A ministra do Supremo Tribunal Federal (STF) Cármen Lúcia determinou na terça-feira (4) que o Ministério da Justiça preste informações em 48 horas sobre um suposto dossiê elaborado pela Secretaria de Operações Integradas (Seopi) contra 579 servidores federais, estaduais e municipais identificados como "antifascistas". Esse e outros episódios recentes levantaram críticas de que o Planalto estaria tentando recriar uma espécie de Sistema Nacional de Informações (SNI), o serviço de inteligência da ditadura militar usado para monitorar e perseguir adversários do regime.
Mas o que há de concreto na suspeita de que o governo estaria montando um aparato estatal para obter informações de opositores?
Além do caso do suposto dossiê do Ministério da Justiça, há outros fatos que alimentam as suspeitas.
O presidente Jair Bolsonaro externou, em abril, sua irritação com as informações que recebia de órgãos de inteligência do governo.
O ex-ministro Sergio Moro afirmou, após deixar o governo, que haveria um plano do vereador Carlos Bolsonaro, filho do presidente, de montar uma central de inteligência paralela no Planalto. Moro também acusou Bolsonaro de tentar interferir na Polícia Federal (PF), num episódio que revelou a vontade do presidente de ter acesso a dados de inteligência policial.
O governo também promoveu recentes mudanças na Agência Brasileira de Inteligência (Abin), que foi reforçada. E há ainda o temor de procuradores de que alguns movimentos recentes do governo tenham como objetivo acessar informações de investigações do Ministério Público Federal (MPF).
Insatisfação de Bolsonaro com a inteligência
Na reunião ministerial do dia 22 de abril, tornada pública por uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), o presidente Jair Bolsonaro reclamou do sistema de inteligência do governo brasileiro e chegou a dizer que seu sistema de informações particular funcionava melhor.
“Sistemas de informações: o meu funciona”, disse Bolsonaro. “O meu particular funciona. Os ofi... que tem oficialmente, desinforma. E voltando ao ... ao tema: prefiro não ter informação do que ser desinformado por sistema de informações que eu tenho”, completou o presidente.
“Eu tenho as ... as inteligências das Forças Armadas que não tenho informações. Abin tem os seus problemas, tenho algumas informações. Só não tenho mais porque tá faltando, realmente, temos problemas, pô! Aparelhamento etc. Mas a gente não pode viver sem informação”, disse, em outro ponto da reunião.
Troca de comando na PF por falta de relatórios de inteligência
O primeiro sinal de insatisfação de Bolsonaro com o sistema de inteligência brasileiro foi a troca no comando da Polícia Federal (PF), que culminou na saída de Sergio Moro, ex-ministro da Justiça. Moro acusou o presidente de tentar interferir politicamente na PF e um inquérito foi aberto no STF para averiguar as acusações. O caso ainda tramita na Corte, em sigilo, e o presidente nega que tenha havido interferência indevida.
No mesmo dia em que Moro anunciou a saída do governo, Bolsonaro veio a público para reclamar da gestão do ex-ministro. Entre as reclamações, o presidente argumentou que não recebia relatórios de inteligência produzidos pela PF. À época, a Associação Nacional dos Delegados de Polícia Federal (ADPF) informou que repassar informações ao presidente não é uma atribuição legal da PF.
Com a saída de Moro do Ministério da Justiça, Bolsonaro tentou nomear Alexandre Ramagem, diretor-geral da Abin, para o comando da PF. A nomeação foi barrada pelo STF e quem acabou assumindo o cargo foi Rolando de Souza. Já nos primeiros dias à frente da direção-geral, Souza promoveu mudanças no comando da PF no Rio de Janeiro – uma demanda de Bolsonaro.
Acusação de que haveria um plano de montar uma "Abin paralela"
Logo após deixar o governo, o ex-ministro Sergio Moro disse, em uma entrevista à revista Crusoé, sobre um suposto plano do vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos-RJ) de criar um sistema de inteligência particular no Palácio do Planalto, uma espécie de "Abin paralela".
“[Houve] solicitações informais para que nós cedêssemos um número até significativo de policiais federais para atuar diretamente no Palácio do Planalto”, disse Moro. Segundo Moro, eram cinco policiais federais que teriam sido convocados informalmente para atuar no Planalto, nessa suposta Abin paralela. Isso teria ocorrido no início de 2019, ainda durante o começo da atual gestão. Segundo Moro, o plano, contudo, foi abortado.
