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Ainda neste mês de fevereiro, o procurador-geral da República, Augusto Aras, deverá decidir se denuncia ou não o presidente Jair Bolsonaro (PL) por causa da divulgação, em agosto do ano passado, da investigação da Polícia Federal sobre uma invasão hacker a sistemas internos do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), antes da eleição de 2018.
E um dos pontos-chave para essa análise jurídica, que vem sendo explorada pelas defesas de Bolsonaro e também do deputado Filipe Barros (PSL-PR) – que conseguiu e repassou ao presidente cópia da investigação ao presidente – é a classificação sigilosa do inquérito. Um inquérito que corre sob sigilo não pode ser divulgado por servidor ou agente público – ou seja, quem faz isso, por lei, comete crime.
Por um lado, o TSE, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes e a delegada da Polícia Federal (PF) que investigou a divulgação do inquérito entendem que o presidente revelou dados sigilosos – o que justificaria a imputação criminal contra ele.
Por outro, o delegado federal que investigou o ataque hacker ao TSE, e outros setores da PF que analisaram a tramitação dessa investigação, informaram que não havia segredo de Justiça no caso. E isso, no entendimento da Advocacia-Geral da União (AGU), que faz a defesa de Bolsonaro, descaracterizaria a ocorrência de crime.
A controvérsia, expressa também pela defesa de Filipe Barros, tende a ser crucial para a posição da Procuradoria-Geral da República, a quem cabe examinar todo o caso e decidir se acusa formalmente o presidente, se entender que ele cometeu um delito; ou pede o arquivamento, se considerar que não estaria configurado crime.
Para entender cada um desses lados, esta reportagem detalha o que diz cada um desses atores, com base em documentos oficiais, divulgados publicamente pelo STF.
O que dizem o TSE e Alexandre de Moraes
Responsável por pedir a investigação de Bolsonaro, o TSE afirmou na notícia-crime enviada ao STF que, quando Bolsonaro compartilhou o inquérito da PF em suas redes sociais, em agosto de 2021, houve uma “divulgação indevida de informações sigilosas ou reservadas” da Corte Eleitoral, com “potencial prejuízo para a Administração Pública”. E apontou o crime de divulgação de segredo, com pena de até 4 anos de prisão e multa.
A Corte afirmou ainda que, no inquérito divulgado pelo presidente, havia “um conjunto de informações que deveriam ser de acesso restrito e podem causar danos à Justiça Eleitoral e ao próprio processo democrático de realização e apuração das eleições”.
É quase o mesmo do que disse, no último dia 1.º de fevereiro, o ministro Luís Roberto Barroso, que preside o TSE, na primeira sessão deste ano. “Informações sigilosas que foram fornecidas à Polícia Federal para auxiliar uma investigação foram vazadas pelo próprio presidente da República em redes sociais, divulgando dados que auxiliam milícias digitais e hackers de todo o mundo que queiram tentar invadir nossos equipamentos. O presidente da República vazou a estrutura interna da TI [tecnologia da informação] do Tribunal Superior Eleitoral. Tivemos que tomar uma série de providências de reforço da segurança cibernética dos nossos sistemas para nos protegermos. Faltam adjetivos para qualificar a atitude deliberada de facilitar a exposição do processo eleitoral brasileiro a ataques de criminosos", declarou o ministro.
Barroso não mencionou que tipos de dados sensíveis foram divulgados pelo presidente, nem mencionou os dados que, em 2018, foram acessados e divulgados pelo hacker que invadiu os sistemas do tribunal por meses, entre abril e setembro daquele ano.
Na notícia-crime enviada ao STF em agosto, que deflagrou a instauração da investigação de Bolsonaro, o TSE elencou uma série de elementos formais que indicariam o caráter sigiloso.
A própria portaria da PF que abriu a investigação sobre o ataque hacker fazia menção ao “acesso e divulgação de dados sigilosos” do TSE. Na mesma época, ao enviar para a PF subsídios para a investigação, o juiz Ricardo Fiorenze, que era auxiliar da então presidente do TSE, Rosa Weber, fazia “explícita anotação de sigilo” no despacho.
