Após militares cumprirem operações prolongadas no Rio de Janeiro entre 2017 e 2018, membros da cúpula das Forças Armadas querem evitar que tropas sejam usadas em novas missões do tipo GLO: Garantia da Lei e da Ordem. O motivo é simples: impedir que soldados façam papel de polícia em território nacional.
Membros do alto escalão militar ouvidos pela reportagem dizem que o foco durante o governo de Jair Bolsonaro (PSL) deve ser a defesa nacional e a participação em missões de paz ou de ajuda humanitária no exterior, dizem .
Já no governo de Michel Temer (PMDB), autoridades da área da Defesa vinham se mostrando contrárias ao uso de tropas do Exército, da Marinha e da Aeronáutica em missões do tipo GLO (Garantia da Lei e da Ordem) - quando forças militares são enviadas a estados em crise de segurança pública. Eles consideravam o uso excessivo.
Levantamento do Ministério da Defesa mostra que foram realizadas 136 dessas operações entre 1992 e 2019 em todo o Brasil - sendo 23 delas desencadeadas por violência urbana, 25 em greves de policiais e 88 em outras ocasiões, como eleições e grandes eventos.
Entre as operações, a que causou maior tensão no meio militar nos últimos anos foi a operação Furacão, que começou em julho de 2017 no Rio de Janeiro e correu em paralelo à intervenção federal na segurança do estado em 2018 - um ano eleitoral que acabou destacando as Forças Armadas no cenário político.
Tanto a GLO como a intervenção no Rio acabaram em dezembro passado, após a reversão da tendência de alta na criminalidade. Em dez meses de intervenção, os homicídios caíram 7,4% entre março e dezembro do ano passado em relação ao mesmo período do ano anterior, atingindo 4.041 casos. Os roubos de carga, um dos focos da intervenção, caíram 21%, para 7.463 casos.
Redução da criminalidade, aumento das críticas
No período, a polícia também foi reestruturada e voltou a adotar uma postura ativa e a realizar operações. Isso colaborou para aumentar os confrontos com criminosos e elevou em 35% o número de mortes de suspeitos por agentes de segurança (1.275 casos), atraindo críticas de ativistas de defesa dos direitos humanos.
Os confrontos com facções criminosas também fizeram militares serem alvo de processos judiciais e provocaram as mortes de cinco integrantes do Exército, algo inédito nesse tipo de missão até então.
Embora oficialmente as Forças Armadas não façam distinção entre as missões que recebem, esse cenário fez os militares se tornarem ainda mais contrários a ações de GLO, a menos que sejam realizadas mudanças na lei que lhes forneçam mais proteção jurídica - como as discutidas no pacote anticrime do ministro da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro.
Outra mudança desejada por eles maior liberdade de atuação nas ruas, segundo disseram à reportagem dois oficiais ligados ao Alto Comando do Exército que pediram para não ter os nomes revelados.
Segundo um membro do alto escalão do Ministério da Defesa, o governo Bolsonaro é favorável a alterações nas leis, mas por ora não pretende autorizar novas operações de GLO.
Mudanças nas leis
Ex-capitão do Bope (Batalhão de Operações Especiais da Polícia Militar do Rio) e especialista em segurança, o antropólogo Paulo Storani afirma as Forças Armadas têm elevado potencial para colaborar com a segurança dos estados devido à sua capacidade de mobilizar rapidamente grandes efetivos de tropas.
Por outro lado, podem ser submetidas a um desgaste de imagem caso se envolvam em tiroteios que resultem em mortes de inocentes ou de seus próprios integrantes, aponta o especialista. Ou ainda terem membros corrompidos por agentes do crime - problemas já enfrentados pelas polícias.
Segundo Storani, as ações de GLO poderiam ser mais efetivas com as mudanças na lei que os militares querem. Uma delas seria dar maior liberdade de ação para os militares e policiais em ambientes críticos, como favelas dominadas por facções criminosas.
