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As muitas indecisões e contradições que marcam o governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) acabaram por tornar o seu terceiro mandato na Presidência da República especialmente ambíguo e enigmático. Nesses nove meses desde a sua posse, Lula manteve um discurso de confronto com adversários nas urnas, ficando ainda mais distante do perfil conciliador que alegadamente queria emplacar. Em paralelo, as suas agendas pessoal e de mandato produziram uma série de imbróglios no relacionamento com o Congresso, nas relações internacionais do país, na política econômica e até mesmo na condução de conhecidas bandeiras da esquerda brasileira.
Para analistas e políticos consultados pela Gazeta do Povo, a primeira e maior dificuldade para Lula conferir coerência ao seu atual mandato e afastar as incertezas que o cercam está na construção de uma base parlamentar sólida. Num momento em que o Legislativo ganha força frente ao Executivo, Lula se apresenta como líder principal no campo esquerdista e não consegue firmar uma aliança efetiva com a parte da maioria conservadora do Parlamento. Mesmo cedendo espaços a partidos hipoteticamente rivais (PP e Republicanos) em ministérios, autarquias, estatais e bancos públicos, o governo continua vulnerável aos humores e às ambições do Centrão.
A percepção de que o Lula 3 é, na prática, um governo de “nem uma coisa nem outra” irrita não apenas a oposição, mas também aliados históricos, como o PSB, além de estimular o apetite de adesistas e a ousadia do “balcão da governabilidade”.
Nesse sentido, o cientista político Ismael Almeida lembra que a ida do PP e do Republicanos para a Esplanada dos Ministérios ainda não foi submetida a um “teste de fogo”, capaz de avaliar se a reforma ministerial resultou em alguma solidez para a base parlamentar do Planalto. “Tudo agora depende do tema da pauta. Se for, por exemplo, matéria na qual o Judiciário tenha tomado dianteira, o governo não conseguirá deter a revolta”, alerta.
Para Almeida, os líderes partidários parecem dispostos a reafirmar o peso do Congresso para além da sua relação com o Executivo. Assim, a tendência é de Lula colher frutos da sua "base alugada" por meio de cargos apenas em pautas econômicas, mesmo assim com ressalvas.
“Sendo a vulnerabilidade ao Centrão uma falha estrutural do sistema político, independentemente de quem seja o presidente da República, o que faz a diferença é algo sutil, como demonstrar fraqueza quando pressionado. Em público, Lula tenta mostrar domínio da situação e até resistência às cobranças no Congresso, mas presume-se que se fizer o jogo pragmático nos bastidores, pode ser bem sucedido e colher os resultados esperados”, observa.
Polarização política acentua as contradições de Lula
O professor de relações governamentais e políticas públicas do Ibmec-DF Arthur Wittemberg também enxerga dificuldades de Lula firmar face definitiva para o terceiro mandato em razão da mudança de contexto, se comparado ao de 20 anos antes, quando assumiu seu primeiro governo. “O Lula 3 lida com um mundo bem mais complexo. Numa democracia polarizada, o país enfrenta o desafio de equilibrar demandas distintas, tanto internas quanto externas, não raro antagônicas. É nesse cenário que as ambiguidades do presidente devem ser situadas”, avalia.
O primeiro desafio, segundo Wittemberg, é equacionar o relacionamento de um Executivo mais à esquerda com um Legislativo mais à direita. Ao atrair para o processo decisório representantes do Centrão, Lula aposta numa estratégia que assegure maioria para votações importantes, até mesmo para pautas do seu viés ideológico. “A imprevisibilidade, contudo, ainda deve persistir por meses. No plano administrativo, as recentes trocas na Esplanada devem se desdobrar por mais algum tempo, com trocas de equipes. E uma esperada melhora da transparência deve ocorrer”, diz.
