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Um grupo de juristas indígenas foi criado pelo Ministério dos Povos Indígenas (MPI) para propor alterações no Estatuto do Índio. Apesar das portarias de criação apontarem que o grupo foi nomeado apenas para analisar a legislação sob a ótica desses especialistas, a pasta aponta, em seu site oficial, que o grupo vai “propor um novo marco legal de relação com os povos originários”.
O grupo é contrário ao marco temporal - que estabelece que os indígenas só podem reivindicar terras que ocupavam em 1988 e não têm direito a áreas habitadas depois disso. Eles também querem emplacar a tese de que indígenas que já moram em áreas urbanas e estão integrados à sociedade civil devem ter os mesmos direitos de indígenas não integrados, que moram nas florestas.
A iniciativa gerou controvérsias. Apesar do consenso sobre a necessidade de aprimorar a legislação, formulada em 1973, indígenas e parlamentares temem que o viés ideológico dos componentes do grupo possa interferir nas propostas apresentadas. Os sete juristas indígenas nomeados, em portaria assinada pela ministra dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara, são ligados diretamente à Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) ou a organizações regionais que são integrantes dela, como a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab).
Os nomeados são Luiz Eloy Terena, na condição de coordenador; Samara Pataxó, na condição de relatora; Maurício Serpa França Terena; Ademar Fernandes Barbosa Júnior Pankararu; Andressa Carvalho Santos Pataxó; Ivo Aureliano Makuxi e Maria Judite da Silva Guajajara.
A portaria de criação do grupo prevê 180 dias para a conclusão dos trabalhos. Transcorridos mais de 100 dias desde a publicação da portaria, o MPI informou, por meio de sua assessoria, que aconteceram apenas duas reuniões. Nas duas oportunidades os juristas indígenas teriam trabalhado na “estruturação e definição do cronograma de atividades”. Questionado sobre o encaminhamento dado às conclusões e sobre a apresentação de propostas legislativas para alteração do Estatuto, a pasta informou apenas que “as demais informações serão divulgadas na página do Ministério dos Povos Indígenas assim que for concluída a fase de preparação documental”.
Revisão do Estatuto do Índio é necessária, afirmam parlamentar e advogado indígena
Em vigor há quase 50 anos, a Lei nº 6.001, que dispõe sobre o Estatuto do Índio, traz em seu primeiro artigo a intenção de “regular a situação jurídica dos índios ou silvícolas e das comunidades indígenas, com o propósito de preservar a sua cultura e integrá-los, progressiva e harmoniosamente, à comunhão nacional”.
O senador Plínio Valério (PSDB-AM) avalia que a iniciativa é importante, mas também a vê com preocupação. “Medidas para aperfeiçoar o Estatuto do Índio são bem-vindas e salutares, mas o debate deve ser feito no Parlamento. Por legisladores eleitos pela população para representá-los”, destacou o senador amazonense.
O advogado indígena Ubiratan Maia também concorda com a necessidade de revisão do Estatuto do Índio e destaca as mudanças ocorridas ao longo dos anos em que a legislação está em vigor como a principal motivação para as alterações. “Hoje os indígenas precisam de uma legislação que possa ampará-los especialmente na questão da livre iniciativa. Envolvendo, por exemplo, a questão da produção. É preciso dar segurança jurídica para que os indígenas possam produzir soja, milho, trigo, criar animais em larga escala”, disse o advogado.
Neste ponto, Valério reforça o posicionamento de Maia. “É importante lembrar que a Constituição Federal, nos artigos 176 e 231, já estabelece que as comunidades indígenas têm o direito de criar cooperativas para explorar as riquezas de suas terras. O Estatuto do Índio também prevê que esses povos devem usufruir das riquezas naturais e de todas as utilidades de suas terras, mas, infelizmente, são impedidos de exercer esses direitos”, disse o senador.
Advogado indígena afirma que revisão no Estatuto do Índio já está sendo feita
O Ministério dos Povos Indígenas não deixou claro o encaminhamento que será dado ao material formulado pelos juristas indígenas, no entanto, a única forma de alterar uma legislação em vigor é por meio de outra lei, que precisa passar pela aprovação do Congresso Nacional.
Para o advogado Ubiratan Maia, a revisão já está “praticamente feita”. Ele aponta o projeto de lei (PL) sobre o marco temporal, aprovado na Câmara dos Deputados e que agora tramita no Senado, como a revisão que abarca as mudanças necessárias do Estatuto do Índio. O PL do marco temporal altera, dentre outras leis, a que institui o Estatuto do Índio. “O PL tem que ser aprovado para dar segurança jurídica aos proprietários rurais e também aos indígenas que desejam trabalhar e produzir em suas terras, que são de usufruto constitucional indígena. Então, para mim, é essa proposta que deve ser aprovada do Congresso Nacional, porque são eles efetivamente que foram eleitos para serem os representantes do povo”, destacou o indígena.
A iniciativa do Ministério dos Povos Indígenas em revisar a legislação é o principal ponto de preocupação do senador Plínio Valério, que é presidente da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) das Organizações Não Governamentais (ONGs). “É preocupante especialmente no contexto em que o Congresso Nacional discute o Marco Temporal e o Senado Federal avança com a CPI das ONGs. Temos [na CPI das ONGs] exposto a realidade e as práticas questionáveis de algumas organizações que se autointitulam defensoras dos povos indígenas, mas que, na verdade, acabam perpetuando a miséria e a falta de oportunidades para essas comunidades, arrecadando recursos e se enriquecendo em nome deles”, afirmou o senador.
