O Anuário Brasileiro de Segurança Pública, publicado nesta terça-feira (10), mostrou um crescimento de 181% no número de mortes causadas por intervenções policiais no Brasil entre 2013 e 2018. No ano passado, foram 6.220 vítimas – 17 pessoas por dia.
Do outro lado, 343 policiais civis e militares morreram em 2018 - 256 (75%) fora de serviço. O número caiu 8% em relação ao ano anterior.
A divulgação ocorre num momento em que o governo fala em ampliar salvaguardas jurídicas para policiais que matam em serviço, o chamado excludente de ilicitude, e perdoar agentes de segurança presos por violência policial em casos como os massacres do Carandiru e de Eldorado dos Carajás.
O pacote anticrime do ministro da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro, apresentado em fevereiro, já trata do excludente, mas o presidente Jair Bolsonaro planeja enviar ao Congresso um projeto ainda mais abrangente e que inclui militares.
Bolsonaro quer que policiais militares, civis e federais possam usar armas de fogo em serviço sem o receio de serem processados em caso de homicídio. O presidente deseja ainda que as Forças Armadas que atuem em operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) também sejam incluídas nesse novo projeto.
Hoje, o Código Penal define que o excludente de ilicitude se aplica, no caso de agente de segurança pública, em virtude do “estrito cumprimento legal de dever ou no exercício regular de direito” (inciso 3º, art. 23). Porém, o mesmo código estabelece que mortes em confronto policial devem ser alvo de inquérito para que se investigue se a reação policial foi mesmo necessária e proporcional ao risco, ou seja, se não houve abuso de força.
O projeto de Moro propõe um novo parágrafo ao artigo 23, acrescentando que a pena ao policial que mata em serviço poderá ser reduzida pela metade ou mesmo não aplicada se a morte tiver ocorrido por “escusável medo, surpresa ou violenta emoção”. O pacote prevê ainda que agentes de segurança poderão alegar “legítima defesa” (art. 25) em caso de "conflito armado" ou "risco de agressão a vítima mantida como refém".
Grupo de trabalho resiste ao excludente de ilicitude de Moro
Porém, o excludente de ilicitude sofre muita resistência no grupo de trabalho que analisa as propostas do ministro da Justiça. A tendência é que seja retirado do pacote anticrime, ou pelo menos alterado.
O deputado federal Lafayette Andrada (Republicanos-MG), que faz parte do grupo de trabalho, disse que os parlamentares devem chegar a um meio termo em relação ao tema. Para ele, a esquerda exagera quando diz que o texto dá licença para matar, mas a direita também erra ao dizer que os policiais não têm retaguarda jurídica para atuar.
Segundo Andrada, a legislação atual já é suficiente para proteger o policial, ao dar salvaguarda jurídica para atos cometidos no “estrito cumprimento do dever”. Neste sentido, basta executar o que já está previsto em lei, e a polêmica chega a ser desnecessária. Para Andrada, os militares se enquadram na mesma situação e não há necessidade de um novo projeto para dar a eles retaguarda jurídica em operações.
O secretário nacional de Segurança Pública, Guilherme Theophillo, discorda e diz que o policial precisa ter mais respaldo para trabalhar. “Acho que o policial militar está muito cerceado e o criminoso tem muito direito. Criminoso é criminoso e tem que pagar pelo que fez”, disse em entrevista à Gazeta do Povo.
Para o deputado Subtenente Gonzaga (PDT-MG), a discussão em torno do excludente de ilicitude parte da premissa errada. Para ele, é necessário mudar o modelo de atuação das polícias, principalmente da PM. Segundo o pedetista, quando a polícia passar a agir com inteligência, podendo realizar investigações prévias antes da ação, os confrontos e as mortes vão diminuir. Enquanto esse debate não acontecer, porém, é preciso ter coragem para dar salvaguardas aos policiais, disse Gonzaga.
Deputados da "bancada da bala" acreditam que vão conseguir incluir a proposta original de Moro sobre o excludente de ilicitude na votação do pacote anticrime no plenário da Câmara. Mas um deputado da oposição ouvido pela Gazeta do Povo disse que isso pode não ser assim tão fácil. Para ele, a bancada está desgastada pelo apoio ao presidente, que não está tendo vida fácil na Casa e vê sua popularidade cada vez menor. Se não for possível, a alternativa será apoiar o projeto gestado pelo presidente Bolsonaro.
Excludente de ilicitude 2.0
Ainda não há prazo para que o excludente de ilicitude do Planalto chegue ao Congresso Nacional. A deputada Joice Hasselmann (PSL), líder do governo no Congresso, garante que a proposta será enviada ainda neste ano. “É uma promessa de campanha”, disse. “O presidente também pretende condecorar militar que abater bandido”, completou.
A parlamentar reconhece que o projeto pode encontrar resistência na Casa, principalmente entre a bancada evangélica e a oposição, mas ela acredita que a proposta vai ter apoio do PSL, da bancada de militares e policiais civis, além dos ruralistas.
Para o deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), a ideia é dar a maior garantia possível também para os militares. O deputado acredita que o excludente de ilicitude do pacote de Moro pode ser interpretado para abranger também militares, mas um projeto específico vai proteger as Forças Armadas de possíveis contestações.
