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Proposta de Alexandre de Moraes

Indenização de terras a agricultores não resolve questão indígena no Brasil

Indígenas acompanham julgamento sobre marco temporal no plenário do STF. Voto de ministro prevê indenização para agricultores.
Indígenas acompanham julgamento sobre marco temporal no plenário do STF. Voto de ministro prevê indenização para agricultores. (Foto: Carlos Moura/STF)

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A retomada do julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF) sobre o marco temporal para demarcação de terras indígenas, na última quarta-feira (7), levantou a questão da indenização pelas terras dos chamados proprietários de boa-fé. Em seu voto, o ministro Alexandre de Moraes sugeriu um “meio-termo”, reconhecendo os direitos indígenas, mas prevendo indenização também pelas terras que podem vir a ser desapropriadas. Atualmente, proprietários que tenham suas áreas demarcadas como terras indígenas têm direito somente à indenização pelas benfeitorias. A proposta de Moraes, porém, não foi bem recebida - nem por indigenistas, nem por agricultores.

O voto foi proferido durante a retomada do julgamento sobre o caso, na semana passada, e terá repercussão geral para as demarcações de terras indígenas no país. Sendo assim, a definição desse caso vai uniformizar a interpretação da Constituição e também deve nortear as decisões dadas nas instâncias inferiores do Judiciário.

Moraes foi contrário à tese do marco temporal, que estabelece o dia da promulgação da Constituição Federal, 5 de outubro de 1988, como marco para a possibilidade de que indígenas requeiram as áreas que habitavam.

Apesar de ser favorável aos indígenas, o voto de Moraes foi recebido com ressalvas por entidades ligadas a eles. Do outro lado, representantes de agricultores que podem perder suas terras nos processos de demarcação também viram problemas nesse voto.

Para Moraes, se a tese fosse adotada, seria impossível a demarcação de terras de uma comunidade indígena retirada à força do local antes da promulgação da Constituição. O ministro reconheceu ainda que a questão é de difícil solução e destacou que nenhum país conseguiu solucionar o problema até o momento. “É uma questão que vem afetando a paz social por séculos sem que haja, até hoje, um bom e efetivo modelo a ser seguido. Nenhum país do mundo conseguiu resolver de forma plena e satisfatória esse problema”, disse o ministro durante o seu voto.

O voto contrário ao marco temporal beneficia os povos indígenas. No entanto, o ministro propôs uma tese parcialmente diversa dos votos já proferidos, sugerindo o que foi chamado de “meio termo”. A tese de Moraes prevê que, se for reconhecida a ocupação tradicional sobre terras que tenham uma cadeia de domínio legítima, os proprietários não podem ser prejudicados. Nesses casos, a União deverá pagar indenização sobre o valor total dos imóveis, e não apenas sobre as benfeitorias.

Após esse voto, o ministro André Mendonça pediu vista do processo e a continuação julgamento foi suspensa mais uma vez. Foi a sexta vez que a análise do caso na Suprema Corte acabou interrompida. Mendonça tem agora até 90 dias para devolver o processo para julgamento. Até o momento, o caso já tem três votos proferidos: dois contra, dos ministros Edson Fachin e Alexandre de Moraes, e um a favor à tese do marco temporal, do ministro Nunes Marques.

Representantes de agricultores dizem que indenização de Moraes é um “jabuti” e gera “confusão” 

Lideranças de municípios catarinenses também acompanharam a retomada do julgamento no plenário do STF. Elas são dos municípios de Saudades e Cunha Porã, localizados no Oeste catarinense, que tem uma área de cerca de 2,7 mil hectares requerida por indígenas de povos Guarani.

Na visão do prefeito de Saudades, Maciel Schneider (Republicanos), o voto e a proposta de estabelecer um “meio-termo” indicam que o ministro legislou sobre o tema. “Ele [ministro Alexandre de Moraes] começou a legislar [durante o voto] dizendo que não concorda com o jeito que foi feita a Constituição, que devia ter sido feito diferente”, pontuou.

Schneider opinou ainda que a indenização das terras, proposta no voto de Moraes, não resolve o problema. “O que nós vemos aqui é que o pessoal não quer sair das terras, mesmo indenizados, recebendo um valor pelas terras. O pessoal aqui reagiu com muita revolta [ao voto do ministro Alexandre de Moraes]”, disse o prefeito.