Ele também fez uma advertência à PF de que “todas as comunicações” com a Secretaria de Tecnologia da Informação do TSE, que também ajudariam na investigação do ataque hacker, “tinham caráter reservado”. Mais ainda: nos documentos enviados pelo TSE à PF, havia uma tarja vermelha no alto das páginas, com a palavra “sigiloso”.
E, não menos importante, na Justiça Federal, que supervisiona a investigação sobre o ataque hacker, consta na autuação o “segredo de Justiça”.
A avaliação de que havia no inquérito dados sigilosos também é compartilhada por Alexandre de Moraes, relator do inquérito sobre Bolsonaro no STF. Ao instaurá-lo, ele afirmou que “o sigilo dos autos [da investigação sobre o ataque hacker] foi levantado e teve o seu conteúdo parcialmente divulgado pelo presidente da República, em entrevista conjunta com o deputado Felipe Barros” – alguns detalhes da investigação sobre o ataque hacker foram revelados numa entrevista à rádio Jovem Pan, no mesmo dia da divulgação do documento nas redes sociais.
Moraes afirmou ainda que a divulgação, por Bolsonaro, de “dados de inquérito sigiloso” da Polícia Federal “teria o objetivo de expandir a narrativa fraudulenta que se estabelece contra o processo eleitoral brasileiro, com objetivo de tumultuá-lo, dificultá-lo, frustrá-lo ou impedi-lo, atribuindo-lhe, sem quaisquer provas ou indícios, caráter duvidoso acerca de sua lisura”.
O ministro atuou em duas pontas na abertura do inquérito sobre Bolsonaro. Como ministro do TSE, subscreveu a notícia-crime enviada ao STF. Como ministro do STF, recebeu a notícia-crime e instaurou a investigação sobre a divulgação, atribuindo-se a si a relatoria, por ver relação com o inquérito das “fake news”, que apura ofensas aos ministros.
O que diz o delegado que apurou o ataque hacker
Apesar de todos esses elementos apontados pelo TSE, o delegado da PF Victor Neves Feitosa Campos, que até agosto era o responsável pela investigação do ataque hacker à Justiça Eleitoral (ele foi afastado do caso por ordem de Alexandre de Moraes), disse, em depoimento, que não havia sigilo sobre a investigação.
Foi Campos quem, no final de julho do ano passado, com o conhecimento e anuência de seus superiores na Superintendência Regional da PF em Brasília, enviou oficialmente ao deputado Filipe Barros a cópia integral da investigação, atendendo a um pedido do parlamentar, que na época era relator da proposta que pretendia implantar o voto impresso no Brasil.
Em 31 de agosto, em interrogatório no âmbito do inquérito sobre Bolsonaro, Campos disse que não havia segredo de Justiça. “Indagado se referido inquérito se encontrava sob segredo de justiça, respondeu que não”, registra o termo de seu depoimento. “No inquérito não existe nenhuma medida cautelar, bem como não existe nenhuma manifestação judicial quanto a decretação de segredo de Justiça”, afirmou. “Não possui”, respondeu Campos ao ser indagado “se o inquérito possuía algum extrato de documentação classificada como sigilosa”.
Ele acrescentou que nos dois sistemas internos da PF onde tramitam os inquéritos – o Siscart e o Epol – não constava a etiqueta “sigiloso” desde sua instauração. Segundo o delegado, somente após a entrevista em que Bolsonaro falou sobre o inquérito, no dia 4 de agosto – mesma data em que divulgou sua cópia nas redes – um escrivão da PF que o auxiliava no caso “alterou, por iniciativa própria, o status de tal inquérito para etiqueta ‘sigiloso’ para evitar o acesso ou utilização indevida das informações ali constantes”.
