As falas da deputada Silvia Waiãpi (PL-AP) destoam da maioria dos discursos de lideranças indígenas. Na semana que comemora o Dia dos Povos Indígenas, a parlamentar foi crítica ao afirmar que o discurso “vitimista de 1.500” não deve prevalecer e que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) vê os indígenas como figura recreativa para fotos e para os interesses internacionais do seu governo.
"O indígena, para ele [Lula], só serve se estiver segregado e isolado, dependente, servindo apenas de figura recreativa para fotografias, de interesses internacionais, que acabam sendo utilizados depois, como uma moeda de troca sobre um sofrimento secular", diz a deputada.
Sobre a demarcação de terras indígenas, ela afirmou que "não adianta demarcar, se a terra continuará pertencendo à União e não ao povo indígena. "Eu não vou ficar como elemento figurativo em cima da terra para alguém depois vir fotografar minha nudez”, disse a deputada.
Silvia Waiãpi foi a primeira mulher indígena a entrar para o Exército Brasileiro. Durante o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), foi secretária de Saúde Indígena do Ministério da Saúde.
Diferentemente das colegas da bancada do cocar na Câmara dos Deputados, Waiãpi defende a tese do marco temporal para demarcação de terras indígenas e foi contrária aos vetos impostos por Lula ao projeto de lei sobre o tema aprovado no Congresso.
A seguir você confere uma entrevista exclusiva para a Gazeta do Povo, para marcar o Dia dos Povos Indígenas, nesta sexta-feira (19).
Como que está a vida do indígena no Brasil atualmente? O governo Lula é mesmo amigo dos indígenas, como prega?
Silvia Waiãpi: Está do jeito que eles quiseram, afinal de contas, a maioria votou nesse governo. E não, não é amigo. O indígena, para ele, só serve se estiver segregado e isolado, dependente, servindo apenas de figura recreativa para fotografias, de interesses internacionais que acabam sendo utilizados depois, como uma moeda de troca sobre um sofrimento secular. Sempre pregando um sofrimento secular, que nunca se resolve, porque não se dá dignidade a esses povos.
O ensino é sempre bilíngue. É primeiro dado na própria língua, mas de péssima qualidade. Então, esse indígena, se ele quiser fazer um segundo grau, algo mais especializado, ele não vai conseguir competir na cidade de igual para igual, porque ele nem sabe falar a língua do seu próprio país.
Existem indígenas que vão para a cidade, desistem de continuar os seus estudos, e voltam para aquela vida de sofrimento no meio da selva. Lá, eles voltam a ter que ficar matando carapanã [mosquito] no corpo, fugindo de onça, tendo que levantar todos os dias para caçar. Enquanto isso a sociedade consegue ir ao supermercado comprar sua comida.
Então essa imagem se Lula busca emplacar, subindo rampa com um indígena do lado, recebendo condecoração internacional, é só marketing?
Silvia Waiãpi: Exatamente. Vamos fazer uma comparação. Nós temos três deputadas federais indígenas [Silvia Waiapi, Celia Xakriabá e Juliana Cardoso] em pleno mandato. Além de uma outra deputada eleita, atualmente no cargo de ministra [Sonia Guajajara]. Todas de igual monta. Todas moram em apartamento, bebem água gelada... Eu estou inclusa. Nós podemos pedir comida por iFood, comprar uma passagem de avião, ir ao supermercado. Nós não precisamos ir para a cidade, estamos nela. Aqui nós falamos bem a língua portuguesa. Nós não passamos fome e temos um alto salário.
Só que diferente das outras três, que são apoiadoras do Lula e continuam com o discurso de manter o seu povo isolado, segregado e dependente, eu tenho o discurso de que o meu povo pode ter – eu gostaria que ele tivesse – tudo aquilo que eu tenho. Eu sou uma indígena com formação em defesa química, biológica, radiológica e nuclear. Sou uma indígena formada em relações exteriores. Eu sou da saúde, eu fui pesquisadora, sou formada em transporte aeromédico. E por que os meus irmãos e os meus pais ou os meus parentes não podem? Eles não podem. Sabe por quê? Porque eles não dominam a língua portuguesa.
Justamente nessa linha de não ter acesso a tudo o que outros brasileiros têm, nós continuamos vendo os indígenas yanomamis com sérios problemas, mesmo após um ano e 4 meses de governo Lula. O governo Lula vai ser capaz de acabar com essa crise?
Silvia Waiãpi: Não, não vai ser capaz. Primeiro porque, a própria legislação, que foi induzida por todo esse movimento que foi feita para segregar o indígena, não vai permitir.
Como assim deputada? O que isso significa na prática?
