. Tratam-se de cinco penitenciárias federais criadas para isolar os maiores líderes de facções criminosas de seus subordinados e assim tentar desarticular essas organizações. Elas ficam em Catanduvas (PR), Campo Grande (MS), Porto Velho (RO), Mossoró (RN) e no Distrito Federal.

Mas os detentos Deibson Cabral do Nascimento e Rogério da Silva não tiveram muita dificuldade para escapar de uma dessas penitenciárias em Mossoró (RN) na última quarta-feira. Segundo o ministro Lewandowski, as câmeras de segurança da unidade não funcionavam adequadamente e luzes estavam apagadas.

Os presos tiveram acesso a ferramentas usadas em uma obra de reforma do presídio e as usaram para romper luminárias e fazer um buraco na cela e escapar para um túnel de serviço. Depois, ultrapassaram um tapume de metal e usaram um alicate para cortar cercas e fugir para a mata. Os agentes penitenciários não perceberam a movimentação entre outros fatores porque, nas palavras de Lewandowski, era Carnaval, de terça-feira (13) para quarta-feira (14) "onde, eventualmente, as pessoas estavam mais relaxadas, como costuma ocorrer".

O ministro disse em entrevista, nesta quinta-feira (15), que a principal linha de investigação sobre a fuga é que não tenha sido planejada e apoiada de fora do presídio por uma organização criminosa. "Foi uma fuga, diria eu, pelo menos em um primeiro momento, que custou muito barato, que foi efetuada com aquilo que foi encontrado no local e que estava infelizmente, e vamos apurar responsabilidades, próximo daqueles que queriam efetuar essa fuga", afirmou.

Segundo o jurista e especialista em segurança pública Fabrício Rebelo, do Centro de Pesquisa em Direito e Segurança (Cepedes), planejada ou não a fuga representa um abalo gravíssimo no sistema prisional federal, quebrando a concepção de que seria imune a evasões.

Os fugitivos são vinculados à facção criminosa Comando Vermelho, uma das maiores do país. Ainda que não sejam lideranças da facção, os criminosos são considerados perigosos, tanto que estavam em Regime Disciplinar Diferenciado (RDD), cujas regras são mais rígidas do que no regime fechado regular, com medidas que garantem maior isolamento.

O RDD é praticamente a única ferramenta temida pelos líderes de facção da atualidade. Diferente do que ocorre em presídios estaduais de segurança máxima, esse regime em presídios federais impede contato físico de presos com advogados e visitas e a passagem de ordens e orientações para o resto da organização acaba sendo muito mais difícil. Os presos também não podem se comunicar com outros detentos e não têm regalias, como acesso a entorpecentes e celulares. No início do governo do ex-presidente Jair Bolsonaro houve um esforço de isolamento das lideranças de facção nesse tipo de regime de prisão.

Lewandowski minimizou mas não descartou em sua entrevista a possibilidade de que os fugitivos tenham recebido ajuda de agentes penitenciários cooptados pelo crime organizado.

Se isso se confirmar, pode-se estar diante de uma falha estrutural dos presídios federais. Segundo Rebelo, é bastante improvável que os detentos tenham escapado sem auxílio interno. Ou seja, as facções criminosas teriam adquirido a capacidade de cooptar agentes penitenciários que, em tese, podem possibilitar comunicação entre presos e facções, contrabandear itens ilícitos para as celas e até facilitar fugas desligando câmeras e iluminação.

“Trata-se, portanto, do ponto de vista da segurança pública, de mais um campo em que o Estado parece ter falhado, não conseguindo assegurar que sequer os já reconhecidos criminosos mais perigosos, submetidos a um regime prisional diferenciado, permaneçam efetivamente isolados da sociedade”.