O delegado também disse que não havia diligências em andamento no âmbito da investigação quando autorizou seu envio para Filipe Barros, “existindo apenas a pendência de juntada de resposta de ofício do provedor de internet TIM, salvo engano, que tratava de informações de dados cadastrais de IPs”.
Trata-se de uma resposta da empresa contendo o nome de responsáveis por endereços de conexão de onde pode ter partido a invasão aos sistemas do TSE. Essa resposta, porém, ainda não estava no documento compartilhado por Bolsonaro – havia apenas o pedido da própria PF para fornecimento dessas informações, apresentando uma lista de códigos numéricos.
Victor Campos ainda detalhou as circunstâncias em que liberou o acesso de Filipe Barros ao inquérito. Contou que estava de férias, fora do país, e recebeu no dia 12 de julho, pelo celular, uma mensagem do então superintendente da PF em Brasília, Hugo de Barros Correia, comunicando que havia chegado ao órgão um pedido do deputado por uma cópia do inquérito. Correa perguntou se havia diligência em andamento ou segredo de Justiça que impedissem o envio, e Campos respondeu que não, segundo contou no depoimento.
No dia 20, outro superior, o delegado Franco Perazzoni, segundo Campos, também entrou em contato para saber se haveria problema em enviar cópia a Filipe Barros. Ele respondeu que não e então pediu ao escrivão que enviasse o documento por e-mail ao deputado.
No depoimento, Campos também rebateu as alegações do TSE na notícia-crime de que o inquérito seria sigiloso. Afirmou que ele mesmo, como responsável pela investigação, não afirmou na instauração do inquérito que os dados do TSE seriam mesmo sigilosos.
Disse ainda que “não procede” a alegação de que o TSE teria enviado à PF comunicações de “caráter reservado”, porque teriam chegado a ele “informações e dados com a mesma natureza e características das informações constantes na sindicância instaurada pelo TSE, sem qualquer menção de que aquelas informações possuíam caráter reservado ou sigiloso”.
Sobre as tarjas vermelhas com o termo “sigiloso” que aparecem em documentos do inquérito, Campos afirmou que essa impressão “não tem por si só o condão de classificá-lo [o documento] a ponto de restringir o acesso à informação”. “Situação análoga e corriqueira ocorre com alguns documentos que são carimbados como ‘sigiloso’ por escrivães e agentes no âmbito dos inquéritos [...] Se prevalecesse esse entendimento, restringir-se-ia o acesso aos autos com mero carimbo do servidor, sendo que é necessário que haja competência legal para referida classificação”, disse o delegado em seu depoimento.
Por fim, Victor Campos disse que o fato de estar autuado na Justiça Federal com segredo de Justiça “não significa que houve manifestação do juízo sobre tal situação”. Reforçou que não existe nos autos um decreto judicial determinando o sigilo.
O que dizem as áreas de correição e inteligência da PF
Para confirmar como o inquérito sobre o ataque hacker ao TSE saiu da PF, a delegada Denisse Ribeiro, que investiga Bolsonaro perante o STF, consultou o núcleo de correição da corporação, que fiscaliza se há irregularidades nas investigações. Também se manifestou no caso a área de inteligência da PF, para avaliar se, ao enviar uma cópia do inquérito a um parlamentar, o delegado Victor Campos teria cometido alguma infração funcional.
Os dois setores da PF informaram, em relatórios, que não havia um sigilo judicial sobre o inquérito.
Ao analisar o caso, a delegada Danielle de Meneses Oliveira Mady, do Núcleo de Correições da PF, registrou que, ao pedir a investigação sobre a invasão hacker ao TSE, a ministra Rosa Weber “requisitou a adoção das medidas administrativas de polícia judiciária, sem fazer referência à necessidade de classificação do procedimento investigatório correspondente”.
Ela reconheceu que um documento e um envelope contendo arquivos digitais enviados pelo TSE à PF tinham a inscrição “sigiloso”, assim como atos da comissão de sindicância do tribunal, que buscou culpados dentro da Corte pela invasão.
