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Para sustentar o indiciamento do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), ocorrido na última quinta-feira (4), o relatório da Polícia Federal (PF), divulgado nesta segunda-feira (8), colocou o ex-mandatário como o personagem central em uma suposta organização criminosa dedicada ao desvio de presentes de alto valor recebidos durante viagens internacionais.
O relatório detalha como a estrutura oficial do Gabinete Adjunto de Documentação Histórica (GADH) teria sido instrumentalizada pelo grupo para “legalizar” a incorporação dos bens desviados ao acervo privado de Bolsonaro. Com o uso estratégico do GADH, a investigação sugere um plano meticuloso para garantir a apropriação dos presentes, cujo valor total é de US$ 1.227.725,12 ou R$ 6.826.151,66.
Bolsonaro foi indiciado pelos crimes de associação criminosa, peculato e lavagem de dinheiro. Além do ex-presidente, foram indiciadas mais 11 pessoas, entre as quais o ex-ajudante de ordens Mauro Cid; o pai dele, Mauro Cesar Cid; os advogados Frederick Wassef e Fabio Wajngarten; o ex-ministro de Minas e Energia Bento Albuquerque; o ex-chefe da Receita Federal Julio Cesar Vieira Gomes; o ex-chefe do Gabinete de Documentação Histórica da Presidência da República Marcelo da Silva Vieira; e Osmar Crivelatti, ex-assessor de Bolsonaro.
No documento, o delegado Fábio Shor aponta que as provas obtidas por meio de acordos de cooperação internacional, o depoimento de Mauro Cid sobre o caso e os diálogos entre assessores do ex-presidente atestam a participação de Bolsonaro no suposto esquema. O relatório mostra Bolsonaro conversando com Cid após receber o link de um leilão de joias. O ex-presidente respondeu “Selva!” ao então ajudante de ordens. "Selva" é uma gíria militar que tem diversos significados dependendo do contexto e intonação, como: sim, não, bom dia, boa noite, obrigado, até logo, entre outros siginficados, além de ser usada como simples saudação.
“Conforme apresentado, os elementos acostados nos autos evidenciaram a atuação de uma associação criminosa voltada para a prática de desvio de presentes de alto valor recebidos em razão do cargo pelo ex-presidente da República Jair Bolsonaro e/ou por comitivas do governo brasileiro, que estavam atuando em seu nome, em viagens internacionais, entregues por autoridades estrangeiras, para posteriormente serem vendidos no exterior”.
Em nota à imprensa, o advogado Paulo Amador da Cunha Bueno, responsável pela defesa de Bolsonaro, afirmou que “os presentes ofertados à Presidência da República obedecem a um rígido protocolo de tratamento e catalogação, sobre o qual o Chefe do Executivo não tem qualquer ingerência, direta ou indireta, sendo desenvolvido pelo Gabinete Adjunto de Documentação Histórica (GADH), responsável por analisar e definir, a partir dos parâmetros legais, se o bem será destinado ao acervo público ou ao acervo privado de interesse público da Presidência da República”.
Já o deputado Eduardo Bolsonaro (PL-SP) classificou a investigação da PF como inacreditável e disse que ela pode fortalecer Bolsonaro politicamente. "Quando mais vocês fizerem isso, mais gente vai para a rua apoiar Bolsonaro", disse à CNN Brasil. O ex-presidente vem afirmando ser vítima de perseguição política.
Bolsonaro sabia da venda de joias, mas achou que não eram presentes ao Estado, mostram mensagens
Em conversas com Frederick Wassef, em março de 2023, Bolsonaro indicou que tinha conhecimento sobre a venda das joias, mas opinou que os presentes recebidos eram seus e não do Estado brasileiro. Ao argumentar com o advogado, ele enviou trechos da Lei 8.364/1991, que regulamenta o acervo privado da Presidência da República.
“Você que é advogado aí, dá uma olhada nisso aí, nós sublinhamos aí um... pintamos de amarelo alguma coisa. Pelo que tudo indica, nós temos o direito de ficar com o material. Dá uma olhada aí”, disse Bolsonaro a Wassef.
A conversa com o advogado buscou formatar uma nota que seria emitida pela defesa logo quando o caso foi revelado pela imprensa. O objetivo do ex-presidente era argumentar que não havia ilegalidade ao ficar com os presentes recebidos durante viagens ao exterior.
“Olha só, não é presente pro Estado não. Pro Estado é quando ele entrega pra mim numa solenidade oficial. Tá ok?”, acrescentou o ex-presidente.
Em entrevista à CNN, nesta segunda-feira, o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL-SP), filho do ex-presidente, disse que “estão tentando transformar um presente em um caso de corrupção”. Ele negou que o pai tenha cometido irregularidades e afirmou que Jair Bolsonaro sofre perseguição.
Sobre o diálogo entre o pai e Cid, Eduardo ironizou: “Ele recebeu um link e respondeu ‘Selva’? Isso configuraria autorização de Bolsonaro? Tá meio estranha essa conversa aí”, disse.