A comparação do Lula 3 com os Lulas 1 e 2 tem na economia o seu maior contraste. Sua equipe econômica, capitaneada pelo ministro Fernando Haddad (Fazenda), promete equilibrar as contas públicas, zerando o déficit em 2024. Com total desconfiança do mercado, a promessa seria honrada por medidas que dependem do Congresso e voltadas a aumentar a receita de impostos, sem qualquer moderação sobre a curva ascendente de despesas. O objetivo final, apontam especialistas e políticos, é apenas a busca de espaços fiscais para investimentos de alcance mais imediatista e eleitoreiro. Tudo sem modelo claro de governança, oscilando abordagens.
Agenda ambiental e apoio do Ocidente têm sinais invertidos
No plano das relações internacionais, o terceiro mandato de Lula reúne as maiores pretensões do presidente e, também, claras contradições dele, relacionadas ao apoio do Ocidente e à agenda ambiental.
A busca de recursos para a conservação da Amazônia para solucionar o drama climático conflita com o desejo de investir na exploração de petróleo na Foz do Rio Amazonas – uma pauta que enfrenta oposição de integrantes do próprio governo, como a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva. No encontro do Brics (grupo que reúne Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) na África do Sul, Lula criticou ainda o “neocolonialismo verde” dos países desenvolvidos, rechaçando sanções em nome da preservação florestal.
Nessa questão também há a pressão de outras demandas dos estados do Norte por desenvolvimento econômico que contrariam pautas ambientais e indígenas.
Por outro lado, ao louvar e patrocinar ditadores, o presidente esbarra em posições da União Europeia e dos Estados Unidos. Não raro, suas declarações favoráveis a iniciativas de Rússia e China, que atravessam um momento tenso na sua relação com o Ocidente, acabam forçando a emitir desmentidos, recuos e relativizações. A Rússia foi isolada internacionalmente pelo Ocidente após invadir a Ucrânia em 2022 e a China vem travando uma guerra comercial com os Estados Unidos desde 2018.
Para Juan Carlos Gonçalves, cientista político e diretor-geral da entidade civil Ranking dos Políticos, o presidente está empenhado em construir uma ampla base de apoio para o seu terceiro mandato, mas, ao fazê-lo, provoca confusão e revela falta de clareza sobre a direção que propõe para o país.
“É crucial reconhecer que 2023 é uma época bem diferente de 2003 e de 2007, quando se iniciaram as primeiras gestões petistas. O contexto social, político e econômico mudou muito e enfrentamos desafios significativos para manter relações nacionais e externas equilibradas e coerentes”, diz.
Ele aponta como uma prova clara da falta de orientação de Lula na sua diplomacia: as viagens controversas, como a visita a Cuba, onde enfrentou questões relacionadas ao calote de dívidas, e as críticas que fez ao embargo econômico dos EUA à ilha logo na sequência, no plenário das Nações Unidas, em Nova York. Esses sinais invertidos têm sido apontados por líderes conservadores do Congresso americano.
Metas financeiras e ambientais de Lula despertam dúvidas
Dentre as muitas contradições, Gonçalves destaca que um governo autointitulado de defensor do meio ambiente adota políticas de subsídios para veículos movidos a combustíveis fósseis, o que levanta questionamentos sobre o real comprometimento com a sustentabilidade ambiental.
Além disso, apesar de expressar a intenção de alcançar déficit zero nas contas públicas em 2024, a gestão petista demonstra ao mesmo tempo uma disposição para gastos excessivos. “As contradições são numerosas e carecem de uma voz coesa e coerente dentro do governo que possa organizar essas mudanças constantes de posições, proporcionando discurso claro e sem ambiguidades”, diz o analista.
As contradições do Lula presidente se chocam frontalmente com as falas do Lula candidato em 2022. Ele defende a representação da diversidade no poder até em nível global, mas nomeia homens brancos para o Supremo Tribunal Federal (STF) e retrocede na composição ministerial, substituindo mulheres por homens. Essa postura já provocou reações públicas de desagrado de apoiadores do presidente.
Lula prometeu transparência, mas tem dificultado o acesso à informação de dados públicos, como cartão corporativo e viagens internacionais, além de propagar desinformação. Por fim, preconizou a reconciliação nacional, mas seguiu propagando discursos de ódio.