No entanto, registrou que “no que diz respeito ao inquérito policial propriamente dito, não há determinação da autoridade policial ou decisão judicial que determine sua tramitação sob sigilo ou segredo de justiça, nem classificação de documentos ou peças com algum grau de reserva”.
Ela também constatou que, na Justiça Federal, a investigação está “sob segredo”. “De toda sorte, este núcleo não dispõe de informações técnicas para afirmar se a classificação de ‘segredo de justiça’ no PJe [processo judicial eletrônico, sistema oficial de tramitação] foi realizada manualmente pelo usuário (EPF Bruce) ou de modo automatizado pelo sistema quando do cadastramento de medidas cautelares em geral”, escreveu a delegada – EPF Bruce é o escrivão que auxiliava o delegado Victor Campos no caso.
A área de correição da PF também encaminhou documento ao STF em que apresenta as conclusões da sindicância interna aberta para averiguar se houve irregularidades no caso. No documento, reafirma que o inquérito do ataque hacker ao TSE não estava sob segredo de Justiça, mas informa que havia sigilo interno imposto a todas as investigações da PF. Nesse documento, porém, a Polícia Federal afirma não ter ocorrido infração ao repassar o inquérito ao deputado Filipe Barros, que havia solicitou acesso à investigação por meio de um ofício enviado à PF.
Consultada, a 12ª Vara Federal de Brasília, onde tramita o inquérito, informou que “por se tratar de IPL, via de regra, o procedimento já possui caráter sigiloso e que quem é habilitado a colocar o segredo de justiça nos procedimentos são MP, PF e a Justiça”. Afirmou, por outro lado, “que não poderia informar quem ou quando foi inserido o segredo de justiça”.
A área de inteligência da PF, por sua vez, informou que não havia sigilo judicial. Chefe do setor, o delegado Daniel Carvalho Brasil Nascimento escreveu, em relatório, que “o referido inquérito policial federal não restava abarcado por decisão judicial de sigilo, bem como não havia medida cautelar sigilosa em andamento”. Depois, fez uma ressalva: a investigação “apresentava o sigilo relativo próprio dos procedimentos de investigação criminal”.
Nascimento, com isso, concluiu o delegado Victor Campos não cometeu falta funcional. Registrou que ele atendeu a um pedido de um deputado com o aval de superiores.
“Não houve dolo direto de revelar informação, mas de atender solicitação de deputado federal em nome de comissão especial da Câmara dos Deputados devidamente motivada sob fundamento de interesse público. A concessão da cópia, inclusive, foi registrada nos devidos sistemas da Polícia Federal às claras sem nenhum indicativo de intento de transmissão sub-reptícia de informação sigilosa”, escreveu o chefe da inteligência.
O que diz o deputado Filipe Barros
O deputado Filipe Barros, que obteve o inquérito em primeira mão diretamente na PF, deu declarações contraditórias sobre sua classificação. No dia 4 de agosto, durante a entrevista ao lado de Bolsonaro em que comentou trechos da investigação, disse expressamente: “Esse inquérito, ele corre sob segredo de Justiça”.
Por outro lado, relatou que, quando pediu ao delegado uma cópia, deixou claro que, se houvesse algum prejuízo para a investigação, “ele não precisaria me mandar”. Isso, de fato, constou do fim do ofício enviado à PF em que solicitou a cópia. “Alternativamente, caso o franqueamento de amplo acesso ao teor do Inquérito em questão prejudique os andamentos das investigações, requer-se a concessão parcial de cópias, devendo ser excluída a parte de diligências ainda não cumpridas”, diz o ofício enviado à PF assinado por Barros.
Durante os debates sobre o voto impresso, a comissão especial que analisava a proposta aprovou requerimento para obter da PF investigações sobre tentativas de ataques às urnas eletrônicas. Foi essa a origem do ofício de Barros solicitando a cópia do inquérito.
Em setembro, ao depor, Filipe Barros mudou o discurso: disse que não havia sigilo no inquérito.