Leocir Roque Dacroce, advogado do Movimento em Defesa da Propriedade e Dignidade (DPD), que reúne agricultores de Saudades e Cunha Porã, disse que o voto de Moraes criou confusão e um “jabuti” na questão do marco temporal com a previsão da indenização aos proprietários de boa-fé. “O que ele [ministro Alexandre de Moraes] fez foi uma tentativa agradar a gregos e troianos, mas acabou criando mais uma confusão, um jabuti sem tamanho. Porque ele disse que isto poderia ser feito, mas não disse quem vai pagar ou de onde vai sair o orçamento para pagar. Também não foi dito quanto tempo eles terão que esperar para receber pelas terras, por exemplo”, criticou o advogado.

No município de Saudades, a demarcação de uma terra indígena pode afetar aproximadamente 50 famílias, as quais têm, em média, 10 hectares cada uma. De acordo com o prefeito, as terras são todas escrituradas há cerca de 100 anos e a indenização não resolve o problema. “Os registros foram feitos na época em que o estado de Santa Catarina concedeu as terras para que uma companhia colonizadora, a Companhia Sul Brasil, vendesse os títulos. Todas as terras aqui têm escrituras e os agricultores compraram as terras desta companhia. São de pessoas que se criaram aqui e já estão na terceira ou quarta geração morando nas mesmas áreas”, destacou Schneider.

Dacroce pontuou que já houve tentativas de negociações, mas os agricultores não demonstraram interesse em sair de suas terras, mesmo com a possibilidade de indenização. “Já tivemos várias propostas de fazer permutas, por exemplo. Os nossos agricultores não têm essa intenção, porque as nossas áreas ali foram adquiridas na década de 20, e todas as áreas foram escrituradas” reforçou o advogado das famílias de agricultores.

A preocupação com o destino das famílias também foi ressaltada pelo advogado. “Muitas pessoas que vivem nessas áreas já têm mais de 60 e até 80 anos. Mesmo supondo que ganhem bem pelas suas pequenas áreas de terra, com as indenizações, eles farão o quê? Se mudarão para a cidade? Se sim, farão o que lá? Vão se dedicar a aprender um novo ofício nessa altura da vida?”, questionou.

Sobre as indenizações propostas por Moraes, o secretário de Agricultura de Santa Catarina, Valdir Colatto, estima que o custo - apenas na terra indígena a ser demarcada em Saudades e Cunha Porã - seja de cerca de R$ 500 milhões. Atualmente, há nove áreas judicializadas em Santa Catarina.

“Ele [ministro] não imagina o tamanho da conta. Não há dinheiro, no Brasil ou no mundo, que pague essas indenizações. Se o valor em uma área de Santa Catarina é esse, imagina no Brasil todo”, disse o secretário Colatto, que já foi deputado federal e superintendente estadual do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).

Colatto afirmou ainda que a proposta pode gerar uma reforma agrária inversa e criticou o governo do PT. “Outra questão é que vão fazer uma reforma agrária inversa. Ao invés de assentar agricultores, vão tirar eles das terras. O PT disse que vai cuidar dos pequenos agricultores, mas quer desapropriar, tornando-os sem terras”, disse Colatto.

SC busca aprovação do marco temporal; governador se reuniu com Pacheco

A Terra Indígena Ibirama-La Klàño, do povo Xokleng, que fica no Alto Vale do Itajaí, em Santa Catarina, é a área que está no centro da ação que está sendo julgada no STF. A ação foi movida pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) contra o atual Instituto do Meio Ambiente de Santa Catarina (IMA) - antigamente denominado Fundação do Meio Ambiente (Fatma) -, após a ação de reintegração de posse de parte da Reserva do Sassafrás ajuizada pelo estado depois da invasão da área por indígenas, em 2009, ter sido julgada procedente. Neste caso, o estado de Santa Catarina defende a tese do marco temporal. Por isso, o governo de Santa Catarina tem se envolvido diretamente no assunto.

Nesta terça-feira (13), o governador de Santa Catarina, Jorginho Mello (PL) esteve em Brasília para conversar com o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), e pedir a votação do projeto de lei que trata do marco temporal. “Estou vindo pessoalmente tratar deste assunto, pois entendo que é um caso que merece extrema atenção do Governo de Santa Catarina, pois pode impactar a vida de milhões de catarinenses”, enfatizou o governador.