Silvia Waiãpi: Você não pode abrir uma estrada para facilitar o acesso ou dar socorro para essa população. Por que o Ibama ou o Ministério do Meio Ambiente não vão deixar. Os interesses internacionais não vão permitir desenvolvimento econômico para essas regiões. Como não tem acesso, fica dificultada, inclusive, a fiscalização das forças de segurança pública. Elas não têm como chegar, a não ser que seja uma “big operação”, o que demanda muitos custos e envolvimento de outras instituições, como o Ministério da Defesa, Ministério da Justiça, governo do estado, Polícia Civil, Polícia Federal. [Nessas operações] todos se unem para combater o crime que se instala na região porque não existe fiscalização. Mas porque não existe fiscalização?
Outra questão: um indígena não pode nem se desenvolver em sua própria terra. Porque a terra pertence à União. Ela não é do índio! Então, vamos parar com a falácia de dizer que essa terra é do indígena, porque não é. Ele é apenas um elemento figurativo que vive sobre a terra, mas não pode explorar a terra e nem o que há dentro dela ou nas profundezas dela, porque pertence a União. Então, ficam nos massacrando para nos manter como vigias da natureza, sem nenhum dinheiro? Então eu fico ali para manter a floresta em pé, para manter uma possível diminuição das moléculas de carbono, que está contaminando a terra. Eu fico ali vigiando aquela natureza.
Porém, quem está emitindo os gases não somos nós. São os outros países, que não fazem questão de diminuir a sua produção industrial, que não diminuem a sua emissão de gases e estão pouco se lixando se nós estamos ali com fome, morrendo com malária ou desnutridos. Eles não se importam. Se esses indígenas não estiverem ali, obviamente que vão explorar aquela região. Se eles [outros países] exploram a região, descobrem que ali tem ouro, tem nióbio, tem tântalo, tem cobre. Obviamente que se nós explorarmos, nós nos tornamos concorrentes no mercado Internacional.
Então, obviamente, para impedir o Brasil de desenvolver as suas regiões mais potentes, utilizam povos indígenas como um elemento para travar qualquer tipo de desenvolvimento. Só que nos usam para isso. Por quê? Porque nós não dominamos ciência e tecnologia, nós não dominamos a sua língua. Poucos dominam, mas ficam com a mesma retórica do isolamento.
A senhora falou em custos. A gente sabe que é realmente muito caro fazer operações na Amazônia. Mas o dinheiro que está sendo destinado para as questões indígenas, tem sido bem aplicado?
Silvia Waiãpi: Esse governo não tem freio nos próprios gastos. Então, qualquer atividade vai ser completamente onerosa quando se trata da Amazônia brasileira, em qualquer estado. No meu estado, o Amapá, não tem nenhuma ponte que me ligue, por exemplo, ao Pará, para facilitar o meu acesso ao meu país. Então os meus custos são elevadíssimos. Meu estado é 73% bloqueado em reservas, em Flotas [Floresta Estadual do Amapá ou Flota/AP]. E o pouco que me sobra, eu não posso nem me desenvolver nele. Então, eu tenho o aumento da criminalidade, a ação do narcotráfico, facções. Então eu não posso, por exemplo, fazer uma estrada para levar saúde ao povo indígena?
É o que está acontecendo também no Amazonas, com a BR-319, certo?
Silvia Waiãpi: Exatamente. E neste tema, eu cito a [ministra do Meio Ambiente] Marina Silva – e eu falo sem medo por conta das declarações dela, feitas na CPI das ONGs – que falou que o povo vai usar aquilo para passear. Mas ela se ela sofrer um acidente em São Paulo – o estado que ela representa, um estado completamente desenvolvido, com um crescimento econômico ativo, com fábricas – imediatamente, se for numa estrada, vai descer um helicóptero do corpo de bombeiros para resgatá-la, em poucos minutos. Se for numa outra via dentro da cidade, em menos de 10 minutos estará ali uma ambulância do corpo de bombeiros. Mas eu não tenho isso no Norte, porque nós não temos acesso. Ela [Marina Silva] não representa o norte brasileiro. Pelo contrário, ela atua contra o povo do Norte, mesmo tendo nascido lá.
Então a senhora acha que há um descompasso no discurso?
Silvia Waiãpi: Esse discurso, não é nem para inglês ver, porque a Inglaterra não está financiando isso. É pra Noruega, pra Alemanha e pra França ver. É para os interesses de qualquer outro país, menos do interesse do povo. Estão todos falando em bioma, em proteção de árvore, mas ninguém fala do ser humano. Nada, nada melhorou. Então, vão utilizar o indígena, o ribeirinho, vão utilizar cada um desses povos do norte, que moram na Amazônia brasileira para fingir que estão alcançando as metas. Mas negam a eles a verdadeira dignidade que a sociedade desenvolvida tem, com saneamento, com acesso à estrada e a hospital.
