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“Tentar calar o outro é uma constante”, disse Cármen Lúcia em 2015
“Tentar calar o outro é uma constante”, disse Cármen Lúcia em 2015| Foto: Antonio Augusto/SCO/STF

A ministra Cármen Lúcia, do Supremo Tribunal Federal (STF), estará, nos próximos meses, no centro das atenções do governo e da oposição, por ter sido sorteada para relatar uma investigação, encomendada pelo Palácio do Planalto, para combater supostas “fake news” sobre a atuação dos órgãos federais na ajuda às vítimas das enchentes no Rio Grande do Sul. A apreensão se dá pelo risco de ela reproduzir os métodos de Alexandre de Moraes na investigação. O histórico recente da ministra, em defesa do inquérito das fake news, dá uma pista, embora anteriormente ela tenha se destacado como avessa a qualquer censura.

Em 2015, Cármen Lúcia citou, no plenário do Supremo Tribunal Federal (STF), o ditado popular que virou símbolo de uma tendência liberalizante da Corte no direito à manifestação do pensamento. “Cala a boca já morreu, quem manda em minha boca sou eu”, disse a ministra no voto, seguido por unanimidade pelos colegas, no qual foi declarada inconstitucional a necessidade autorização prévia de uma personalidade para publicação de sua biografia.

Na época, Cármen Lúcia disse que a “musiquinha” da infância não era uma realidade no país. “Tentar calar o outro é uma constante. Mas na vida aprendi que quem, por direito, não é senhor do seu dizer, não se pode dizer senhor de qualquer direito”, afirmou no julgamento.

Já em 2022, outra frase da ministra sintetizou o caráter restritivo adotado pelas cortes superiores na liberdade de expressão. Foi na sessão em que o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) impediu o lançamento de um documentário inédito, e que os ministros sequer haviam assistido. “Temos uma jurisprudência no STF, na esteira da Constituição, no sentido do impedimento de qualquer forma de censura. E medidas como essas, mesmo em face de liminar, precisam ser tomadas como se fosse algo que pode ser um veneno ou um remédio”, afirmou, ao aderir à proibição da Brasil Paralelo de exibir o filme na semana do segundo turno da eleição presidencial – a obra tratava do atentado à vida do ex-presidente Jair Bolsonaro, que concorria à reeleição.

O período de sete anos marcou a guinada não só de Cármen Lúcia, mas da maioria do STF à severidade de Alexandre de Moraes na vigilância do que trafega na internet, por meio do inquérito das fake news, aberto em 2019, e de seus derivados, como os inquéritos dos atos antidemocráticos e o das milícias digitais. Em nome da defesa da democracia e das instituições, Moraes passou a remover das redes sociais manifestações de revolta contra decisões da Corte, em parte ofensivas, com o argumento de que ameaçam os ministros e a independência do STF para julgar. Se Cármen Lúcia antes era uma das vozes mais ativas na liberdade de expressão, passou a acompanhar, na maioria das vezes e de forma discreta, os atos de Moraes.

O pedido de um novo inquérito, para apurar as “fake news” do Rio Grande do Sul, partiu de Paulo Pimenta, ex-deputado gaúcho, ex-ministro da Secretaria de Comunicação e atual ministro da recém-lançada Secretaria Extraordinária para Apoio à Reconstrução do Rio Grande do Sul. O pedido mira influenciadores, parlamentares e jornalistas críticos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Para Pimenta, eles estariam impactando a credibilidade do Exército, da Força Aérea Brasileira, da Polícia Rodoviária Federal e de pastas do Executivo ao apontarem problemas e criticarem as ações de resposta ao desastre.

Para analistas, caberá agora a Cármen Lúcia definir se segue Moraes, não para proteger o STF, mas o governo, mais sujeito, naturalmente, a críticas de natureza política. O advogado André Marsiglia, que milita no campo da liberdade de expressão, escreveu que os políticos agora querem a mesma blindagem conferida aos ministros pelos inquéritos de Moraes. “Pensaram com seus botões: já que a censura se normalizou contra críticos do Judiciário, vamos aproveitá-la contra nossos críticos também”, escreveu, em artigo para o site Poder360.

