O plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) vai analisar no dia 10 de junho a validade do inquérito das fake news aberto para apurar a criação, disseminação e financiamento de notícias falsas contra integrantes da Corte. Na semana passada, a investigação voltou a causar furor com o cumprimento de 29 mandados de busca e apreensão contra apoiadores e aliados do presidente Jair Bolsonaro, aumentando o clima de tensão entre o Planalto e o STF.
Desde que foi instaurado, o inquérito está envolto em uma série de polêmicas. A principal é o fato de o STF figurar como vítima, acusador e provável julgador do caso.
“É um processo que iniciou de maneira anômala, um relator sem sorteio, amparado no regimento interno que fala de crimes cometidos dentro das dependências do STF. A PGR, na época, já defendeu o arquivamento e foi rejeitado”, resume Aphonso Mehl Rocha, consultor nas áreas de compliance, gerenciamento de riscos e proteção de dados. “O STF está agindo em interesse próprio. Esse é o principal ponto polêmico”, opina.
O inquérito foi aberto pelo presidente do STF, ministro Dias Toffoli, em março de 2019, com base no artigo 43 do Regimento Interno da Corte (leia abaixo). O objetivo, segundo Toffoli, era apurar "notícias fraudulentas", ofensas e ameaças, que "atingem a honorabilidade e a segurança do Supremo Tribunal Federal, de seus membros e familiares".
Art. 43. Ocorrendo infração à lei penal na sede ou dependência do Tribunal, o Presidente instaurará inquérito, se envolver autoridade ou pessoa sujeita à sua jurisdição, ou delegará esta atribuição a outro Ministro. § 1º Nos demais casos, o Presidente poderá proceder na forma deste artigo ou requisitar a instauração de inquérito à autoridade competente. § 2º O Ministro incumbido do inquérito designará escrivão dentre os servidores do Tribunal.
Toffoli anunciou a abertura do inquérito em uma sessão do plenário e nomeou o ministro Alexandre de Moraes como relator para conduzir as investigações. As investigações deveriam ter terminado em janeiro deste ano, mas foram prorrogadas por mais seis meses depois que a Polícia Federal detectou a ação de uma suporta organização criminosa comandada por bolsonaristas do chamado "gabinete do ódio", instalado no Palácio do Planalto. O inquérito ainda pode ser prorrogado mais vezes antes da sua conclusão.
PGR se posiciona sobre inquérito das fake news
O procurador-geral da República, Augusto Aras, pediu a suspensão do inquérito das fake news. O pedido foi realizado depois das buscas e apreensões realizadas contra apoiadores e aliados de Bolsonaro.
Aras disse que a Procuradoria-Geral da República foi "surpreendida" com as ações “sem a participação, supervisão ou anuência prévia do órgão de persecução penal". Segundo o PGR, isso "reforça a necessidade de se conferir segurança jurídica" ao inquérito, "com a preservação das prerrogativas institucionais do Ministério Público de garantias fundamentais, evitando-se diligências desnecessárias, que possam eventualmente trazer constrangimentos desproporcionais".
Em outubro do ano passado, Aras havia dado um parecer pela continuidade do inquérito em uma ação movida pela Rede Sustentabilidade na qual o partido questionava a investigação. Aras afirmou ser possível "concluir que a polícia da Corte Suprema abrange também a proteção de bens e serviços do Tribunal, assim como a incolumidade dos ministros, juízes, servidores e demais pessoas que o frequentam".
Antecessora de Aras, a ex-procuradora-geral da República, Raquel Dodge, também havia se posicionado contra o inquérito logo em sua abertura. Ela pediu o arquivamento da investigação e apontou ao ministro Alexandre de Moraes "a importância da separação das funções no processo de persecução penal, visto o cumprimento de medidas cautelares penais e ordens judiciais sem requerimento ou manifestação prévia ao Ministério Público”. O pedido foi negado por Moraes.
As polêmicas em torno do inquérito
Desde a abertura do inquérito, que ocorreu por ofício, ou seja, sem uma provocação do Ministério Público ou da polícia, passando pela escolha do relator, que foi feita sem sorteio, até o objeto da investigação, considerado amplo demais, o inquérito das fake news acumula críticas e polêmicas.
“Talvez seja o único inquérito no Brasil que o mesmo juiz é vítima, investiga, julga, pede e defere medidas”, resume João Paulo Boaventura, advogado criminalista sócio do Boaventura Turbay Advogados. “Apesar de ter boas intenções, a forma é completamente inconstitucional”, completa.
Boaventura ainda ressalta que os investigados não têm prerrogativa de foro no STF e deveriam ser investigados em primeira instância. Apenas recentemente o inquérito chegou a deputados federais, mas, mesmo assim, o precedente do STF é que eles só devem ser investigados na Corte por atos cometidos durante o mandato e em razão dele. “Essas pessoas investigadas não têm foro no Supremo. Esse inquérito é nulo de cabo a rabo”, reforça o advogado.
Para o advogado Francisco Monteiro Rocha Júnior, coordenador geral dos cursos de pós-graduação em Direito Penal e Processo Penal da Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst), o inquérito coloca em questionamento a parcialidade de um eventual julgamento.