Se você for comparar, por exemplo, o ensino de uma escola pública do Rio de Janeiro, de São Paulo, com as escolas públicas do meu estado, dentro da aldeia indígena...Eles [outros estados do Brasil] estão acima da média. Enquanto nós ficamos com um estudo ruim, sem poder inclusive lutar pelo nosso próprio direito, sendo enganados com maior facilidade. O que eu estou dizendo é que a gente tem que parar e começar a equilibrar esse discurso. Primeiro o meu povo. Primeiro a dignidade do povo brasileiro que vive na floresta. A estabilidade econômica de outros países primeiro? Não, jamais esse não é meu discurso.
A demarcação de terras indígenas é um dos grandes entraves atuais. Como a senhora vê esse assunto?
Silvia Waiãpi: Nós estamos fazendo um estudo a respeito do dinheiro internacional que entra no Brasil para fomentar pesquisas rápidas para impedir desenvolvimento em determinadas regiões. Esse órgão que recebe financiamento internacional faz estudos, inclusive, para extensão de terras indígenas já homologadas. Esse instituto, que é o Isa [Instituto Socioambiental]. Resolve, do nada, fazer um estudo e dizer que a reserva precisa ser aumentada. Com esse processo [de ampliação de terras indígenas], são desalojadas e expulsas pessoas que já moravam ali há anos e que tem uma excelente relação com indígenas, que são brasileiros.
Nós não temos que ficar levando isso à ponta da espada, 1.500 já acabou. O povo brasileiro não tem que estar sendo induzido a duelo contra o outro povo brasileiro. Será que agora você tem que pagar um alto preço porque um dia na sua vida você descendeu de um português há mais de 200, 300, 500 anos e por isso você deve perder o seu patrimônio para mim, porque eu sou indígena? É você que tem que pagar essa conta ou o estado brasileiro que tem que me dar a oportunidade de ser igual?
Inclusive, essas organizações que recebem dinheiro Internacional, atuam em estudos para impedir que o Brasil se desenvolva. Isso é um atentado contra a soberania nacional. Usam a nós, povos indígenas, que ficamos no meio dessa batalha.
A senhora atuou muito durante os debates sobre o marco temporal para demarcação de terras indígenas. Como tem visto esse embate entre o Congresso e o governo Lula? Vai ter um fim?
Silvia Waiãpi: Eu espero que tenha. Afinal de contas, nós é que fomos eleitos para legislar. A sociedade elegeu senadores e deputados para fazer a legislação. Então, o executivo apenas vai gestar, vai gerir, ele vai auxiliar na administração desse dinheiro público. Mas ele não faz a lei.
A senhora acha que, em algum momento, vamos ver o fim dessas disputas por terras no Brasil?
Silvia Waiãpi: Vamos ver quando os atuais representantes dos povos, tanto indígenas quanto da outra sociedade urbana, começarem a discutir o que é realmente prioridade. Parar com esse discurso vitimista de 1.500. Estamos no século XXI. Vamos encontrar uma solução. Qual é a solução? É manter o povo ainda no mesmo estágio de 1.500? Para novamente ser dominado, pra ser frágil, pra ser subjugado, pra se manter vulnerável? Aqui tem uma sociedade, que também é brasileira, pujante, dominando ciência e tecnologia, do lado de um povo que não domina. Nós vamos ser novamente fadados a cumprir o mesmo rito histórico de 1500? Vê se alguém vem debater comigo? Por quê? Porque eu tenho a mesma formação. Eu não estou vulnerável a esse tipo de apelo.
Como uma indígena, dentro do Congresso Nacional, qual é o principal objetivo da senhora?
Silvia Waiãpi: Enquanto deputada, quero ver aprovadas algumas propostas como a Proposta de Emenda à Constituição [PEC] em que eu altero o artigo 231, para dizer que nenhuma cultura pode ser superior ao direito à vida. Porque nós ainda temos uma prática liberada de estupro coletivo, de assassinato de crianças, de violência contra a mulher que ocorrem dentro da aldeia. Porque nos condenaram a viver no passado. Mantendo uma cultura que hoje nós percebemos, com o avançar desta sociedade, que bater na mulher é crime. Mas isso é protegido no artigo 231, que fica reconhecido a cultura, seus ritos, suas crenças. Mas nenhuma cultura pode ser superior ao direito à vida.
Há outro projeto também. Nele eu falo que não há nenhum problema em fazer essas demarcações [de terra indígena], essas análises e estudos, mas isso não deve ser homologado apenas por uma caneta. Deve ser discutido pelo interesse do estado brasileiro. Quer dizer, não é uma secretaria. Nós temos um parlamento, com deputados federais e senadores eleitos por esses povos. Porque índio também vota. Então, já que foram eleitos e tiveram indígenas que foram às urnas, então eles já têm os seus representantes capazes de decidir no Congresso pela homologação ou não de terras indígenas. Então, eu estou sugerindo que essa atribuição seja transferida para o Congresso.
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