8/1 e golpe de Estado são citados em inquérito da PF
Em um texto introdutório do inquérito, a PF dá a entender que a presente investigação é parte de uma narrativa maior que visa ligar o caso das joias sauditas com uma alegada tentativa de golpe de Estado. O inquérito relacionado a essa outra alegação ainda não veio a público. Mas, na exposição inicial, a PF apresenta até um diagrama para alegar que o caso das joias está ligado ao inquérito das milícias digitais, conduzido há anos pelo ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF). Os investigadores alegam a existência de cinco eixos de atuação da alegada organização criminosa investigados sob esse inquérito:
- Ataques virtuais a opositores (Inquérito das Milícias Digitais)
- Ataques às instituições (STF, TSE), ao sistema eletrônico de votação e à higidez do processo eleitoral
- Tentativa de Golpe de Estado e de Abolição violenta do Estado Democrático de Direito
- Ataques às vacinas contra a Covid-19 e às medidas sanitárias na pandemia
- Uso da estrutura do Estado para obtenção de vantagens, o qual se subdivide em: cartões corporativos, inserção de falsificação de cartões de vacina e o caso das joias.
A avaliação do mundo político é de que o caso das joias possui mais indícios do que os outros. Além disso, a avaliação de analistas é de que o indiciamento da semana passada toca em um assunto que ajudou a eleger Bolsonaro em 2018: o combate à corrupção.
Comentando a possível repercussão do indiciamento, o cientista político Adriano Cerqueira, do Ibmec de Belo Horizonte, afirma que a situação pode favorecer Bolsonaro em termos de narrativa política.
“A aparente fragilidade jurídica da peça acusatória fortalece o discurso de Bolsonaro e reforça a imagem de vítima do sistema, que ele inclusive tem procurado ressaltar em relação a Lula. Ele está tentando colar a imagem do Lula a esse sistema que estaria o perseguindo e favorecendo Lula nessa condição. Na minha avaliação, Bolsonaro tem sabido navegar bem nessas águas da politização desta questão”, disse Cerqueira.
Para o cientista político Elton Gomes, professor da Universidade Federal do Piauí (UFPI), a repercussão política do caso para a população pode não ter o mesmo efeito do que a repercussão jurídica.
“Em comparação a Lula, Bolsonaro é acusado de crimes menores que, principalmente do ponto de vista da percepção da opinião pública, não causam uma indignação pública mais generalizada, como o caso das joias e o cartão de vacinas. Os efeitos políticos acabam não sendo os mesmos que os efeitos jurídicos”, disse Gomes.
Relembre o caso das joias sauditas
O inquérito contra Bolsonaro foi instaurado após o jornal O Estado de S. Paulo revelar, em março de 2023, que a comitiva presidencial trouxe da Arábia Saudita um conjunto de joias que acabou apreendido pela Receita Federal. Outros dois conjuntos de joias também não teriam sido declarados na chegada da delegação ao Brasil. O caso ocorreu em 2021.
Os itens mais valiosos eram um conjunto da marca de luxo Chopard contendo uma caneta, um anel, um par de abotoaduras, um rosário árabe (masbaha) e um relógio, tudo em ouro rosé.
Trata-se de um presente recebido em outubro de 2021 pelo então ministro de Minas e Energia, Bento Albuquerque, numa viagem à Arábia Saudita. Após a revelação do caso e uma fiscalização do Tribunal de Contas da União (TCU), os objetos foram devolvidos por Bolsonaro.
O conjunto de bens de alto valor ainda era composto por dois relógios, um da marca suíça Rolex, acompanhado por joias, e outro da marca suíça Patek Philippe, que Bolsonaro recebeu durante uma viagem para a Arábia Saudita e o Catar, em 2019, e por duas esculturas douradas.
Em outubro de 2021, a Receita Federal apreendeu um conjunto com colar, anel, relógio e um par de brincos de diamante que estava na mochila de um assessor de Bento Albuquerque. As peças não tinham sido declaradas.
Em junho de 2022, Mauro Cid vendeu os relógios das marcas Rolex e Patek Philippe à empresa Precision Watches por US$ 68 mil.
As investigações da PF também revelaram a tentativa de vender duas esculturas recebidas por Bolsonaro no Reino do Bahrein em 2021: uma em forma de palmeira e outra de um barco – ambas douradas, mas que não eram de ouro e que, pelo baixo valor, não foram vendidas. O kit Chopard e as esculturas foram levadas para os Estados Unidos em dezembro de 2022.
O inquérito apontou que os objetos "foram levados de forma oculta para os Estados Unidos, na data de 30 de dezembro de 2022, por meio de avião presidencial, e encaminhados para lojas especializadas nos estados da Flórida, Nova York e Pensilvânia, para serem avaliados e submetidos à alienação, por meio de leilões e/ou venda direta".