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Instaurado em abril a pedido do procurador-geral da República, Augusto Aras, o inquérito dos atos antidemocráticos, em tramitação no Supremo Tribunal Federal (STF), segue para a reta final de diligências. A expectativa dentro da Procuradoria-Geral da República (PGR) é que Aras peça abertura de ação penal contra os envolvidos ou determine arquivamento dos autos até dezembro.
A investigação foi instaurada após manifestantes defenderem a volta da ditadura militar e intervenção das Forças Armadas durante as comemorações pelo Dia do Exército em Brasília e diversas cidades do país. Houve atos em São Paulo, Rio de Janeiro e Santa Catarina, entre outros estados. O presidente Jair Bolsonaro participou das comemorações, mas não endossou a tese dos manifestantes. Ele não é investigado no inquérito.
Em pouco mais de cinco meses, os investigadores da Polícia Federal ouviram em torno de 30 pessoas, levantaram documentos, determinaram a quebra de sigilo bancário e telemático de deputados federais e de influenciadores digitais alinhados ao governo federal.
O inquérito apura a existência de uma rede coordenada entre militantes, políticos, empresários e influenciadores digitais responsável por defender ideias como o fechamento do Congresso Nacional e do STF. Além disso, há a suspeita de que integrantes desse grupo tenha lucrado com a promoção desses atos antidemocráticos e que dinheiro da Câmara dos Deputados foi utilizado para financiar a divulgação dos protestos.
Segundo a principal linha de investigação desencadeada pela PF e PGR, essa rede tida como “antidemocrática” podia ser subdividida em quatro núcleos: os organizadores e movimentos; os influenciadores digitais e hashtags; monetização e conexão com parlamentares.
- O núcleo organizadores e movimentos seria formado por militantes como, por exemplo, Edson Salomão, assessor parlamentar do deputado estadual em São Paulo Douglas Garcia (PSL);
- O núcleo de influenciadores seria formado por ativistas e jornalistas como Allan dos Santos (do site Terça Livre), Oswaldo Eustaquio Filho (do canal com o mesmo nome), e Sara Giromini (do canal Sara Winter), tida como líder do movimento ‘300 pelo Brasil’;
- O núcleo da monetização seria formado por empresários como Luís Felipe Belmonte dos Santos, vice-presidente do Aliança pelo Brasil, e Otávio Oscar Fakhoury. Para a PGR, os empresários teriam ajudado a financiar os atos antidemocráticos;
- E o núcleo político seria formado por pelo menos 10 deputados federais — Bia Kicis (PSL-DF), General Girão (PSL-RN), Aline Sleutjes (PSL-PR), Guiga Peixoto (PSL-SP), Daniel Silveira (PSL-RJ), Júnio Amaral (PSL-MG), Otoni de Paula (PSC-RJ), Caroline de Toni (PSL-SC), Carla Zambelli (PSL-SP), Alê Silva (PSL-MG) — e um senador Arolde de Oliveira (PSD-RJ).
Como funcionava a suposta rede antidemocrática, segundo os investigadores
Nas palavras da PGR, essa rede estruturada era “voltada tanto à sectarização da política quanto à desestabilização do regime democrático para auferir ganhos econômicos diretos e políticos indiretos. Nesse entrelaçamento formam-se complexas relações de poder por cooperação, dependência e dominação”.
“Estes mesmos relacionamentos denotam, igualmente, um alinhamento consciente entre os componentes dos grupamentos direcionado à realização de ações potencialmente típicas, independentemente da existência de um acordo propriamente dito para esse fim”, descreveu a PGR.
Nos depoimentos, todos os envolvidos negaram participar ou compactuar com ações antidemocráticas. “Uma coisa é a crítica a uma instituição como o STF; outra é ser antidemocrático”, disse à Gazeta do Povo o empresário Luís Felipe Belmonte. Já o empresário Oscar Fakhoury destacou que "sempre agiu de forma ética, lícita e, principalmente, em estrito respeito à Constituição Federal e ao Estado Democrático de Direito, repudiando, portanto, a associação do termo 'antidemocrático' à sua pessoa. Suas manifestações públicas, como postagens em redes sociais, falas e entrevistas demonstram claramente esse fato".