Pacheco ouviu os apelos e destacou que não tem apego de nenhum lado e que entende que “é preciso máximo diálogo para que o PL seja efetivo e que os impactos sejam os menores possíveis, tanto para produtores rurais quanto para os indígenas”.

Bancada do agro comemora pedido de vista e quer votação no Senado 

Parlamentares que compõem a bancada do agronegócio comemoraram o pedido de vista feito por Mendonça no julgamento sobre o marco temporal. Para eles, o prazo de até 90 dias para a retomada da análise na Corte garantirá o tempo necessário para que o projeto de lei sobre o marco temporal, que já passou na Câmara, seja também aprovado no Senado.

Para o deputado federal Evair de Melo (PP-ES), o projeto de lei que prevê a fixação do marco temporal de 5 de outubro de 1988 para a demarcação de terras indígenas, que está há 26 anos sendo debatido no Congresso Nacional, fomenta a pacificação no campo.

“Precisamos de paz no campo no Brasil. O Congresso Nacional precisa avançar no processo de regulamentação da lei que prevê a demarcação de terras no Brasil. A aprovação do marco temporal na Câmara representa a vontade de boa parcela dos brasileiros em solucionar essa questão antiga. Independente do julgamento no STF, precisamos seguir com a análise do projeto de lei no Parlamento. A nossa parte é legislar e [a do] Supremo [é] analisar a constitucionalidade. Somos poderes independentes. É inaceitável que essa proposta empaque por mais tempo. Estamos buscando mais segurança jurídica ao consolidar essa lei. O objetivo não é acabar com as reservas indígenas existentes, mas impedir que falsos índios se apropriem de terras alheias, atuando de má-fé”, explicou o deputado federal capixaba.

O deputado federal Zé Trovão (PL-SC) comemorou o "novo prazo" para que o Senado avalie o projeto de lei sobre o tema. “O pedido de vista [no STF] é muito importante, pois nós vamos ganhar mais tempo para aprovar no Senado o PL 490 [do marco temporal]. Vamos dar, definitivamente, aos campos brasileiros paz, tranquilidade e segurança jurídica. Estou muito feliz e confiante com essa notícia”, disse o deputado catarinense em vídeo publicado em sua conta no Twitter.

Voto contrário com “meio termo” da indenização também não agradou indigenistas, mas ministério diz que foi "avanço"

Apesar de ser contrário ao marco temporal, o “meio termo” proposto pelo ministro Alexandre de Moraes foi recebido com certa rejeição por organizações ligadas aos povos indígenas. A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) avaliou como “problemático” o voto proferido pelo ministro na retomada do julgamento pelo STF.

Em nota publicada em seu site oficial, a organização disse que o voto “meio termo” pode trazer insegurança jurídica para os indígenas. “O que mais nos preocupa neste voto do ministro é a indenização prévia. Isso quer dizer que as pessoas podem pagar pelo território e já adentrar nele. Isso pode gerar confusão interna entre os parentes e uma insegurança jurídica. Não se concilia direitos indígenas. Não tem meio termo para nós”, disse Maurício Terena, advogado indígena e coordenador jurídico da Apib.

Já o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) evidenciou a busca por “paz social” pontuada por Moraes, mas enfatizou que não retirar direitos dos povos originários é uma causa indiscutível. “Em seu voto, o ministro Alexandre de Moraes rechaçou o marco temporal, trouxe toda questão da violência contra as populações indígenas historicamente, lembrando 1865 com a Guerra do Paraguai e a promessa do Imperador, e a necessidade de encontrar um caminho de paz social. [...] Não retirar o direito dos povos originários é uma causa indiscutível”, disse dom Roque Paloschi, presidente do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e arcebispo de Porto Velho (RO).

Em contrapartida, o Ministério dos Povos Indígenas (MPI) definiu o voto de Moraes como um “avanço” em nota publicada no site oficial após a sessão de julgamento. “A expectativa do MPI é que o processo seja retomado o mais rapidamente possível e que o STF exerça sua função de guardião da Constituição Federal e encerre de vez essa tese inconstitucional de que a data de promulgação da Carta Magna é considerada a data limite para aferição do direito dos povos originários sobre sua terra”, pontuou o MPI.

A ministra dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara, acompanhou o julgamento do marco temporal no plenário do STF, junto de cerca de 50 indígenas. O STF informou que as lideranças indígenas vieram do Nordeste, do Sudeste, do Sul e do Norte do país, entre eles representantes da Terra Indígena Raposa Serra do Sol (RR).

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