A ideia do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) de tornar secretos os votos dos ministros do Supremo Tribunal Federal não é só inconstitucional, mas também “absurda”, “delirante” e prejudicial à avaliação crítica, pelo público geral e especializado, das decisões de um órgão megapoderoso e não eleito. É assim que vários estudiosos e analistas comentaram o “conselho” do petista, que, segundo ele, iria evitar “animosidade” contra os ministros.
Sem ser perguntado sobre o assunto, Lula externou sua proposta durante uma “live” nesta terça-feira (5), quando, mais uma vez, criticava o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), chamado por ele de “o coisa” e “genocida”. O petista disse que queria “acabar com o ódio”.
“Esse país precisa aprender a respeitar as instituições. Não cabe ao presidente da República gostar ou não de uma decisão da Suprema Corte. A Suprema Corte decide, a gente cumpre. É assim que é”, afirmou inicialmente.
“Eu, aliás, se eu pudesse dar um conselho, é o seguinte: a sociedade não tem que saber como é que vota um ministro da Suprema Corte. Sabe, eu acho que o cara tem que votar e ninguém precisa saber. Votou a maioria 5 a 4, 6 a 4, 3 a 2. Não precisa ninguém saber foi o [Marcos] Uchôa que votou, foi o Camilo [Santana] que votou [ambos presentes na conversa]. Aí cada um que perde fica com raiva, cada um que ganha fica feliz”, continuou Lula.
“Para a gente não criar animosidade, eu acho que era preciso começar a pensar se não é o jeito de a gente mudar o que está acontecendo no Brasil. Porque do jeito que vai, daqui a pouco um ministro da Suprema Corte não pode mais sair na rua, não pode mais passear com a sua família, sabe, porque tem um cara que não gostou de uma decisão dele”, concluiu.
As declarações ocorrem num momento em que o primeiro indicado de Lula para o STF neste mandato, o ministro Cristiano Zanin, seu ex-advogado pessoal, enfrenta uma enxurrada de críticas, sobretudo da esquerda, por votos considerados “conservadores”: contra a descriminalização do porte de maconha para consumo, o reconhecimento da homotransfobia como injúria racial, e contra o cabimento de uma ação de proteção a comunidades indígenas.
Parte das críticas a Zanin visa à indicação de um nome abertamente progressista para a próxima vaga a ser aberta, no final do mês, com a aposentadoria da ministra Rosa Weber.
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Votos secretos seriam inconstitucionais
À direita e à esquerda, a ideia de Lula teve repercussão negativa entre analistas do direito e de outras áreas de conhecimento.
Para Janaína Penalva, doutora e professora da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB), tornar os votos secretos seria como ter “juízes sem rosto”. “Isso precisa de emenda constitucional e ninguém vai concordar. Parece-me uma solução equivocada a sugestão do presidente”, afirma.
A Constituição diz, em seu artigo 93, que elenca os princípios que devem reger a magistratura, que “todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade”, segundo o inciso IX – admite-se limitar a presença das partes e advogados em determinados atos quando a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação.
Crítica da indicação de Zanin, Penalva considera que fala de Lula busca preservar a imagem de seu ex-advogado. Para ela, ministros têm de ser capazes de suportar críticas.
Além disso, a professora entende que tornar os votos de cada um secreto fragilizaria a posição das mulheres no plenário do STF – hoje, elas já são minoria, com apenas Cármen Lúcia e Rosa Weber entre os 11 integrantes da Corte. “Deixa livre o espaço para pressões dos homens, reduz o direito de fala. Opressão mesmo: interromper a fala, pressionar. A publicidade protege a independência. As ministras seriam mais facilmente oprimidas em um espaço muito branco e patriarcal”, diz Penalva.
Na avaliação de Janaina Paschoal, professora e doutora em direito penal pela USP, a manifestação de Lula é preocupante. “Por óbvio, compreendo o cuidado com a segurança dos Srs Ministros; entretanto, determinados cargos implicam riscos e pressupõem resistência às críticas. Já disse e repito, Lula é muito inteligente. Ele sabe que o julgamento do Mensalão não teria o desfecho que teve, não fosse o escrutínio popular. Não podemos admitir recuos em termos de transparência. Há tempos, a esquerda ensaia fechar os julgamentos do STF, sob os mais diversos argumentos. Lula, estrategicamente, abraça justificativa difícil de contestar, mas é preciso!”, publicou no Twitter.
