O risco de o governo sair derrotado no Congresso com a medida provisória que acaba com a desoneração da folha de pagamento das empresas, corta benefício do setor de eventos e limita a compensação tributária de médias e grandes companhias deve fazer com que, mais uma vez, o Supremo Tribunal Federal (STF) seja acionado pelo Executivo para ajudar na arrecadação.
Essa é a projeção de tributaristas e técnicos do Congresso consultados pela Gazeta do Povo para tentar saber o que deve sobrar, afinal, da MP 1.202/2023. Ela foi editada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) no fim de dezembro, no mesmo dia em que o Congresso havia aprovado a prorrogação da desoneração até 2027, derrubando um veto presidencial sobre lei aprovada nesse sentido.
Idealizada pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad, a MP tenta turbinar a arrecadação em R$ 32 bilhões, numa tentativa de manter de pé a promessa de zerar o déficit das contas públicas neste ano. Com a reoneração, o governo espera obter R$ 6 bilhões; com a retenção de créditos tributários, outros R$ 20 bilhões em 2024; e com o fim do Programa Emergencial de Retomada do Setor de Eventos (Perse), mais R$ 6 bi.
A MP já está em vigor, mas revoltou lideranças do Congresso, especialmente de centro e direita, que há dez anos mantêm a desoneração sobre diversos setores - atualmente, são 17: vestuário; calçados; construção civil; call centers; mídia; infraestrutura; couro; veículos; máquinas; carne; têxtil; tecnologia da informação; tecnologia de comunicação; circuitos integrados; metrôs; transporte rodoviário de passageiros; e transporte rodoviário de cargas.
Hoje, empresas desses ramos pagam, como contribuição previdenciária, de 1% a 4,5% sobre a receita bruta, em vez de 20% sobre a folha de pagamento de cada funcionário; o argumento é de que elas empregam muita gente e precisam disso para manter os postos de trabalho. A MP de Haddad propõe uma reoneração gradual: a partir de abril, 42 setores passariam a pagar 10% ou 15% sobre o salário mínimo e 20% sobre o restante do que ganha cada empregado. A alíquota sobre o salário mínimo vai subindo ano a ano até chegar a 17,5% ou 18,8% (dependendo do setor) em 2027.
O Perse, por sua vez, zerava alíquotas dos tributos federias sobre as empresas de eventos e permitia que elas quitassem dívidas com o fisco “conforme a sua capacidade de pagamento”. O programa foi instituído em 2021 para evitar a quebra do setor na pandemia e teria validade até 2026; com a MP, as cobranças voltam em abril de 2024 (CSLL, PIS e Cofins) e 2025 (IRPJ).
A compensação tributária é um instrumento que permite às empresas que obtiveram na Justiça o direito de não pagar algum tributo abater, no pagamento futuro de outros tributos, os valores que foram obrigadas a recolher antes da decisão judicial. A MP de Haddad coloca um limite mensal para a compensação das empresas com créditos superiores a R$ 10 milhões. Elas não poderão mais abater o valor total no mesmo ano e haverá um limite mensal no desconto.
Devolução de MPs: STF definirá regras?
O primeiro obstáculo a ser enfrentado pelo governo é uma possível devolução da MP pelo Congresso. Adotada apenas cinco vezes desde 1988, trata-se de uma medida heterodoxa, não prevista na Constituição nem no regimento do Congresso, do Senado ou da Câmara. Daí o interesse já anunciado por Haddad em acionar o STF caso isso seja feito pelo presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), chefe do Poder Legislativo.
Pela regra existente, assim que uma medida provisória é publicada, Câmara e Senado têm 120 dias para aprová-la, com ou sem mudanças, ou rejeitá-la, inclusive deixando de votá-la, fazendo-a “caducar”. Antes de ser analisada pelo plenário das duas casas, uma comissão mista de deputados e senadores analisa o conteúdo, afere a constitucionalidade e incorpora alterações propostas pelos parlamentares. Durante esse período, a MP está em vigor, com suas regras sendo aplicadas como qualquer lei, mas somente após a aprovação ela se torna uma norma definitiva, juntamente com as regras nela inseridas pelos deputados e senadores.
Como não há qualquer regramento que permita e discipline a devolução – que situações a admitiriam e que efeitos isso teria sobre o tempo em que a MP permaneceu em vigor – a resposta do STF à questão é uma incógnita. Na falta de regras, técnicos do Legislativo acreditam que, se a questão for levada à Corte, os ministros acabarão legislando sobre o assunto – proibindo ou estabelecendo condições –, o que criaria novo ponto de tensão do Legislativo com o Judiciário, desta vez criado por provocação do Executivo.
Nas raras vezes em que MPs foram devolvidas – em 1989, 2008, 2015, 2020 e 2021 – os presidentes do Senado de então apresentaram justificativas bem simples: argumentaram que as mudanças eram “inaceitáveis”, traziam insegurança jurídica, não tinham urgência, afrontavam prerrogativas dos legisladores, continham dispositivos aparentemente contrários à Constituição. Curiosamente, uma das medidas provisórias devolvidas pelo Congresso tratava do mesmo assunto de agora. Em 2015, a então presidente Dilma Rousseff editou a MP 669/2015, que reduzia a desoneração, já em vigor, para 56 setores da economia.
