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Um decreto que limita o uso de armas de fogo, algemas e estabelece outras regras para abordagens policiais deve ser submetido à apreciação do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), após ele ter recebido alta médica. Segundo informou o Ministério da Justiça e Segurança Pública, comandado por Ricardo Lewandowski, uma minuta do documento que trata do uso da força policial já está com a Casa Civil.
O texto, ao qual a Gazeta do Povo teve acesso, recomenda a utilização prioritária de armas não letais por policiais, abordagens mais humanizadas, sem caráter discriminatório, e condiciona a destinação de recursos de fundos específicos de segurança pública aos estados e municípios àqueles que seguirem as normas.
Por regra, o governo federal diz que vai apenas sugerir as medidas, mas o decreto em elaboração estipula que o "repasse de recursos do Fundo Nacional de Segurança Pública e do Fundo Penitenciário Nacional para ações que envolvam o uso da força pelos órgãos de segurança pública dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios está condicionado à observância do estabelecido neste decreto".
Juntos, os fundos somam cerca de R$ 3 bilhões. Somente o Fundo Nacional de Segurança Pública, em 2024, tem valor previsto de repasse de R$ 2,5 bilhões. O Fundo Penitenciário Nacional tem o orçamento de R$ 426 milhões neste ano, segundo o Portal da Transparência do governo federal.
Para especialistas ouvidos pela Gazeta do Povo, a pressão financeira e orçamentária pode ser a intenção implícita do Ministério da Justiça para que os gestores passem a cumprir as regras, mesmo que não seja obrigatório aos entes federados segui-las. Eles afirmam também que os novos regramentos podem colocar em risco a segurança física e jurídica dos policiais.
“Ao que nos parece, a questão financeira é o principal objetivo desse tipo de investida federal. O fim pretendido, mas não informado, [também] é intervir na segurança pública nos estados, com a destinação de verbas federais apenas aos que adotarem o pretendido padrão. A tendência é piorar muito o atual cenário da segurança pública”, avalia o advogado e coronel da reserva da Polícia Militar do Paraná Alex Erno Breunig.
Ele considera desejável a existência de protocolos de atuação, mas alerta que padronizar abordagens diversas pode colocar policiais em risco, especialmente quando as normas são criadas sem a participação de profissionais experientes na prática operacional. Breunig defende o incentivo ao uso de armas menos letais, conforme prevê o decreto, mas destaca que essas tecnologias não substituem as armas letais, essenciais diante da alta violência e da quantidade de armamentos disponíveis para criminosos.
O decreto estava em elaboração desde o início do ano e também prevê a criação de um Comitê Nacional de Monitoramento do Uso da Força. Ele será multidisciplinar para monitoramento de mortes por ação policial e mortes de profissionais da segurança pública.
O envio do documento à Casa Civil para análise e deferimento presidencial vem na esteira de uma discussão nacional sobre abordagens policiais depois que um policial de São Paulo foi flagrado jogando um homem de uma ponte. Na repercussão, Lewandowski reforçou a necessidade de atos normativos.
"Estamos pensando na edição de um ato normativo no que diz respeito ao uso da força, o uso progressivo da força. Começando pela utilização de instrumentos não letais até, se não houver mais nenhuma possibilidade de enfrentamento ao crime, chegarmos ao uso das armas letais", disse.
O que diz a minuta do decreto sobre abordagens policiais
O Ministério da Justiça afirma que o objetivo do decreto é modernizar normativas, incorporando novas técnicas, táticas e equipamentos, tendo em vista que as regras atuais foram publicadas há 14 anos e estariam, de acordo com a pasta, defasadas.
Assim como já antecipado pela Gazeta do Povo, o decreto em elaboração recomenda que:
- o uso de armas letais, como as armas de fogo, deve ocorrer somente quando outros métodos de menor intensidade, como armas de choque (taser) e cassetetes, não forem suficientes;
- profissionais da segurança pública não devem discriminar pessoas pela etnia, raça, sexo, cor, orientação sexual, língua, religião, opinião política, nacionalidade, origem social, deficiência e a situação econômica;
- sempre que o uso da força resultar em ferimento ou morte, deverá ser elaborado relatório circunstanciado, nos termos a serem definidos pelo Ministério da Justiça.
