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O objetivo do Encontro de Presidentes da América do Sul, ocorrido nesta terça-feira (30) no Brasil, foi debater formas de aumentar a integração regional no subcontinente. A única proposta prática aprovada foi criar um grupo de trabalho para continuar discutindo. Mas Lula revelou como quer que o processo aconteça: pela reestruturação da União de Nações Sul-Americanas (Unasul), organismo que já fracassou no passado por ter uma grande influência ideológica de esquerda.
A Unasul foi fundada em 2008 por doze presidentes da época, a maioria deles de esquerda, entre os quais Cristina Kirchner (Argentina), Evo Morales (Bolívia), Michelle Bachellet (Chile), Rafael Correa (Equador), Hugo Chávez (Venezuela) e o próprio Lula.
Os integrantes do órgão usaram o fórum para discutir a utilização de recursos e mecanismos para aumentar o realinhamento social, econômico e político dos países-membros com um viés predominante de esquerda.
Mas com o passar dos anos, políticos mais alinhados com a agenda de direita foram chegando à Presidência de diversos países sul-americanos e deixaram de tratar a Unasul como uma prioridade.
Segundo o analista Paulo Roberto da Silva Gomes Filho, mestre em ciências militares pela Escola de Comando e Estado Maior do Exército, a alternância natural de poder cria em diversos países da região um efeito de "pêndulo ideológico" que dificulta sua integração internacional.
Esse processo em si já tornaria mais complicada a adesão dos países a um bloco supranacional que não tivesse uma ideologia específica. Mas a Unasul tinha ao menos a fama de ser um bloco esquerdista, o que levou o bloco ao colapso.
O declínio do grupo teve início em 2016, quando Michel Temer assumiu a presidência do Brasil. À mesma época, Maurício Macri assumia a Argentina; o Partido Colorado, o Paraguai; Pedro Pablo Kuczynskin se tornava presidente do Peru e Sebastian Piñera se candidatava para ser eleito no Chile em 2018. Ou seja, governos de esquerda davam lugar a governos de direita.
Em paralelo, a Unasul sofria com e a falta de recursos financeiros e com dívidas deixadas mesmo por governo esquerdistas, a ponto da sede do organismo no Equador ser fechada por falta de pagamento dos funcionários.
Em 2019, o ex-presidente Jair Bolsonaro, oficializou a retirada do Brasil do organismo. Ele afirmou na época que o grupo vivia uma "crise prolongada". Logo em seguida, Bolsonaro anunciou que o país passaria a fazer parte de outro organismo, o Foro para o Progresso e Desenvolvimento do Sul (Prosul), que teria pautas mais alinhadas ao seu governo. A iniciativa também visava a integração regional, mas com uma apresentação mais à direita.
Neste ano, Lula assinou no dia 6 de abril um decreto reintegrando o Brasil à Unasul, que ainda existe no papel. O Ministério das Relações Exteriores disse que a medida faz parte da agenda de retomada de suas principais alianças internacionais.
Lula diz que tem experiência para orientar reestruturação da Unasul
Após o encontro de chefes de Estado em Brasília na terça-feira (30), Lula disse em entrevista à imprensa que não quer manter a Unasul da forma que ela foi criada, porque muitos governos atuais não participaram de sua criação.
O que ele não mencionou no discurso é que a configuração atual dos governos da América do Sul também é predominantemente de esquerda, como na época da criação da Unasul em 2008.
Mas as falas do presidente brasileiro não surtiram efeito prático. O Consenso de Brasília, o documento elaborado na reunião que aponta os assuntos nos quais os países convergiram na reunião não menciona a Unasul. Segundo o jornal Folha de S.Paulo, Uruguai, Paraguai e Chile teriam vetado a menção do organismo no consenso.
O presidente uruguaio Luis Lacalle Pou, de direita, não escondeu sua oposição. O mandatário chileno, Gabriel Boric, que é de esquerda, chegou a confrontar Lula, desmentindo a versão do brasileiro de que a ditadura na Venezuela seria apenas uma narrativa. Para que seu país entrasse na Unasul, Boric precisaria de aprovação do Parlamento de seu país, que é controlado pela direita.
Para o doutor em ciências sociais e pesquisador da Fundação Araporã Rogério Pereira de Campos, para funcionar, esse modelo de grupo de integração regional (Unasul ou Prosul) ainda demanda de um "compromisso de longo prazo que possa se afastar de instabilidades políticas dentro da América do Sul", inclusive pautas ideológicas.