Esse histórico foi registrado pela atual advogada do Senado Roberta Simões, em artigos publicados em 2020 e 2021, após devoluções de MPs do ex-presidente Jair Bolsonaro. Professora de Direito Constitucional, ela defende a possibilidade de devolução, mas considera que é preciso regulamentar o ato, prevendo que seja cabível em casos de inconstitucionalidade “manifesta”, “tendo em vista a possibilidade de uma medida provisória inconstitucional ter efeitos imediatos concretos e indesejados”, conforme escreveu no portal Jota, em 2020.
Se a MP da Reoneração for devolvida, e se Haddad contestar o ato no STF, será a primeira vez em que os ministros da Corte se debruçarão sobre o tema. O resultado é desconhecido. Até hoje, apenas um sinal positivo para a possibilidade de devolução apareceu.
Em 2021, Rosa Weber suspendeu a MP 1.068/2021, de Bolsonaro, que limitava a censura nas redes sociais, logo após a devolução dela por Rodrigo Pacheco. Na decisão, a ministra, hoje aposentada, reconheceu a possibilidade, mediante um “juízo negativo de admissibilidade” de medida provisória, “extinguindo desde logo o procedimento legislativo resultante de sua edição”.
Esse trecho da decisão nunca foi analisado pelos demais ministros e Rosa Weber já deixou a Corte. Uma discussão sobre a possibilidade de devolução, portanto, começaria do zero no STF.
E se a MP tramitar?
Se a MP da Reoneração tramitar no Congresso, por decisão de Pacheco ou do STF, a dificuldade do governo para aprová-la permanece em seus três pontos. Neste cenário, a Corte deverá ser acionada pelo Planalto para reverter as derrotas.
O ponto mais delicado é a reoneração, devido ao fato de o Legislativo ter acabado de prorrogar o benefício na tributação da folha de pagamento de 17 setores. Nesse caso, o governo poderia tentar uma vitória no STF para acabar com a desoneração em razão de uma regra da reforma da previdência, de 2019, que proibiu a substituição da base salarial pela receita na incidência da contribuição previdenciária. Um dispositivo fez a ressalva de que a desoneração nesses moldes, que já existia, poderia mesmo assim ser prorrogada. Mas a orientação dada, desde então, é que em algum momento todos os empregadores do país voltassem a recolher 20% do valor de cada salário em favor do INSS.
“O governo queimou etapa. Se tivesse ido ao STF discutir a constitucionalidade da prorrogação da desoneração, seria mais fácil resolver do que dessa forma, editando uma MP no dia seguinte à decisão do Congresso de manter o benefício”, comenta a consultora tributária Maria Carolina Gontijo, lembrando que o Legislativo aprovou a prorrogação sem prever uma fonte de custeio para a benesse.
Quanto aos demais pontos da MP, ela vê margem para o governo obter vitórias, ainda que parciais. Apesar de considerar os limites à compensação tributária um “absurdo”, uma vez que as empresas deveriam ter direito de abater de seus tributos tudo que pagaram a mais, ela prevê que o governo vai ganhar no Congresso, sob o discurso de que a medida afeta sobretudo “os mais ricos”. Se essas empresas contestarem no STF, também tendem a perder.
“O contribuinte é obrigado a pagar algo indevido, tem isso reconhecido pela Justiça e para ter de volta vai ter que esperar ainda mais? Restituição direta não é uma possibilidade, porque precatório demora anos. A saída é a compensação, que é feita na medida em há tributos a serem pagos. Em alguns casos isso já demora anos. Agora serão décadas”, explica a advogada tributarista Maria Carolina Torres Sampaio.
“Quando uma empresa cobra algo indevidamente, tem que restituir assim que isso é reconhecido. E tem que devolver em dobro, nas relações de consumo. O governo, o ente que mais cobra valores de forma indevida, devolve quando e como quer. Isso fere inúmeros preceitos constitucionais. Boa fé, proporcionalidade, capacidade contributiva, por aí vai”, afirma.
A avaliação entre tributaristas é de que a vitória mais fácil para o governo no Congresso seria o fim do Perse, programa de incentivo a eventos lançado na pandemia. Do ponto de vista jurídico, o único entrave é que o Código Tributário Nacional impede a revogação de um benefício instituído com prazo certo, no caso do Perse, até 2026. Assim, se o Congresso derrubar a medida, o setor poderia recorrer ao STF para mantê-lo. Nesse ponto, o Executivo também teria de contar com a boa vontade da Corte para acabar com o programa.
“Um argumento para isso é que o setor está se beneficiando sem uma contrapartida. O STF é muito pró-governo e poderia aceitar essa tese para interromper o programa”, diz Maria Carolina Gontijo.
Triângulo Mineiro investe na prospecção de talentos para impulsionar polo de inovação
Investimentos no Vale do Lítio estimulam economia da região mais pobre de Minas Gerais
Conheça o município paranaense que impulsiona a produção de mel no Brasil
Decisões de Toffoli sobre Odebrecht duram meses sem previsão de julgamento no STF
Deixe sua opinião