Em entrevista coletiva na manhã desta quinta-feira (15), o secretário nacional de Políticas Penais, André de Albuquerque Garcia, afirmou que ainda não foi apurado se a fuga ocorreu com auxílio de algum agente interno ou externo à prisão, mas que nenhuma hipótese está sendo descartada. Tanto que a fuga está sendo tratada como uma crise no sistema prisional e uma das primeiras ações tomadas pelo ministro Lewandowski ainda na quarta-feira (14) foi a intervenção administrativa na unidade e o afastamento dos membros da direção. O comando da unidade de Mossoró está agora a cargo do policial penal Carlos Luis Vieira Pires, que foi indicado por Lewandowski.

Em entrevista à CNN Brasil, na noite da quarta-feira, o ex-ministro da Segurança Pública, Raul Jungmann, disse ser muito difícil a fuga ter ocorrido sem ajuda externa. Ele afirmou que, por já ter estado em penitenciárias como a de Mossoró e ter presenciado o grau de monitoramento e de tecnologia empregada para manter a segurança, não acredita ser possível que “alguém possa fugir sem contar com apoio externo”.

Lewandowski disse que duas investigações estão sendo realizadas. Uma delas é administrativa e pode responsabilizar, por exemplo, servidores que tenham sido lenientes, possibilitando que detentos pudessem furtar ferramentas da obra que ocorria no presídio ou sejam responsáveis pelas falhas de construção da unidade. A outra investigação está sendo realizada pela Polícia Federal para apurar responsabilidades criminais.

Mais do que somente uma estrutura física de segurança

O especialista em segurança pública Leonardo Barreto afirma que a fuga abala a credibilidade do sistema e de todo o processo de proteção que envolve os estabelecimentos prisionais de segurança máxima. Ele esclarece que as penitenciárias de segurança máxima brasileiras são inspiradas no conceito americano de SuperMax e também são adotadas em outros países, como Austrália e Reino Unido.

Para além da estrutura física de celas, grades e muros de contenção, Leonardo explica que há todo um outro investimento que precisa ser feito de forma constante para garantir a segurança desses presídios e que envolve capacitação, treinamento e atualização tecnológica. Esses procedimentos devem caminhar par a par com as alterações no perfil do crime que impactam o sistema. Em tese, os agentes têm que estar atualizados sobre as táticas e forma de operar dos criminosos, para que seja possível se antecipar.

Segundo Barreto há um atraso em relação a esse trabalho de pesquisa e treinamento de longo prazo. Ele cita, por exemplo, uma iniciativa recente para o treinamento de policiais penais de todo o país que está sendo feito no Distrito Federal. Apesar do grande número de agentes que está participando dessa capacitação, iniciada em janeiro, é a primeira vez que se busca implementar um procedimento operacional padrão para nivelar e padronizar as ações desses agentes.

Outro ponto muito importante que diferencia os presídios federais dos estaduais de segurança máxima é o número reduzido de detentos que as prisões federais abrigam comparativamente. A Penitenciária de Mossoró tem, por exemplo, capacidade para abrigar cerca de 200 presos e não sofre com superlotação. Já o presídio carioca de Bangu 3, que mantém presas lideranças do Comando Vermelho, foi projetado para quase 900 presos e por vezes opera acima da capacidade. Uma quantidade menor de presos, em tese, seria de mais fácil controle.

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O ministro Lewandowski anunciou medidas para reduzir vulnerabilidades dos cinco presídios de segurança máxima federais. A primeira delas será um processo de modernização das câmeras de segurança usadas no presídio. A medida deve ser acompanhada por ações de aperfeiçoamento no controle de acesso às unidades prisionais. De acordo com ele, o acesso passará a ser feito com o recurso de reconhecimento facial por computador.

Lewandowski também disse que o sistema de alarmes e sensores de presença do lado de fora dos presídios serão aperfeiçoados e muralhas serão construídas. Atualmente só a penitenciária do Distrito Federal tem muralha, as demais têm um sistema de cercas duplas - que em Mossoró foram cortadas com um alicate pelos fugitivos.

O ministro disse que as melhorias serão feitas no prazo mais curto possível, por meio de processo de licitação (que demora no mínimo de três a quatro meses quando são eficientes). Os recursos virão do Fundo Penitenciário Nacional. Lewandowski prometeu ainda contratar mais 80 agentes que já foram aprovados em concurso público e enviar boa parte deles para Mossoró.