O grupo também deve ser inflexível às "variações de humor dentro de cada membro", segundo Campos. Ou seja, para que avance, o propósito do grupo como um todo deve sobressair o interesse individual de cada nação.
"Hoje a falta de clareza sobre projetos e ideais para com a população do subcontinente dificulta o avanço da Unasul. Sem demonstrar de forma clara quais seriam os benefícios e compromissos de cada país, é difícil enxergar o avanço desse bloco", pontua Campos.
Sem ideologia, Unasul poderia beneficiar América do Sul
Uma maior integração regional pode ser positiva para a retomada econômica brasileira, segundo a avaliação dos analistas consultados pela Gazeta do Povo. "O país pode sair da estagnação e capitalizar possibilidades para liderar projetos econômicos combinados", explica Campos. Especialistas entendem que, em teoria, a Unasul pode ser uma oportunidade para o Brasil se mostrar como uma grande e potente liderança ao resto do mundo.
"É uma tentativa de se reforçar a integração sul-americana e aumentar o protagonismo do país na América do Sul", diz Paulo Filho. Ainda que em um contexto geopolítico diferente que na primeira década do século 21, quando surgiu a Unasul, a posição do Brasil no grupo pode somar "pontos" com outros blocos – além de fortalecer os países sul-americanos.
"Na medida em que a disputa entre China e Estados Unidos se intensifica no subcontinente, surgirão demandas que podem ser melhor respondidas em grupo. Não na defesa dos interesses de potências extrarregionais, mas sim, no interesse maior dos países da própria região”, pontua Paulo Filho.
Mas o analista diz que na prática não há motivos para criar grandes expectativas em relação à Unasul. "Não se deve esperar que esse tipo de organismo tenha muito destaque em decisões dos países. Ele serve como fórum de coordenação, de lançamento de propostas, de discussão, mas não como emissor de decisões vinculantes. Os blocos econômicos [como Mercosul e Comunidade Andina], por sua natureza, são capazes de determinar práticas comerciais, por exemplo, que impactam diretamente as relações entre os países", pontua.
Lula diz que bloco da América do Sul deve se inspirar na União Africana
Em sua concepção, a Unasul teria sido inspirada na União Europeia, que possui um Parlamento e uma Comissão (órgão executivo) capazes de tomar decisões vinculantes. Ou seja, os países têm que cumprir de fato as deliberações criadas em conjunto.
Mas esse não é o caso da Unasul. Lula mencionou alguns aspectos da União Europeia que podem ser copiados, como a facilitação do intercâmbio de estudantes e a desburocratização dos processos de importação e exportação entre os países do bloco.
Também defendeu a adoção de uma moeda comum, não necessariamente nos moldes do Euro (na Europa a maioria dos países abandonou suas moedas locais). Ele sugeriu a criação de uma moeda comum que facilitasse as operações comerciais entre os países do bloco sem o intermédio do dólar para a conversão de valores.
O presidente brasileiro disse que a Unasul deveria seguir o modelo da União Africana e não o da União Europeia.
O bloco africano foi criado no início dos anos 2.000 com um objetivo de integração econômica. Mas não conseguiu implantar uma moeda comum e na prática tem também um papel militar de mandar forças de paz para países africanos que sofrem com revoluções e conflitos armados. Lula não explicou em quais aspectos a União Africana deveria ser copiada.
Brasil quer aumentar cooperação militar com países vizinhos
Em seu discurso na abertura do Encontro de Presidentes da América do Sul, Lula disse que deseja aumentar a cooperação militar com países vizinhos, inclusive com a Venezuela.
Sua ideia é usar a Unasul (possivelmente por meio de seu órgão Conselho de Defesa Sul-Americano) para melhorar a formação e o treinamento de militares, reforçar a doutrina militar e criar uma política de defesa.
Segundo Paulo Filho isso não significa que será feita uma aliança militar entre os países-membros. Tal aliança não teria sentido porque o subcontinente não sofre de uma ameaça militar comum.
Mas a cooperação militar (que já ocorrer por meio de tratados bilaterais) poderia melhorar as capacidade de defesa de cada país e melhorar o combate ao crime organizado, especialmente o tráfico de drogas.