A proposta de emenda à Constituição (PEC) dos fundos públicos, idealizada pelo governo e apresentada por um senador da base, pode extinguir 243 fundos infraconstitucionais (isto é, que não estão incluídos na Constituição Federal). É o que indica levantamento da Secretária de Orçamento Federal (SOF) do Ministério da Economia obtido com exclusividade pela Gazeta do Povo via Lei de Acesso à Informação (LAI).
LISTA COMPLETA: Os 243 fundos infraconstitucionais – e para que serve cada um deles
A lista à qual a Gazeta teve acesso inclui o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), que ampara o trabalhador desempregado. O fundo foi criado pela Lei nº 5.107, de 13 de setembro de 1966, em contrapartida à perda da estabilidade ao empregado celetista. Atualmente, a lei nº 8.036, de 11 de maio de 1990, é quem traz as regras de funcionamento do fundo.
O FGTS, porém, está sim previsto na Constituição Federal, no artigo 7º, como um dos “direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social”. Ou seja, ele não pode ser abarcado pela PEC, já que ela mesma propõe que “não se aplica o disposto no caput para os fundos públicos previstos nas Constituições e Leis Orgânicas de cada ente federativo, inclusive no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias”.
Depois de a Gazeta do Povo trazer à tona a lista, no início da tarde desta sexta-feira, o ministério da Economia informou que "houve um equívoco na elaboração da listagem encaminhada no dia 13 de dezembro. Isto porque o FGTS está previsto no art. 7º, inciso III da Constituição., além de ser um fundo de natureza privada". E pediu "desculpas pela informações passada equivocadamente" via Lei de Acesso à Informação.
A Gazeta requisitou, via LAI, o seguinte: “Gostaria de ter acesso ao nome de cada um dos cerca de 248 fundos infraconstitucionais mapeados pelo governo e que podem ser atingidos pela PEC 187/2019, em tramitação no Senado Federal”.
A SOF respondeu com a lista, incluindo o FGTS. A secretaria alertou apenas que não são 248 fundos, como divulgado anteriormente, e sim 243, pois a “quantidade total de fundos encontra-se em constante atualização”. Não fez, na resposta à reportagem, qualquer menção ao FGTS. "Em atenção à sua solicitação, informamos que a quantidade total de fundos encontra-se em constante atualização, de forma que as informações disponibilizadas não apresentarão o número exato recentemente divulgado. Diante disso, segue tabela conforme solicitada com listagem de 243 fundos infraconstitucionais, a partir de levantamento feito por esta Secretaria de Orçamento Federal", informou a SOF.
Os esclarecimentos só foram prestados via assessoria de imprensa, após dez e-mails trocados e muita insistência da Gazeta. Primeiro, a assessoria informou que o FGTS não era abarcado porque é de natureza privada. Depois, que a lista enviada continha todos os fundos (o que é inverdade). Só depois veio a afirmação que o governo "errou" ao incluir o FGTS em uma lista de fundos que podem ser extintos.
A reportagem pediu, então, a lista correta, com todos os fundos públicos infraconstitucionais que podem ser afetados pela PEC 187.2019. Ainda não obteve resposta.
O número de 248 fundos infraconstitucionais – depois corrigido para 243 – já havia sido mencionado pelo governo. Em notícia publicada em 5 de novembro em seu site, o Ministério da Economia afirma que os recursos depositados nos fundos que podem ser extintos "deverão ser liberados para ajudar a melhorar a gestão da dívida pública federal, diminuindo a necessidade de amortização".
DOCUMENTO: Confira a lista enviada pela SOF com os 243 fundos que considera infraconstitucionais
Ministério nega extinção do FGTS
A Gazeta do Povo entrou em contato com o Ministério da Economia para esclarecimentos. Em resposta, a assessoria de imprensa da Pasta afirmou, em um primeiro momento, nesta sexta-feira (13) que "a PEC 187/2019 trata de fundos públicos, o FGTS é um fundo de natureza privada e portanto não é atingido pela PEC 187/2019" – o que indica que a inclusão do Fundo na lista pode ter sido um erro da SOF.
A Caixa Econômica Federal costuma descrever o FGTS como "um fundo financeiro de natureza privada sob gestão pública". Em um relatório anual, afirma que, embora o Fundo "possua patrimônio, não tem personalidade jurídica própria, utilizando o mesmo número do Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica – CNPJ da CAIXA, seu Agente Operador".
Questionada novamente, a assessoria de imprensa do ministério respondeu que a "A SOF encaminhou uma listagem de todos os fundos existentes, não os que poderão ser extintos, inclusive nesta listagem constam os fundos constitucionais, que estão excluídos da PEC em questão". A Gazeta do Povo demonstrou, porém, que a lsita enviada não continha todos os fundos mapeados, pois eles são, segundo dados do próprio ministério, 269.
Só depois disso que o ministério respondeu que houve um "equívoco" ao incluir o FGTS na lista enviada à reportagem.
A Gazeta do Povo busca há dois meses a lista dos fundos que o governo planeja extinguir. O ministro da Economia, Paulo Guedes, fez menção a esse mapeamento ainda em setembro, em audiência pública na Comissão Mista de Orçamento (CMO) do Congresso.