Um deputado ligado à segurança pública avalia que não é necessário um projeto de lei específico para militares, pois quando eles estão envolvidos em operações na área de segurança pública, já estão enquadrados no excludente de ilicitude. “Mas eu espero que ele mande o projeto, para que haja essa discussão”, disse.
De qualquer modo, a deputada federal Carla Zambelli (PSL-SP) defende primeiro testar o excludente de ilicitude para policiais, previsto por Moro, no plenário da Câmara, para só depois o governo enviar uma nova proposta, tratando de militares.
Para o secretário Theophillo, é importante dar uma salvaguarda jurídica aos militares que atuam em GLOs. “Tem esse fator que o presidente diz: o soldado mata uma pessoa em um combate dentro do Morro do Alemão, dentro do Complexo da Maré, e fica respondendo depois que dá baixa sem um respaldo jurídico”, reclama ele, que é contra o emprego de militares em operações de Garantia da Lei da Ordem.
“Forças armadas não foram feitas para estar em GLO. Isso é para Polícia Militar, para órgão de segurança pública. O Exército foi feito para matar. Nós fomos preparados para ir para uma guerra, então quem está do outro lado é inimigo, eu não estou trabalhando com população amiga. Então o soldado militar tem outra cabeça”, disse.
Bolsonaro promete indulto a policiais que mataram
O presidente Jair Bolsonaro disse vai perdoar a pena de policiais que mataram em serviço e, segundo ele, estão “presos injustamente”. No final de agosto, Bolsonaro disse que o indulto natalino que irá editar neste ano vai incluir policiais envolvidos em casos rumorosos de violência policial, como o massacre de Eldorado dos Carajás, no Pará; a invasão no presídio do Carandiru, em São Paulo; e o sequestro do ônibus 174, no Rio de Janeiro. Para o presidente, muitos policiais foram condenados por “pressão da mídia”.
A concessão de indulto para estes casos, porém, esbarra em uma série de impedimentos legais. O deputado Fábio Trad (PSD-MS) ressalta que o indulto não pode perdoar crimes hediondos, como é o caso de policiais condenados nos casos de Eldorado dos Carajás. Para ele, a declaração de Bolsonaro sobre o indulto é impulsiva. “É mais um ímpeto tresloucado”, diz.
Para indultar policiais condenados nestes casos, segundo Trad, Bolsonaro precisaria editar um decreto permitindo o indulto em caso de crimes hediondos, mas nesse caso todos os condenados por esses crimes teriam direito ao benefício. Isto incluiria soltar condenados por crimes como homicídio qualificado, latrocínio, estupro, entre outros. Segundo o deputado, o custo político seria muito grande e o presidente teria dificuldade para explicar a decisão para sua base eleitoral.
Eduardo Bolsonaro defende a proposta do pai. “Uma dica, quando um policial estiver armado, não vá para a briga, vá tomar uma cerveja”, ironizou o parlamentar, acrescentado que as condenações aos policiais envolvidos nos massacres foram injustas.
“O presidente não está propondo indulto, ele está criando uma peça publicitária para dialogar com algo que não ajuda a polícia, e sim atrapalha”, disse o deputado Marcelo Freixo (PSOL-RJ). “Essa propaganda é contra a polícia, porque valoriza a ideia de uma polícia violenta, contra uma polícia eficaz. Tem um estímulo da polícia violenta, ilegal, quando na verdade deveria ser ele o promotor de uma polícia com mais equipamento, com mais qualidade, com mais respeito, com carreira”, completou o deputado.
O que diz a legislação sobre indulto
A Constituição dá ao presidente da República a competência exclusiva para definir as regras para concessão de indulto. Mas, segundo o advogado especialista em direito penal militar Eduardo Miléo, há problemas técnicos na promessa de Bolsonaro.
“No caso de Carandiru, por exemplo, o indulto só extingue punibilidade quando já há trânsito em julgado”, explica o advogado. O caso envolvendo o massacre no Carandiru, que em 1992 deixou 111 mortos após uma rebelião, ainda não teve todos os recursos julgados.
Miléo também ressalta que o caso de Eldorado de Carajás envolve condenações por crimes hediondos. “A lei proíbe indulto, graça e anistia para esse tipo de crime”, ressalta o advogado. O caso ocorreu no Pará em 1996, quando 19 trabalhadores rurais sem terra foram mortos em confronto com a Polícia Militar. Mais de 150 policiais, armados de fuzis, com munições reais e sem identificação nas fardas, foram destacados para interromper a caminhada que o MST fazia até Belém.
O especialista também destaca que, no caso dos envolvidos no sequestro do ônibus 174, os policiais foram absolvidos. O caso ocorreu em 2000, quando um sequestrador tomou conta de um ônibus da linha 174 e fez os passageiros reféns por quase cinco horas. O sequestrador tentou sair do ônibus usando uma passageira como escudo, e um policial tentou atirar nele, mas errou o tiro e acertou na refém, que morreu no local.
Miléo destaca, ainda, que o indulto com foco nestes policiais pode ter efeitos colaterais, uma vez que as regras estabelecidas no indulto valem para todos os presos. “Se ele fizer alguns critérios que alberguem esses policiais, se isso for aceito pelo STF, pode ser estendido a outros tipos de pessoas condenadas”, ressalta.
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