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Um grupo de juristas coordenado pelo ex-ministro da Justiça Miguel Reale Júnior publicou um relatório nesta semana em que afirma haver indícios de que o presidente Jair Bolsonaro pode ter cometido sete crimes durante a pandemia de Covid-19 no Brasil: de responsabilidade, charlatanismo, infração de medida sanitária, crime de epidemia, prevaricação, incitação ao crime e até mesmo crimes contra a humanidade.
O parecer, assinado também pelos juristas Sylvia H. Steiner, Helena Regina Lobo da Costa e Alexandre Wunderlich, foi entregue à Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid, em resposta a um requerimento do senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE).
Na conclusão, os especialistas dizem que várias situações "merecem o aprofundamento das investigações pelos órgãos de controle do Estado brasileiro" e que "são bastante evidentes as hipóteses reais de justa causa para diversas ações penais".
Alguns dos pontos que embasaram as “imputações penais potencialmente cabíveis a agentes públicos durante o combate à pandemia”, relatadas a seguir, já foram refutados pelo presidente e por seus aliados como "uma narrativa" da oposição para desgastar o governo. Muito do material analisado no relatório provém de depoimentos da CPI da Covid.
O documento completo, de 226 páginas, foi publicado pelo jornal O Estado de São Paulo. Leia a seguir a argumentação dos juristas para enquadrar Bolsonaro nos crimes citados:
Crime de responsabilidade
Os juristas consideram que o presidente Jair Bolsonaro cometeu crime de responsabilidade por “desrespeitar o direito à vida e à saúde de um número indeterminado de pessoas”. Eles citam o artigo 85 da Constituição, afirmando que atentar “contra o exercício de direito individual e social, no caso o direito à vida e à saúde”, é “passível de configuração como crime de responsabilidade”. E também apelam para a Lei 1.079/50, relativa aos crimes de responsabilidade, mencionando um artigo desta legislação que diz que é crime “violar patentemente qualquer direito ou garantia individual constante” dos artigos 5º e 6º da atual Constituição (direito à vida e direito à saúde, respectivamente).
Para embasar sua conclusão, os autores elencaram ações e supostas omissões do presidente da República:
- Promover aglomerações sem uso de máscaras.
- Priorizar a garantia da continuidade da plena atividade econômica acima da adoção das medidas preconizadas pelos especialistas e pela OMS.
- Demonstrar, por meio de suas falas, indiferença às mortes por Covid-19.
- Impor obstáculos à obrigatoriedade do uso de máscaras de proteção individual.
- Ampliar o rol de atividades não essenciais durante os períodos mais agudos da pandemia.
- Divulgar tratamentos precoces sem eficácia comprovada.
- Conspirar contra as vacinas, seja ao demorar para adquiri-las, ou ao questionar a segurança e eficácia dos produtos.
A crise da falta de oxigênio nos hospitais de Manaus, em janeiro deste ano, também foi citada.
“Verifica-se, portanto, que as políticas ineficazes e desastrosas defendidas e adotadas pelo sr. Presidente Jair Bolsonaro, bem como a sua decisão de não intervir no Amazonas, durante a gravíssima crise de falta de oxigênio no estado, reforçam a demonstração de seu absoluto descaso com a saúde e com a vida dos brasileiros”, consta no relatório.
“O Presidente, por meio de condutas comissivas e omissivas, atinge tais direitos e revela desumanidade incompatível com a ordem democrática consagrada na Constituição”, concluem.
Crime contra a saúde pública
Segundo os autores do relatório, Bolsonaro cometeu “diversos crimes contra a saúde pública”: crime de epidemia, crime de infração de medida sanitária e crime de charlatanismo.
A acusação de charlatanismo se refere a “atos de propagação do uso de medicamentos sem eficácia comprovada”. Os autores entendem que o presidente, ao dizer em três ocasiões que o tratamento precoce salvou as pessoas que o utilizaram, estava anunciando “a cura de uma doença por meio secreto e infalível”, conforme definição do crime em questão.