Votos e manifestações públicas de Cármen Lúcia

Nesta reportagem da Gazeta do Povo, selecionamos votos e manifestações públicas da ministra Cármen Lúcia, nos últimos anos, que marcaram visão restritiva da liberdade de expressão quando as manifestações colocam em xeque, segundo seu entendimento, o regime democrático.

O primeiro ato eloquente de apoio de Cármen Lúcia ao inquérito das fake news ocorreu em 2020, quando o plenário do STF rejeitou uma ação para declarar inconstitucional a investigação. “Liberdade de expressão não pode ser biombo para criminalidade e para impunidade”, afirmou ela, ao votar a favor da manutenção da investigação. “Discursos de ódio, discursos de destruição do Estado Democrático, falas de incitação a crime são contrários ao Direito, são contrários aos valores de humanidade, da dignidade humana, da pluralidade democrática.”

Em 2021 e 2022, Cármen Lúcia juntou-se a Moraes para aceitar a denúncia e depois condenar o ex-deputado federal Daniel Silveira por ameaças aos ministros e ao STF. “O que se tem é a incitação contra instituições que garantem a democracia (...) a democracia sendo destruída pelas instituições e por integrantes dessas instituições e, em um objetivo muito maior, o Supremo Tribunal Federal”, afirmou. “Não estamos falando, em nenhum momento, de possibilitar, em qualquer caso, em qualquer condição, cerceamento à liberdade, mas do não uso de qualquer instrumento, seja uma caneta, seja uma expressão, como instrumento de crime”, disse depois.

Em 2022, como vice-presidente do TSE, Cármen Lúcia adere de forma mais clara às posições de Moraes, no comando da Corte, no julgamento das propagandas eleitorais, com decisões, em geral, favoráveis à campanha de Lula e desfavoráveis à de Bolsonaro.

Em setembro, ela negou um pedido de Bolsonaro para retirar do YouTube vídeos em que Lula o chamava de genocida. “Há de se registrar, na linha do que decidido pelo Supremo Tribunal Federal, que ‘o direito fundamental à liberdade de expressão não se direciona somente a proteger as opiniões supostamente verdadeiras, admiráveis ou convencionais, mas também aquelas que são duvidosas, exageradas, condenáveis, satíricas, humorísticas, bem como as não compartilhadas pelas maiorias. Ressalte-se que, mesmo as declarações errôneas, estão sob a guarda dessa garantia constitucional”, escreveu no voto, citando decisão de Moraes no STF.

Em outubro, Cármen Lúcia, no entanto, votou pela remoção de propaganda de Bolsonaro que mostravam declarações de Lula favoráveis à legalização do aborto. Para ela, como o petista não havia apresentado projeto de lei para isso, tratava-se, para ela, de uma peça de desinformação. “As publicidades não são críticas políticas ou legítima manifestação de pensamento. O que se tem é a veiculação de desinformação, mensagem distorcida e ofensiva à honra e à imagem de candidato à Presidência da República, o que pode conduzir, em alguma medida, à repercussão ou interferência negativa no pleito”, escreveu na decisão.

Ainda antes do segundo turno, Moraes aprovou, com o voto favorável de Cármen Lúcia, uma resolução dando a ele o poder de remover de ofício, sem pedido das partes ofendidas, postagens com conteúdo “sabidamente inverídico ou gravemente descontextualizado”. A norma ainda dava a ele poder de suspender perfis ou mesmo bloquear uma plataforma em caso de produção sistemática de “fake news”. O ato foi questionado pela Procuradoria-Geral da República no STF e Cármen Lúcia votou a favor de sua manutenção.

Neste ano, com auxílio de Moraes, Cármen Lúcia editou uma nova resolução que incorpora regras do Projeto de Lei 2630/2020, mais conhecido como "PL da Censura", por obrigar as plataformas a removerem, de forma autônoma e sem necessidade de decisão judicial, postagens consideradas antidemocráticas ou com discurso de ódio, sob pena de multa. Como mostrou a Gazeta do Povo, a norma entra em conflito com o Marco Civil da Internet e com a Lei das Eleições, que exigem prévia avaliação do Judiciário para retirada de conteúdo da internet.

“Nós não queremos é que seja um eleitor chipado, que põe um chip e ele fica vivendo a ilusão de que aquilo é o exercício da liberdade do voto”, disse, em referência à proibição nas campanhas de “deepfakes” (imagens ou áudios falsos, mas hiper-realistas) criados com inteligência artificial.

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