Hugo Freitas, mestre em Direito pela UFMG e articulista da Gazeta do Povo, escreveu que “Lula sintetizou muito bem a filosofia neodemocrática pós-2016: ‘não criar animosidade’”. “'Democrático' é tudo aquilo que sustenta o poder estabelecido. Antidemocrático é tudo aquilo que vai contra o poder estabelecido, inclusive com palavras. O prefixo ‘demo’ foi esquecido e ‘democracia’ virou uma metonímia para designar o próprio poder estabelecido, assim como ‘a Coroa’ era a metonímia usada nas monarquias”, postou.
Fala de Lula prejudica debate sobre exposição de ministros na mídia
Mas houve quem defendesse a ideia de Lula, ou ao menos, um modelo próximo. O mestre, doutor e professor de direito constitucional João Carlos Souto, procurador da Fazenda e autor de um livro sobre a Suprema Corte dos Estados Unidos, postou que a sugestão de Lula é relativamente comum por lá.
“As decisões ‘per curiam’; tomadas pelo Tribunal sem que se saiba como votou cada juiz. Bush. v. Gore, que definiu a eleição presidencial de 2000, depois do imbróglio eleitoral na Flórida, é uma das mais famosas decisões per curiam. A tradução é ‘pelo tribunal’”, explicou no Twitter.
A postagem foi republicada pelo atual advogado-geral da União, Jorge Messias, homem de confiança de Lula e, por isso mesmo, um de seus preferidos para virar ministro do STF.
Doutor e mestre em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela USP, o advogado e professor Horacio Neiva observou, no entanto, que a ideia de Lula é diferente, por defender que o resultado da votação seja também secreto.
“Nos EUA a deliberação não é pública (assim como em muitos – creio que a esmagadora maioria – dos tribunais constitucionais ao redor do mundo). Mas os votos divergentes são publicados e sabemos quem formou a maioria e quem restou vencido”, postou o advogado.
À Gazeta do Povo, ele observou que existe um intenso debate sobre a possibilidade de a deliberação de juízes, num tribunal colegiado, ser fechada, inclusive deixando de ser transmitida pela TV Justiça, por exemplo.
Neiva diz que julgamentos ao vivo, muitas vezes, acabam incentivando “disputas ególatras, retóricas, brigas desnecessárias, ministro querendo fazer um argumento para passar no jornal”. Por isso, defende que a discussão seja fechada, mas não os votos de cada ministro.
“Sou a favor do fim da deliberação pública, mas tem que constar o nome de cada ministro, e como ele votou, na decisão. Se o Lula está sugerindo nem indicar quem votou e como, é um absurdo. Mas ao fim das discussões abertas eu sou favorável. O que interessa – e o que deve ser analisado e criticado – é o resultado final. Esse processo interno de deliberação não precisa ser público”, diz ele, referindo-se inclusive a julgamentos presenciais que envolvem debates de pormenores na análise da constitucionalidade de regras legais, como ocorreu recentemente no caso da descriminalização da maconha e na implementação do juiz de garantias.
A TV Justiça existe desde 2002, inaugurada pelo então presidente do STF, Marco Aurélio Mello. Desde seu início, levantou debates dentro do STF sobre a excessiva exposição dos ministros, que eventualmente entram em bate-bocas pessoais e provocações mútuas.
Atualmente, no entanto, não há nenhuma discussão oficial na Corte para acabar com as transmissões ou tornar secretos os votos. O que mudou, de 2020 para cá, foi o aumento dos julgamentos no plenário virtual, inclusive em ações importantes, sem debate presencial e no qual cada ministro apresenta seu voto de forma escrita, de forma remota, dentro do sistema processual online. Mesmo nesses casos, o voto de cada um aparece para o público no site da Corte, mesmo em processos sigilosos.
Beatriz Rey, doutora em ciência política, publicou que “o problema não é o voto ser público”. “Accountability [responsabilização] é sempre bom. O problema é ministro do STF dando palpite em assunto de outro poder, dando entrevista para a imprensa, fazendo conchavo para salvar políticos e por aí vai.”
Na mesma linha, Pedro Burgos, professor de Comunicação e Jornalismo do Insper, postou que “a declaração absurda do Lula vai fazer a gente voltar algumas casas em uma discussão legítima: do quão ruim é a espetacularização/personalização do Supremo (pavonice na TV Justiça, opiniões fora dos autos, entrevistas, etc). Solução não deve ser a absoluta falta de transparência.”
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