As infrações de medidas sanitárias teriam ocorrido, segundo os autores, em momentos em que o presidente não usou máscara em público e promoveu aglomerações ao se reunir com apoiadores. Eles afirmam que a Lei 14.019/20 prevê expressamente a possibilidade de imposição de sanção pelos órgãos federais àqueles que descumprirem o uso de máscaras obrigatório.
Bolsonaro também teria cometido o crime de “causar epidemia”, sendo o verbo causar entendido como “agravar”, e não em referência à origem da pandemia. Para os autores, as condutas do presidente indicam que esse crime foi praticado intencionalmente.
“O sr. Presidente da República Jair Messias Bolsonaro praticou atos de manifestação pública e atos normativos claramente no sentido de causar a propagação da epidemia, seja para buscar a imunidade de rebanho, seja para supostamente privilegiar a economia em detrimento da vida e da saúde da população brasileira”, escrevem.
Crimes contra a paz pública
Citando o artigo 268 do Código Penal, os autores ainda afirmaram que Jair Bolsonaro “incitou a população” a “infringir determinação do poder público destinada a impedir a propagação de doença contagiosa”.
Ao apresentar a acusação, eles mencionaram um episódio em que o presidente teria “provocado” seus seguidores a “invadir hospitais com a falsa desconfiança de ser mentira a alta ocupação de leitos da UTI”.
Em 10 de junho, Bolsonaro disse, em uma transmissão ao vivo em suas redes sociais:
“Pode ser que eu esteja equivocado, mas, na totalidade ou em grande parte, ninguém perdeu a vida por falta de respirador ou leito de UTI. Pode ser que tenha acontecido um caso ou outro. Seria bom você, na ponta da linha, tem um hospital de campanha aí perto de você, um hospital público, arranja uma maneira de entrar e filmar. Muita gente tá fazendo isso, mas mais gente tem que fazer para mostrar se os leitos estão ocupados ou não”.
Ao dizer isso, segundo os autores, o presidente da República instigou populares a invadirem hospitais, incitando “à prática do crime de invasão de domicílio (art. 150 do Código Penal) e de colocação de pessoas em perigo de vida (art. 132 do Código Penal)”.
Crimes contra a administração pública
Os juristas, baseando-se em depoimentos na CPI da Covid, também alegaram que houve prevaricação do presidente Jair Bolsonaro e do ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello no caso Covaxin, pois eles teriam sido alertados sobre supostas irregularidades no processo de compra da vacina indiana e não teriam feito nada para impedi-las. “Conclui-se que as omissões dos Srs. presidente da República e [do então] Ministro da Saúde estão previstas na lei penal sob a forma de delito de prevaricação”, diz o documento.
O relatório também cita que crimes podem ter sido cometidos por autoridades do governo na negociação da compra de vacinas contra Covid-19.
Por exemplo, afirma que, segundo revelações da CPI da Covid, é possível indicar que Roberto Ferreira Dias, ex-diretor do Departamento de Logística do Ministério da Saúde, praticou o crime de corrupção passiva na forma ativa e José Ricardo Santana, ex-secretário executivo da Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos da Anvisa, na forma omissiva.
Também cita que Dias, o secretário-executivo do Ministério da Saúde Élcio Franco, os funcionários da Saúde, coronel Marcelo Bento Pires e tenente-coronel Alex Lial Marinho, praticaram o crime de advocacia administrativa para beneficiar a empresa Precisa Medicamentos, que atuou como intermediária na compra da vacina Covaxin junto ao Ministério da Saúde.
Crimes contra a humanidade
Os juristas também afirmam que o presidente Bolsonaro pode ter cometido crimes contra a humanidade ao "ignorar" o atendimento às populações indígenas “durante toda a pandemia”.
Eles argumentam que “um ataque à população civil” não necessariamente precisa ser um ataque armado ou com violência física, e que o presidente teria adotado “uma política de Estado” de “medidas concretas e de omissões deliberadas que resultaram no número de contaminações e de mortos entre as populações indígenas proporcionalmente superior ao que atingiu as populações urbanas”.
Também citam a crise em Manaus, causada pela falta de oxigênio hospitalar, como “um caso exemplar do desprezo à vida”.