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Um impasse entre a Câmara e o Senado sobre a tramitação de medidas provisórias (MP) está dificultando a consolidação da base de apoio do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e tornando ainda mais incerta a sua governabilidade.
A causa do imbróglio está na resistência do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), em acatar a proposta do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG) para que as MPs voltem a ser apreciadas por comissões mistas das duas Casas, um rito que foi interrompido durante a pandemia. O impasse dá sinais de que pode se delongar por ao menos mais uma semana, aumentando as dores de cabeça dos líderes governistas no Congresso e articuladores do Planalto.
De 1º de janeiro até agora, nove foram editadas pelo governo petista, incluindo a retomada da cobrança de impostos sobre combustíveis e pagamentos do Bolsa Família, que aguardam na fila para começar a tramitar. O estoque acumulado inclui ainda outras 22 MPs do governo de Jair Bolsonaro.
Ainda em fevereiro, a Mesa Diretora do Senado definiu como devem funcionar as comissões mistas de MPs assinadas por Lula, mas a decisão ainda precisa do aval da Câmara para vigorar. Até dezembro, no governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), os textos eram emendados e votados diretamente nos plenários das Casas. Lira reagiu mal à decisão de Pacheco de adiantar-se sobre o retorno do rito normal sem antes consultá-lo.
A solução para o problema exigirá esforço extra do Palácio do Planalto. O presidente da Câmara avisou que ainda discutirá o tema com líderes partidários por mais uma semana, ressaltando que não há risco de perda de validade das MPs.
Como Lira não tem prazo para colocar a minuta preparada pelo Senado para ser apreciada pela Mesa da Câmara, senadores já acenam com a chance de judicializar a questão. Na prática, o gesto significa uma dose extra de tensão para os partidos da base, cada vez mais dependentes do Centrão. As articulações terão de se intensificar para evitar danos maiores aos planos de Lula.
Em reforço ao poder de Lira para negociar com o Planalto, cabe à Câmara nesta legislatura a indicação de relatores das MPs, em desfavor do Senado. Enquanto isso, as MPs continuam indo para a coordenação de comissões mistas, embora ainda nenhuma tenha sido criada. A última a ser enviada foi a MP 1164/2023, que recria o Bolsa Família.
Negociações podem dominar agenda do Congresso
Eduardo Galvão, diretor da multinacional de relações públicas BCW no Brasil e professor de Relações Institucionais do Ibmec-DF, confirma que as tensões em torno das comissões de MPs ampliam preocupações sobre a governabilidade petista. Isso porque, segundo ele, a composição da base de apoio no Congresso “ainda não está definida”, o que aumenta as incertezas.
Galvão ressalta que ainda há muitos espaços a serem preenchidos nas comissões temáticas e no segundo e terceiro escalões da Administração, fazendo com que o tabuleiro de negociações siga armado. Além disso, a deputada federal Gleisi Hoffmann, presidente do PT, maior partido governista, tem feito pesadas críticas à atuação de ministros, o que agrava a situação.
Contudo, o especialista entende que o governo poderá se beneficiar do fato de que algumas MPs são de interesse não só do Executivo, mas também de parlamentares do Centrão, visto que envolvem a criação de cargos.
Neste sentido, a recriação da Fundação Nacional de Saúde (Funasa) e a formação ministerial são prioridades também do Legislativo. Por isso, há o risco de o semestre legislativo se resumir à composição de colegiados e às questões econômicas mais urgentes, deixando de lado temas específicos.
Essa percepção é reforçada pelo prazo de validade estendido das MPs, que pode chegar a 120 dias, tomando boa parte do tempo de negociações e votações. Por isso, há o temor de decisões do Congresso se concentrem na tramitação de MPs em comissões e deliberações em plenário, esvaziando as comissões permanentes e gastando a metade do ano nesse processo.
Lira quer "caminho alternativo"
Como as medidas começam a ser votadas na Câmara, o rito acelerado durante a pandemia tornou Lira o ator mais influente, tanto sobre os textos em si quanto sobre os seus ritmos de tramitação.
A recusa dele em ceder fica mais temerária quando se sabe que começos de governo são marcados por grande número de medidas provisórias. Com elas, Lula recriou ministérios, transferiu o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) do Banco Central ao Ministério da Fazenda e mudou a regra de desempate de decisões do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) em favor da União.
A Constituição obriga a análise de MPs por comissões mistas, com debates, audiências públicas e propostas de alteração do texto por congressistas. Mas Lira avisou, no começo da legislatura, que aposta em um “caminho alternativo”. A tendência, dizem parlamentares nos bastidores, é de o rito normal passar a valer apenas para as MPs editadas somente após se firmar o acordo de Câmara e Senado.
“Diante do impasse entre Casas legislativas, não se pode descartar que a polêmica seja levada mais uma vez ao STF, visto que em 2012 o tribunal já se posicionou a favor do cumprimento do dispositivo constitucional que prevê a análise de MPs pelas comissões mistas”, alerta Miguel Gerônimo da Nóbrega Netto, professor de processo legislativo da Fundação Getulio Vargas. Ele sublinha que o Supremo liberou a análise direta pelos plenários em 2020 vinculada ao estado de calamidade da pandemia.
O embate em torno das MPs ocorre quando o poder de Lira também avança no arranjo dos blocos e partidos na Câmara.
As maiores bancadas na Casa são o PL, com 99 deputados, e a federação PT-PV-PCdoB, com 81, desenhando a polarização entre governo Lula e oposição. Mas analistas lembram que a fusão ou federação do PP de Lira com o União Brasil, atualmente em marcha, consolidará a dominância do Centrão, também definida pelo controle sobre emendas ao Orçamento da União.
A conclusão dos analistas é que o governo do PT terá de usar o seu poder de convencimento para viabilizar seus planos no menor custo político possível, mas, por enquanto, perde tempo e capital de influência ao insistir no discurso de enfrentamento à gestão passada.