“Se você pensar na figura do juiz, tem que ser um terceiro desinteressado que vai julgar partes que estão em enfrentamento jurídico, que é uma acusação e uma defesa. Quando há o início do procedimento pelo próprio Poder Judiciário você já tem uma grande interrogação a respeito da futura imparcialidade de como isso vai ser julgado e analisado”, explica Rocha Júnior. “A gravidade dos fatos não pode fazer com que a gente passe por cima dos procedimentos, porque aí está todo mundo errado: quem cometeu e quem está julgando”, completa.
Os dois advogados ressaltam que não há nenhuma jurisprudência no Brasil sobre o caso do inquérito das fake news, ou seja, nenhum caso anterior que possa balizar o procedimento a ser adotado nesse caso. “É uma coisa que nunca foi vista, não tem jurisprudência. A gente está vivendo um momento de estremecimento de tudo e parece que isso também está chegando na nossa Justiça”, diz Rocha Júnior.
“Isso não tem precedentes no país. Esse inquérito não tramita para defesa e acusação. Está em sigilo, não tem exercício pleno da advocacia, o Ministério Público não tem cópia, não tem acesso. Como não tem um controle externo, não temos certeza da legalidade do que está acontecendo”, ressalta Boaventura.
Apesar das polêmicas, os juristas ressaltam que o inquérito pode levar a ações penais. “A gente esbarra em outro problema. Depois da Lava Jato se estabeleceu um consenso de não existir nulidade nos inquéritos”, destaca Rocha Júnior.
O Superior Tribunal de Justiça (STJ) já decidiu, mais de uma vez, que “máculas ocorridas no inquérito não contaminam a ação penal”. “Se [o inquérito] encontrar de fato crime, [as defesas] não poderiam questionar a validade do inquérito em ação penal”, explica Boaventura.
“A gente vê hoje uma crise muito grande de legitimidade da Justiça por esse aspecto de ir tocando os inquéritos de qualquer forma”, diz Rocha Júnior.
Moraes pode se declarar impedido de julgar, diz jornal
O relator Alexandre de Moraes assegurou o acesso de advogados de investigados aos autos das apurações sobre ofensas e ameaças a integrantes da Corte só recentemente. Em decisões na última sexta-feira (29) e na segunda-feira (1º), o ministro atendeu a pedidos das defesas de investigados para acesso às investigações.
Na segunda-feira (01), o ministro rebateu, no Twitter, a acusação de que os investigados não teriam acesso aos autos. “O gabinete do Min. Alexandre de Moraes informa que, diferentemente do que alegado falsamente, foi autorizado integral conhecimento dos autos aos investigados no inquérito que apura “fake news”, ofensa e ameaças a integrantes do STF,ao Estado de Direito e a Democracia”, disse.
Nesta quinta-feira (4), o jornal Folha de São Paulo publicou que o STF costura nos bastidores do tribunal uma forma de sanar vícios do inquérito das fake news. O objetivo é reduzir questionamentos e criar um consenso mínimo sobre ajustes na condução do inquérito para assegurar a continuidade das apurações no julgamento do dia 10 de abril.
Entre as tratativas, um pronunciamento de Alexandre de Moraes em plenário declarando-se impedido de julgar futuras ações judiciais relacionadas ao caso, uma vez que participou diretamente da produção de provas. A liberação do acesso aos autos aos advogados foi vista como consequência dessa articulação, que conta com o aval do presidente do Supremo, Dias Toffoli.
Apoiadores do presidente viraram alvos do inquérito das fake news
No episódio mais recente envolvendo a investigação do STF foram cumpridos 29 mandados de busca e apreensão de suspeitos de criar, disseminar e financiar notícias falsas. Os alvos eram apoiadores do presidente Jair Bolsonaro.
Luciano Hang, dono da Havan; o empresário Edgard Corona, dono da rede de academias Smart Fit, e o investidor Otávio Oscar Fakhoury seriam os supostos patrocinadores do grupo. Entre os alvos de buscas também estavam Roberto Jefferson, ex-deputado federal; Douglas Garcia (PSL-SP), deputado estadual; Allan dos Santos, blogueiro; Sara Winter, ativista; Winston Rodrigues Lima, militar reformado e coordenador de atos pró-Bolsonaro, entre outros.
O inquérito também deve colher os depoimentos de deputados bolsonaristas. Entre eles estão Bia Kicis (PSL-DF), Carla Zambelli (PSL-SP), Filipe Barros (PSL-PR) e Luiz Phillipe de Orleans e Bragança (PSL-SP). Também foram incluídos Daniel Silveira (PSL-RJ), Cabo Junio Amaral (PSL-MG), além dos deputados estaduais por São Paulo Douglas Garcia (PSL) e Gidelvanio Santos Diniz (PSL), conhecido como "Carteiro Reaça".
Na decisão em que determinou o cumprimento de mandados de busca e apreensão em endereços ligados a apoiadores de Jair Bolsonaro, o ministro Alexandre de Moraes também ordenou o afastamento do sigilo bancário e fiscal de empresários.
Foram afetados pela decisão Luciano Hang; Edgard Corona; Reynaldo Bianchi Junior (o humorista Rey Bianchi); e Winston Rodrigues Lima (militar reformado e coordenador de atos pró-Bolsonaro). A suspensão do sigilo vale entre julho de 2018 e abril de 2020, abrangendo, portanto, o período eleitoral de 2018.
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