A primeira solicitação foi feita pela Gazeta em 7 de outubro, diretamente à assessoria de imprensa do Ministério da Economia, que se recusou a enviar a relação e informou que a Pasta não estava se manifestando sobre o assunto.
Após a negativa, o jornal fez um pedido via LAI. Em resposta, o governo enumerou um total de 269 fundos, sem discriminar quais eram constitucionais e quais eram infraconstitucionais. Foi feita, então, uma nova solicitação, para que fossem relacionados somente os fundos que não estão na Constituição e podem ser afetados pela PEC 187/2019 – e é esta a relação publicada nesta reportagem.
Relator no Senado exclui FAT e outros fundos da lista de ameaçados
Além do FGTS, a lista enviada pelo governo à Gazeta do Povo inclui outros 242 fundos que a SOF considera infraconstitucionais. São alguns exemplos: o Fundo Garantidor do Fundo de Financiamento Estudantil, o Fundo Nacional Antidrogas, o Fundo da Amazônia e o Fundo Garantidor de Infraestrutura.
A lista conta também com o Fundo de Amparo ao Trabalhador, o FAT, mas o relator da PEC no Senado, o senador Otto Alencar (PSB/BA), apresentou parecer modificando o texto do governo para não abarcar o FAT e, assim, preservar esse fundo.
Segundo Alencar, o FAT foi criado pela Lei nº 7.998, de 11 de janeiro de 1990, mas operacionaliza vinculações de receitas e despesas determinadas pelo art. 239 da Constituição Federal. "Para evitar dúvidas em relação a preservação dos referidos fundos, modificaremos a redação do § 1º do art. 3º da PEC para explicitar que não serão extintos os fundos criados para operacionalizar vinculações de receitas determinadas no texto constitucional", diz o relatório do senador.
Alencar também acatou uma emenda em seu relatório para que a PEC não atinja a preservação dos fundos públicos destinados à prestação de garantias e avais. Essa emenda foi apresentada pelo Senador José Serra (PSDB-SP).
Em sua justificativa, Serra não explicita se ela atinge ou não o FGTS, apenas fala que a emenda busca "resguardar fundos para prestação garantias e avais, com vistas a conferir segurança jurídica aos negócios já firmados entre o setor público e particulares, assim como destacar a importância destes fundos para o desenvolvimento econômico do país".
Otto também acatou outra emenda para preservar fundos previstos no art. 76-A, do ADCT, instituídos pelo Poder Judiciário, pelos Tribunais de Contas, pelo Ministério Público, pelas Defensorias Públicas e pelas Procuradorias-Gerais dos Estados e do Distrito Federal.
Vale ressaltar que o parecer aguarda votação na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado. Ele só vai substituir o texto escrito pelo governo se aprovado pelo colegiado. Depois, a PEC precisa passar ainda pelo Plenário da Casa e ser aprovada pela Câmara para entrar em vigor.
O que diz a PEC 187/2019
A PEC estabelece que os fundos infraconstitucionais serão extintos, caso não sejam ratificados pelo Congresso até o fim do segundo ano seguinte à aprovação da emenda. Ou seja, se aprovada a PEC, o Congresso terá de aprovar uma lei complementar específica para cada fundo infraconstitucional que deseja manter. Essa lei poderá ser apresentada tanto pelo Poder Executivo quanto por um parlamentar. Caso contrário, passado o período, o fundo será extinto.
“Os fundos públicos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios existentes na data da promulgação desta Emenda Constitucional serão extintos, se não forem ratificados pelos respectivos Poderes Legislativos, por meio de Lei Complementar específica para cada um dos fundos públicos, até o final do segundo exercício financeiro subsequente à data da promulgação desta Emenda Constitucional”, diz o artigo terceiro da PEC.
A proposta ressalva apenas que não vai atingir os “fundos públicos previstos nas Constituições e Leis Orgânicas de cada ente federativo, inclusive no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias”. Com isso, os fundos constitucionais, ou seja, aqueles previstos na Constituição, serão preservados.
O governo cita como exemplo de fundos que não serão atingidos os Fundos de Participação dos Estados e Municípios, o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (FUNDEB) e o Fundo Nacional de Saúde, entre outros.
O objetivo do governo é flexibilizar o Orçamento, já que o dinheiro de um fundo só pode ser aplicado para aquela finalidade específica. O governo também quer usar o estoque de dinheiro parado em alguns fundos para amortizar a dívida federal.
Segundo dados da SOF do Ministério da Economia enviados à Gazeta do Povo, há R$ 218,6 bilhões parados nos fundos infraconstitucionais. Se esses fundos vierem a ser extintos, o dinheiro será usado pelo governo para amortizar a dívida federal.
Contudo, o valor incluiu os R$ 46,5 bilhões do FAT, que, se aprovado o relator do senador Otto Alencar, não será extinto, além de outros fundos que o relator propôs também não serem afetados.
Confira o documento em que a Secretaria de Orçamento Federal (SOF), do Ministério da Economia, faz a relação de 243 fundos infraconstitucionais – que estão na mira da PEC 187/2019, incluindo equivocadamente o FGTS:
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