No interrogatório, a delegada Denisse Ribeiro o questionou se, ao compartilhar com outros deputados e especialistas a cópia da investigação, os alertou que havia um “sigilo legal imposto a investigações em andamento”. Ele respondeu que “não existia sigilo no inquérito policial”. Acrescentou que isso estaria na própria resposta do delegado que enviou a cópia – no e-mail, Victor Campos anexou o arquivo e nada mencionou sobre a existência de sigilo ou a eventual necessidade de preservá-lo dentro da Câmara dos Deputados.
Além de repetir que não havia sigilo, Filipe Barros também negou qualquer desvio de finalidade na divulgação do inquérito. Isso porque, para a delegada Denisse Ribeiro, a obtenção do documento deveria servir apenas para os debates internos entre deputados sobre o voto impresso, não para sua ampla difusão na internet.
O que diz a delegada que investiga Bolsonaro
Para fundamentar a conclusão de que Bolsonaro e Filipe Barros teriam cometido o crime de violação de sigilo funcional, a delegada da PF Denisse Ribeiro afirmou, no relatório final da investigação, que, apesar de não haver um sigilo judicial sobre o inquérito, haveria um “sigilo legal”, imposto pelo artigo 20 do Código de Processo Penal.
O dispositivo diz que “a autoridade assegurará no inquérito o sigilo necessário à elucidação do fato ou exigido pelo interesse da sociedade”.
“Desnecessário ingressar na discussão relativa ao sigilo de documentos enviados pelo Tribunal Superior Eleitoral ou à presença ou não de documentos classificados em seu interior, pois o inquérito policial, ao contrário do processo judicial, possui como regra o sigilo, conforme doutrina majoritária, posicionamento dos tribunais (inclusive súmula 14 do STF) e diante do artigo 20 do Código de Processo Penal”, escreveu a delegada.
No relatório, ela não citou as declarações do delegado do caso, Victor Campos, de que não haveria sigilo na investigação nem haveria prejuízo com o envio de cópia à Câmara dos Deputados. Mas registra que, na própria investigação sobre o ataque, Campos havia pedido à TIM a identificação de pessoas responsáveis por alguns IPs – “internet protocols”, endereço de conexão que possibilita identificar os responsáveis pelas máquinas de onde teriam partido os ataques ao TSE. A resposta da empresa, no entanto, listando essas pessoas, não estava no documento divulgado nas redes, porque ainda não havia sido juntada ao arquivo obtido pelo presidente.
Mesmo assim, Denisse Ribeiro concluiu que “o inquérito policial mencionado continha diligências investigativas sigilosas em andamento e que não deveriam ter sido publicizadas a particulares, pois estavam relacionadas à apuração em curso”. Cita trecho da própria requisição à TIM em que Campos advertia que a divulgação desse documento a terceiros caracterizaria crime.
Denisse Ribeiro ainda sustentou que Filipe Barros tinha a “consciência” de que o inquérito era sigiloso e que houve um “desvio de finalidade” em sua divulgação para o público.
“A solicitação da documentação era feita com uma nítida finalidade: subsidiar as discussões que eram da relatoria de Filipe Barros no âmbito da PEC n.º 135/2019. Significa dizer que essa finalidade apontada no pedido do parlamentar foi a motivação do ato administrativo do presidente da investigação [delegado Victor Campos] para compartilhar conteúdo do inquérito, cujo sigilo é imposto por lei. Dizendo ainda de outra maneira: se a finalidade indicada fosse para subsidiar uma live presidencial, a entrega da cópia do inquérito policial teria sido indeferida”, afirmou no relatório Denisse Ribeiro.
Por isso, ela concluiu que Bolsonaro e Filipe Barros “revelaram fatos que tiveram conhecimento em razão do cargo e que deveria [sic] permanecer em segredo até conclusão das investigações”. Apontou, por fim, “danos à administração pela vulnerabilização da confiança da sociedade no sistema eleitoral brasileiro e no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), tudo com a adesão voluntária e consciente do próprio mandatário da nação”.