Segundo balanço divulgado pelo Ministério da Justiça, em 2023, foram investidos R$ 18 bilhões em segurança pública no país. De acordo com o relatório de execução orçamentária do Fundo Penitenciário Nacional, no 1º semestre de 2023, haviam sido empenhados R$ 143 milhões, dos quais R$ 72 milhões se destinaram ao aprimoramento do Sistema Penitenciário Nacional e incentivo ao desenvolvimento da inteligência penitenciária.

No detalhamento das despesas, os gastos com a manutenção do Penitenciária de Mossoró foram de R$ 7 milhões, ou 5% do valor total empenhado até 30 de junho. De acordo com dados do Portal da Transparência, em todo o ano de 2023, as despesas da penitenciária somaram R$ 13,4 milhões.

Deve haver planejamento a longo prazo, segundo analista

Mas o uso de recursos torna-se inócuo se não houver um planejamento de longo prazo norteado para uma política nacional que vise realmente acabar com a criminalidade. O sociólogo Antônio Flávio Testa afirma que, até o momento, nenhum governo se dedicou a fazer uma reforma do sistema penitenciário, de Justiça ou criminal e, ao que tudo indica, a atual gestão também não fará.

Ele destaca a discriminação e a falta de valorização dos agentes penitenciários, que sofrem constantes ameaças. “Tanto esses agentes, como suas famílias e todas as vítimas de crime deveriam ser prioridade na definição dos princípios fundamentais de uma política nacional de segurança pública”. No entanto, não é isso que acontece.

Segundo Rebelo, a fuga em Mossoró é mais um episódio que demonstra a articulação e a força das grandes organizações criminosas, agora com tentáculos no próprio sistema federal. “Infelizmente, o atual governo retoma uma política de vitimização do criminoso, com pautas que, sob o pretexto de direitos humanos, o afasta ainda mais da efetiva punição, o que é uma ótima receita para que as organizações criminosas se fortaleçam ainda mais”, diz.

Cresce pressão sobre ministério e governo

A fuga de Mossoró ocorre em um momento de insegurança nacional. Em outubro do ano passado, o crime e o tráfico de drogas figuraram como os maiores problemas do país para 62,7% da população, segundo pesquisa da AtlasIntel - o levantamento ouviu 1.200 pessoas entre os dias 5 e 6 de outubro. É a primeira vez que a segurança pública ocupou o topo do ranking entre as preocupações do brasileiro.

Somados à sensação geral de insegurança, episódios como o da fuga de Mossoró tendem a agravar esse cenário e a pressão sobre o Ministério da Justiça e Segurança Pública. Testa avalia que a pressão crescerá, com políticos cobrando ações do atual ministro. Até o momento, a atuação de Lewandowski, que afastou a diretoria do presídio de Mossoró, tem sido considerada rápida e pragmática, mas os resultados que alcançarão ainda são incertos.

Em sua primeira entrevista coletiva à frente de uma crise na pasta, Lewandowski tentou minimizar a importância dos fugitivos e até culpou o Carnaval pela fuga. Ele é considerado progressista e grande defensor da política de desencarceramento e da visão de que os presos são vítimas da sociedade.

Na entrevista, ele chegou soltar uma frase polêmica, dizendo que o "Estado não tem condições de competir com essas estruturas [do crime organizado], que são multinacionais". Mas em seguida se corrigiu dizendo: "Temos todas as condições de enfrentar o crime organizado e vamos enfrentar".

O senador e ex-juiz Sérgio Moro (União Brasil-PR), afirma que por não ter precedentes e ser preocupante, a fuga precisa ser esclarecida pelo governo federal, que deve investir mais para que isso nunca mais ocorra. Moro, que foi ministro da Justiça no governo de Jair Bolsonaro, avalia que é preciso revisar todos os protocolos de segurança nas penitenciárias estaduais. De acordo com nota do ministério da Justiça, essa foi uma das providências imediatas adotadas por Lewandowski.