- não se use arma de fogo contra pessoa em fuga que esteja desarmada ou que não represente risco imediato de morte ou de lesão aos profissionais de segurança pública ou a terceiros;
- não se use arma de fogo contra veículo que desrespeite ordem de parada ou bloqueio policial em via pública, exceto quando o ato represente risco de morte ou lesão a terceiros ou aos próprios profissionais de segurança pública;
- não se aponte arma de fogo em direção a pessoas durante os procedimentos de abordagem como prática rotineira e indiscriminada;
- não se efetue disparo a esmo ou de advertência.
O Ministério indica que a minuta enviada à Casa Civil foi elaborada com base em estudos realizados por um grupo formado por representantes de associações de profissionais de segurança pública, secretários estaduais da área e integrantes dos ministérios da Justiça, dos Direitos Humanos e da Igualdade Racial.
As novas regras valerão para policiais penais, rodoviários federais, federais, civis, militares e as guardas municipais de todo o Brasil. As linhas gerais sobre detalhes à atuação policial deverão passar por um grupo de trabalho que será coordenado pela Secretaria Nacional de Segurança Pública, vinculada ao MJSP.
Há outros pontos citados que ficarão em aberto para definição posterior do governo federal: quando e como se deve usar algemas, regras para busca pessoal e domiciliar, e atuação em ambientes prisionais (conduta de policiais penais dentro das penitenciárias e presídios).
Decreto pode encontrar resistência no Legislativo
Para o senador Sergio Moro (União-PR), membro da Comissão de Segurança do Senado Federal, os parlamentares não devem aceitar invasões de competências sobre definições destes regramentos.
“Não aceitaremos invasão da competência legislativa ou da competência dos estados, nem restrições à atuação policial que não encontrem previsão legal ou que impeçam a ação contra criminosos”, destaca, ao avaliar a necessidade de diálogo prévio entre o governo federal e o Congresso.
O decreto enviado pelo ministro Ricardo Lewandowski à Casa Civil na semana passada pode ser oficializado ainda neste ano, mas detalhes só devem ser definidos depois, em até 90 dias. Interlocutores que participaram dos debates acreditam que isso ocorra por meio de uma portaria do Ministério da Justiça.
Uma das preocupações citadas por especialistas é que o decreto enviado à Casa Civil traz diretrizes gerais, mas ficará sob responsabilidade do Ministério da Justiça detalhar e estipular regramentos às atuações policiais.
“O documento inicial é vago e dá margem para amplas determinações, sem detalhamentos ainda, isso significa que caberá exclusivamente ao ministério definir o texto que vai padronizar abordagens e a atuação policial?”, indaga o especialista em segurança pública, Marcelo Almeida.
Risco à atividade policial e problemas à segurança pública
O decreto em elaboração também determinará regramentos para abordagens e buscas domiciliares, em residências e estabelecimentos comerciais. O profissional da segurança pública terá de informar à pessoa os motivos pelos quais será alvo de buscas.
O especialista em segurança pública Sérgio Leonardo Gomes acredita que essas medidas previstas podem elevar os casos de morte de policiais ao tornar a ação policial mais restritiva. “Estamos falando do Brasil, onde precisamos lidar com o crime organizado e o tráfico internacional de drogas e armas. Organizações altamente preparadas e prontas para matar”, completa ao avaliar o decreto.
Por fim, o advogado Alex Erno Breunig alerta que padronizar ações é "vulnerabilizar a segurança pública", com reflexos à população, diante do tamanho do país e as peculiaridades em cada estado.
“As diferenças regionais representam um grande desafio em termos de padronização de procedimentos, especialmente se as normas forem muito específicas e restritivas à atuação policial. Uma padronização nacional tende a ser inadequada e a agravar a situação podendo expor o policial a riscos à vida e riscos jurídicos”.
Para o advogado, especialista em Direito Penal, Márcio Berti, é importante haver regras e padronização das ações policiais com normas que possam servir de orientação às mais diferentes forças de segurança. “Serão normas não impostas, caberá aos estados e municípios decidirem se vão ou não adotar, mas havendo regras enfim haverá uma diretriz na padronização nas abordagens, o que é positivo”, reforça.