Jurista afirma que magistrados deixam de aplicar regime mais favorável aos indígenas
Em entrevista à Rádio Agência da EBC , o coordenador jurídico da Apib e um dos integrantes do grupo de trabalho, Maurício Terena, disse que o Estatuto do Índio não está totalmente alinhado com a Constituição Federal de 1988. Para ele, o fato de o estatuto dividir os indígenas entre integrados e não integrados à sociedade, é uma ideia ultrapassada. "Magistrados brasileiros decidem que não vão aplicar um regime mais favorável a algum indígena porque ele já está integrado à sociedade civil e, portanto, não é mais indígena. A gente quer justamente com este Estatuto marcar que, independente do lugar que a gente esteja - seja na cidade, seja falando português ou não -, nós não deixamos de ser indígenas", disse Terena
O advogado indígena falou ainda sobre a intenção de fortalecer a proteção dos territórios indígenas no Estatuto do Índio. "A gente entende que nós somos seres intrinsecamente ligados com o território tradicional. Então, não dá para falar dos nossos corpos separados da lógica territorial. Por isso, vai ser importante também a gente trazer a questão das terras dentro do Estatuto". A afirmação corrobora a defesa pela demarcação de terras por meio da busca pela derrubada da tese do marco temporal, que determina a data de 5 de outubro de 1988 para a determinação das áreas que seriam indígenas ou não.
Quem são os juristas indígenas nomeados?
Além da ligação com a Apib, a maioria dos juristas indígenas nomeados para revisar o Estatuto do Índio tem em seu histórico ações relacionadas à derrubada da tese do marco temporal e a pautas ligadas à esquerda. “Esses indígenas são de uma corrente política, vinculada a ONGs e aos interesses do governo federal, que tem a sua ideologia. Então, esse é um grupo de trabalho que foi composto para, de fato, não contemplar os outros interesses de indígenas que querem, por exemplo, plantar e criar animais”, afirmou Maia ao comentar sobre a formação do grupo de trabalho.
Para ele, os nomeados para compor o grupo de trabalho não representam todos os povos indígenas brasileiros. “Os indígenas são diversos, não só nas suas etnias, mas também nas suas posições, nas suas visões de mundo. Então, é humanamente impossível alcançar essa representatividade”, disse Maia.
Eloy Terena - nasceu em uma aldeia da etnia terena em Aquidauana (MS) e é o atual secretário-executivo do Ministério dos Povos Indígenas. Ele é conhecido por ter atuado na coordenação jurídica da Apib. Eloy Terena ganhou notoriedade em 2020 ao ser o primeiro advogado autodeclarado indígena a vencer uma ação de jurisdição constitucional no Supremo Tribunal Federal. Por meio da ação, o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) foi obrigado a adotar medidas de proteção contra a covid-19 específicas para os povos indígenas.
Samara Pataxó - nasceu na aldeia Coroa Vermelha, do povo Pataxó, em Porto Seguro, na Bahia. Samara é bacharel em Direito pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), mestre em Direito e doutoranda pela Universidade de Brasília (UnB). Em suas redes sociais, a advogada indígena publicou uma foto com os demais integrantes do grupo de trabalho. “Nos debruçar sobre esta legislação, nos provoca a rompermos com o passado tutelar e integracionista da relação do Estado para com os povos indígenas (que ainda nos assombra) e nos permite pensarmos no presente e no futuro, em que somos protagonistas da nossa história, sujeitos de direitos, cidadãs e cidadãos”, disse a indígena na legenda. Em 2022, Samara foi contratada para atuar junto à Secretaria Geral da Presidência do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). O convite foi feito pelo então presidente do TSE, ministro Edson Fachin. Ela atua como assessora-chefe de Inclusão e diversidade do TSE. O ministro conheceu a indígena durante uma sustentação oral no STF, em que ela se posicionou contra o marco temporal.
Maurício Terena - do povo Terena, é bacharel em Direito pela Universidade Católica Dom Bosco e doutorando em Antropologia social na USP. Maurício Terena assumiu a coordenação jurídica da Apib, substituindo Eloy Terena, e desde então tem atuado junto ao STF pela derrubada do marco temporal.
Ademar Barbosa Junior - do povo Pankararu, é assessor jurídico da Articulação dos Povos Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (Apoinme).
Andressa Pataxó - bacharel em Direito pela Universidade Federal da Bahia, é assessora jurídica da Apib.
Ivo Aureliano Makuxi - do povo Makuxi, é assessor jurídico do Conselho Indígena de Roraima (CIR), pós-graduando em Direito Público com ênfase em Direito Constitucional pelo Instituto Verbo Jurídico.
Maria Judite Guajajara (ou Kari Guajajara) - é bacharel em Direito pela Universidade Federal do Maranhão, possui mestrado pela Universidade de Brasília, é assessora jurídica da Coiab e integra a Rede de Advogados Indígenas do Brasil. A indígena também foi secretária-adjunta de Estado da Mulher do Maranhão.