Esclarecimentos ao Congresso

Moro também informou à Gazeta do Povo que pretende requerer audiência na Comissão de Segurança Pública do Senado, com a finalidade de ouvir os esclarecimentos dos diretores do Depen e do sistema penitenciário federal. Segundo o senador, convém que a sessão seja fechada “para preservar os detalhes de segurança dos presídios federais”. Ele ainda afirmou que irá cobrar do governo as melhorias necessárias no sistema.

Na Câmara, o deputado Rodolfo Nogueira (PL-MS) também afirmou que irá apresentar um requerimento para convocar o ministro Lewandowski, a fim de que preste esclarecimentos sobre a fuga. O pedido de convocação deve ser protocolado na Comissão de Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado, assim que retornarem as atividades das comissões.

Alguns parlamentares manifestaram sua indignação com o ocorrido. O deputado Delegado Palumbo (MDB-SP) disse que não há muito o que esperar do governo em relação à segurança pública. “A grande verdade é que eles não querem enrijecer as leis, não querem tirar benefícios de criminosos, tampouco regalias de presos”. O deputado citou o ministro Silvio de Almeida, dos Direitos Humanos, que declarou que iria percorrer os presídios para verificar as condições dos presos. Segundo Palumbo, o ministro também deveria verificar as condições dos funcionários, sobrecarregados nas escalas, com falta de efetivo e condições de trabalho sem segurança.

“Mas ele, (ministro Silvio) prefere ver as condições dos presos e se esquece das vítimas ou então, no Carnaval, enquanto há fuga de presos, ele vai desfilar ou prestigiar uma escola de samba que coloca a polícia como demônio. Não há muito o que se esperar deste governo no tocante a segurança. O crime está em festa”, afirmou.

Já a deputada Júlia Zanatta (PL-SC) afirmou que Lewandowski precisa explicar mais do que simplesmente as circunstâncias da fuga, mas o que está por trás dessa falha de segurança inédita no país. Ela ainda citou o possível envolvimento dos fugitivos em execuções de policiais e que as facções criminosas, certamente, já devem estar planejando “novas ações diante de um governo tão fraco no combate à criminalidade. Precisamos de garantias que a segurança será reestabelecida nos presídios de segurança máxima”, disse a deputada.

Crises de segurança no governo Lula

Apesar de ser a primeira crise enfrentada por Lewandowski à frente da pasta da Justiça, a fuga dos detentos do presídio de segurança máxima de Mossoró é apenas mais um episódio negativo para a segurança pública do terceiro mandato de Lula. Na avaliação de Testa, a situação tende a se agravar pela inoperância do governo. Ele afirma que a herança recebida por Lewandowski custará muito caro à sua gestão, já que nem ele e nem seu antecessor são do ramo da segurança pública.

Durante 2023, o então ministro Flávio Dino se viu diante de diversos episódios que agravaram a percepção negativa em relação à segurança pública, como a visita da mulher de um traficante do Comando Vermelho para participar de reuniões no Ministério da Justiça. A visita de Dino, sem escolta, à favela da Maré, no Rio, também gerou ampla e negativa repercussão. Para além dos supostos embaraços, crises de violência na Bahia, no Rio Grande do Norte, no Rio de Janeiro e na Baixada Paulista também marcaram sua gestão, bem como a promulgação de uma Operação de Garantia da Lei e da Ordem, envolvendo as Forças Armadas que foi apontada como ineficaz por especialistas da área.

De acordo com Rebelo, este caso acaba sendo uma prova de fogo para o novo ministro da Justiça, que sempre teve uma "visão romantizada do sistema prisional", sendo favorável ao desencarceramento, mas que agora se depara com um verdadeiro choque de realidade. "Resta saber se a crise será conduzida do ponto de vista técnico ou apenas ideológico, o que será fundamental para o futuro do próprio sistema prisional federal brasileiro", afirma o jurista.

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