Ele citou como exemplo a dificuldade que os agentes de segurança têm para obter da Justiça mandados de busca ou prisão para toda uma área dentro de uma favela. Atualmente, magistrados só dão autorização para que os agentes entrem em endereços específicos. Mas, segundo Storani, quando uma operação começa, os criminosos se refugiam em casas de vizinhos inocentes e assim escapam da prisão.
Membros de organizações de direitos humanos e parte dos juristas argumentam que a concessão dos chamados “mandados coletivos” ou "por área limitada” poderia resultar em abusos de autoridade contra inocentes. Para Storani, representantes do judiciário e defensores de direitos humanos deveriam participar das operações para fiscalizar.
“Se a mudança na lei acontecesse, o Exército teria uma certa tranquilidade. Não aconteceria de serem chamados para uma GLO, trabalharem e ainda saírem criticados por não resolverem o problema. Se isso não for feito, nós vamos continuar a promovendo um grande esforço sem os resultados necessários", disse Storani.
Missões de garantia da lei e da ordem descartadas
A única missão de garantia da lei e da ordem atualmente em vigor é a Operação Acolhida, de ajuda humanitária a venezuelanos que entram no país pela fronteira de Roraima. E a única GLO aprovada por Bolsonaro foi para ajudar a conter uma crise em presídios do mesmo estado entre fevereiro e março.
Também neste ano foram analisadas e descartadas as possibilidades de envolvimento de tropas na segurança do Rio Grande do Norte, devido a uma greve de policiais, e na segurança da Copa América. Chegou-se a cogitar a continuidade da operação no Rio em 2019, mas os militares deram parecer contrário e a opinião foi acatada pela Presidência.
Nos bastidores, eles afirmavam acreditar que, com sua permanência indefinida no Rio, as polícias locais nunca reassumiriam a responsabilidade sobre a segurança.
A transição do comando da segurança pública no estado também causou atritos entre militares envolvidos na intervenção de 2018 e o governador Wilson Witzel (PSC), que assumiu em 2019. Ao extinguir a secretaria da Segurança Pública, o governador alterou medidas tomadas pelos interventores.
Os pontos mais criticados nos bastidores pelos militares foram a desestruturação de um órgão corregedor das polícias -que funcionava de forma independente das corporações -, a derrubada de uma medida que protegia policiais corregedores, e mudanças que supostamente teriam diminuído a integração de inteligência entre as polícias.
O governador Witzel afirmou em dezembro do ano passado que a extinção da pasta aproximaria as polícias civil e militar e ajudaria na prisão dos líderes do tráfico de drogas. A reportagem questionou a assessoria do governo durante cinco dias sobre os resultados das mudanças, mas não obteve resposta.
Operação de paz da ONU na África
Outra consequência da intervenção federal e da GLO no Rio foi o adiamento dos planos das Forças Armadas de enviar um batalhão de forças de paz à missão da ONU à República Centro-Africana no início de 2018, segundo fontes ligadas ao Alto Comando do Exército.
A ONU havia requisitado tropas ao Brasil para conter ondas de violência étnica e religiosa. Contudo, os militares não abandonaram o projeto e esperam que recursos para missões de paz sejam liberados após aprovação no Congresso de medidas de austeridade, como a reforma da Previdência.
Outras possibilidades cogitadas são a participação em eventuais missões humanitárias na América Central e o envio de aeronaves da Força Aérea para missões da ONU.
Garantia da lei e da ordem nas escolas militares
O foco atual das Forças Armadas em defesa nacional contra eventuais ameaças externas e missões de paz não elimina, porém, a possibilidade de novas missões de GLO no Brasil. Por isso, os militares estão treinando.
A atuação na segurança interna passou a ser mais estudada pelos militares, em suas escolas de formação, como a Aman (Academia Militar das Agulhas Negras), em paralelo ao aprendizado sobre ações de defesa externa desde a década de 1990, por conta da conferência internacional Eco 92. Em anos anteriores, no plano interno, o foco de estudos era o combate a movimentos guerrilheiros.
Durante o período de Copa do Mundo e Olimpíada nos anos 2010, a preparação dos militares militar se focou mais no combate ao terrorismo, mas voltou à GLO depois de 2016 com o fim dos jogos.
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