A suspeita levantada pelos procuradores é que deputados federais, ativistas e influenciadores digitais combinavam atos, discursos e formas de atacar o Congresso e o STF por meio de grupos de WhatsApp. Depois, esses atos eram ratificados a partir de encontros presenciais na Câmara ou na residência de alguns dos investigados. O financiamento dos protestos ocorria após a anuência entre deputados, ativistas e influenciadores digitais.
Até o momento, os investigadores apuram duas suspeitas de financiamento dos atos antidemocráticos. A locação de carros de som e a contratação de ônibus, entre outras despesas de caráter físico, eram custeadas por empresários alinhados ao grupo. A Procuradoria também apura a possibilidade de que recursos da Câmara, por meio da cota para o exercício da atividade parlamentar, o chamado cotão, possa ter sido utilizada para custear a divulgação dos protestos.
A Inclutech Tecnologia da Informação Ltda, uma das empresas investigadas noe inquérito e de propriedade do publicitário Sérgio Lima, também alvo da PGR, foi contratada para realizar ações de divulgação de atividade parlamentar para os deputados Aline Sleutjes, Bia Kicis, General Girão e Guiga Peixoto. Até o momento, a empresa recebeu R$ 80,9 mil do cotão parlamentar.
Atuação de Allan dos Santos nos atos antidemocráticos
Um dos principais focos do inquérito é a atuação do ativista Allan dos Santos, apontado pela Procuradoria como um dos maiores artífices dos movimentos antidemocráticos. Sendo articulador e incentivador de alguns dos atos, conforme informações da Procuradoria.
Três depoimentos obtidos pelo jornal O Estado de S. Paulo, entre os quais o do assessor parlamentar Tércio Arnaud Tomaz, apontam que o ativista mantinha um grupo de WhatsApp com deputados bolsonaristas e que houve encontros entre políticos e apoiadores do presidente da República na residência do jornalista, localizada no Lago Sul, região nobre de Brasília.
Mensagens de WhatsApp obtidas pelo jornal mostraram que Allan sugeriu a “necessidade de uma intervenção militar” ao tenente-coronel Mauro Cid, chefe da Ajudância de Ordem da Presidência e assessor da Presidência da República. O militar não respondeu às mensagens de Allan.
No inquérito das fake news, o ativista é apontado como um dos principais disseminadores de informações críticas ao Supremo Tribunal Federal. A suspeita dos investigadores é que ele se utilize de sua influência digital não somente para fazer críticas ao STF como para incentivar a radicalização do discurso do governo federal.
“Como se vê de tudo até então apresentado, recaem sobre os indivíduos aqui identificados sérias suspeitas de que integrariam esse complexo esquema de disseminação de notícias falsas por intermédio de publicações em redes sociais, atingindo um público diário de milhões de pessoas, expondo a perigo de lesão, com suas notícias ofensivas e fraudulentas, a independência dos poderes e o Estado de Direito”, descreve o ministro do STF Alexandre de Moraes sobre a participação de Allan dos Santos no processo de disseminação de supostas notícias falsas.
Procuradores ainda buscam informações sobre influência de filhos do presidente
Em uma outra linha de investigação, os integrantes da PGR e da Polícia Federal (PF) apuram se os filhos do presidente, o vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos-RJ) e o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), participaram ou não da organização desses atos ou se ambos tiveram algum tipo de influência nas deliberações dos demais integrantes desta rede de políticos e influenciadores digitais. Apesar disso, nem Carlos, nem Eduardo são investigados.
Os dois já foram ouvidos pela PF. Ambos na condição de testemunhas. Na semana passada, Carlos prestou depoimento e negou participação em qualquer ato contra a democracia ou a utilização de robôs para impulsionar seus conteúdos nas redes sociais. Na última terça-feira (22), Eduardo foi ouvido em seu gabinete na Câmara dos Deputados durante seis horas. O parlamentar também negou qualquer ilicitude.
Para o ministro Alexandre de Moraes, a investigação sobre os atos antidemocráticos se justifica pelo fato de que “os direitos e garantias individuais, consequentemente, não são absolutos e ilimitados, uma vez que encontram seus limites nos demais direitos igualmente consagrados pela Carta Magna (Princípio da relatividade ou convivência das liberdades públicas)”.