O que diz a AGU, que defende Bolsonaro
A principal linha da defesa de Bolsonaro, feita pela Advocacia-Geral da União (AGU), é de que não houve crime porque não haveria sigilo judicial no inquérito divulgado. Em manifestação enviada em janeiro ao STF, o advogado-geral da União, Bruno Bianco, defendeu o arquivamento da investigação aberta contra o presidente por “atipicidade”.
Ressaltou, para isso, o depoimento do delegado da PF Victor Campos, que confirmou não havia sigilo nem diligências em andamento (o que também justificaria a restrição de acesso), tampouco prejuízo à própria apuração do ataque hacker ao TSE. Destacou ainda o fato de o sigilo só ter sido imposto ao inquérito por um escrivão após a divulgação de seu teor por Bolsonaro.
“Se está diante de crime impossível, ante a absoluta impropriedade do objeto (documento público), vale dizer, a ausência de cláusula de sigilo do inquérito, somada à expressa autorização da PF para o seu manuseio em seara de amplo alcance social (Câmara dos Deputados), o que automaticamente repercute em esvaziamento de qualquer debate direcionado sobre existência de crime, visto que não há falar em consumação”, afirmou a AGU.
O órgão também descartou um suposto desvio de finalidade na divulgação do inquérito nas redes sociais. “Não há distinção de essência ou de alcance entre a publicidade na Comissão Especial da Câmara e aquela conferida em rede social de qualquer cidadão”, salientou.
A AGU também argumentou que, ainda que houvesse sigilo na investigação, a partir do momento em que ela foi oficialmente compartilhada pela PF com Filipe Barros, sua divulgação por Bolsonaro ocorreu de “boa-fé”, por entender que não haveria problema em publicar o arquivo nas redes. Seria assim uma contradição a PF ceder o documento, na pessoa do delegado Victor Campos, e depois, na pessoa da delegada Denisse Ribeiro, imputar crime ao presidente por divulgá-lo.
“Em sua percepção da realidade, [o presidente] julgava ter em mãos documento público, a par de todas as cautelas descritas anteriormente e dos expressos termos dos ofícios do deputado federal e do delegado condutor do inquérito”, afirmou a AGU.
Por fim, afirmou que não seria possível imputar crimes a Bolsonaro por ausência de dolo, isto é, intenção de divulgar dados sigilosos do TSE – o intuito seria apenas mostrar vulnerabilidades no sistema eletrônico de votação, no contexto das discussões sobre a PEC do voto impresso.
O que já disse a PGR sobre o caso
Dentro da investigação sobre Bolsonaro no STF, a PGR fez apenas algumas considerações no início do caso quando consultada. O próprio procurador-geral da República, Augusto Aras, evitou afirmar taxativamente que o inquérito sobre o ataque hacker ao TSE seria sigiloso – atribuiu essa caracterização à própria Corte Eleitoral.
“Há nos autos indícios de que foram reveladas informações relacionadas ao conteúdo do inquérito policial 1361/2018-SR/PF/DF, o qual, segundo a notícia-crime apresentada pelo Tribunal Superior Eleitoral, tramitava em sigilo. Além disso, os elementos colhidos demonstram a existência de anotações do selo de sigilo naquele procedimento, o que justifica a necessidade da manutenção da investigação, inclusive para se chegar à alegada atipicidade”, escreveu o procurador-geral em outubro, ao endossar a continuidade da investigação.
Antes, em agosto, ele sugeria que, na apuração, fossem juntados dados relacionados ao inquérito da PF “a fim de deixar estreme de dúvidas o caráter sigiloso da tramitação dos autos”. Pediu também que se anexasse ao inquérito a capa da investigação sobre o ataque hacker, para verificar se nela havia a tarja vermelha de sigilo – não havia.
Caberá agora a Aras fazer a análise final, considerando tudo que foi apurado na investigação durante os meses seguintes.