Dossiê contra os "antifascistas" do Ministério da Justiça
No Ministério da Justiça, comandado pelo ministro André Mendonça após a demissão de Sergio Moro, a Secretaria de Operações Integradas (Seopi) teria elaborado um dossiê com nomes – e em alguns casos fotografias e perfis nas redes sociais – de 579 servidores federais e estaduais da área de segurança( como policiais civis e militares, bombeiros e guardas municipais), além de três professores universitário. Eles estariam identificados, nesse relatório, como integrantes do "movimento antifascismo" – crítico de Bolsonaro.
Alvo do suposto dossiê, o antropólogo Luiz Eduardo Soares foi um dos que comparou a suposta ofensiva do governo de obter dados de cidadãos que vê como adversários como uma tentativa de recriar o SNI. “A recriação do velho SNI deixou de ser o sonho de Bolsonaro para se tornar o pesadelo da sociedade brasileira”, disse Soares em entrevista ao jornal El País.
A informação da existência do suposto dossiê foi divulgada inicialmente pelo portal UOL. Na ocasião, o Ministério da Justiça informou que o relatório não configura investigação e se concentra exclusivamente na "prevenção da prática de ilícitos e à preservação da segurança das pessoas e do patrimônio público". Algumas manifestações recentes contra o governo promovidas por grupos que se intitulavam "antifascistas" terminaram em violência e vandalismo nas ruas.
Já em entrevista à Globonews no último fim de semana, o ministro André Mendonça disse que não poderia negar nem confirmar a existência do dossiê. Ainda assim, ele abriu a possibilidade de que, havendo um dossiê, se trata de uma atividade de inteligência do ministério.
“A lei prevê que relatórios e dados de inteligência não podem ser divulgados de forma indistinta. Isso seria um crime da minha parte se eu o fizesse. Então eu não posso nem confirmar, nem negar a existência não só de um, como de qualquer relatório de inteligência”, disse Mendonça à Globonews.
Após a repercussão negativa de suas declarações e diante da ameaça de ser convocado a prestar esclarecimentos no Congresso, Mendonça afirmou na última segunda-feira (3) que substituiu o chefe da Diretoria de Inteligência da Seopi, Gilson Libório, e que a Corregedoria do Ministério da Justiça instaurou uma sindicância para investigar o caso. O ministro também se colocou à disposição para prestar esclarecimentos à Comissão Mista de Investigação da Atividade de Inteligência do Congresso.
Em entrevista ao programa Roda Viva (TV Cultura) na última segunda-feira (03), o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ) disse que a situação de Mendonça fica “pior a cada dia”.
"O governo pode fazer esse tipo de pesquisa? Estamos diante de uma violação de direitos fundamentais?", perguntou a Maia uma jornalista da bancada. "Se ele [ministro da Justiça] demitiu um assessor hoje, é porque não pode. E, se não pode, cabe ao ministro uma explicação à sociedade. Se eu fosse o ministro, eu iria ao Congresso, em uma sessão das duas Casas. Me parece muito grave esse tipo de atitude”, disse Maia.
O caso também foi parar no STF. E, na terça (4), a ministra Cármen Lúcia pediu explicações formais a Mendonça. Em sua decisão, ela afirma que, se o dossiê do Ministério da Justiça for mesmo real, é incompatível com o Estado Democrático de Direito.
"A gravidade do quadro descrito, que – a se comprovar verdadeiro – escancara comportamento incompatível com os mais basilares princípios democráticos do Estado de Direito e que põem em risco a rigorosa e intransponível observância dos preceitos fundamentais da Constituição da República", escreveu Cármen Lúcia em seu despacho.
Reforço e mudanças na estrutura da Abin
Na semana passada, o presidente assinou um decreto que aumenta o número de cargos na Agência Brasileira de Inteligência (Abin), altera a organização da instituição, cria um novo órgão dentro de sua estrutura e permite o treinamento em inteligência de pessoas não concursadas – tais como funcionários comissionados do governo, que são de indicação política.
As alterações dão ao diretor-geral da Abin, Alexandre Ramagem, um poder maior de investigação. O texto cria o Centro de Inteligência Nacional, que tem como atribuição “planejar e executar atividades de inteligência destinadas ao enfrentamento de ameaças à segurança e à estabilidade do Estado e da sociedade; e ao assessoramento dos órgãos competentes no que se que refere a atividades e políticas de segurança pública e à identificação de ameaças decorrentes de atividades criminosas”.
O decreto também abre uma brecha para que a Escola de Inteligência da Abin treine funcionários sem concurso público, o que era proibido a partir de um decreto assinado pelo ex-presidente Michel Temer (MDB), em 2016.
O governo não se manifestou publicamente sobre as alterações na Abin.
Acesso a dados de investigações do MPF
O governo federal também negocia outra medida que pode dar acesso ao governo Bolsonaro a informações de investigações sigilosas do Ministério Público Federal (MPF). O STF, o governo federal, a PGR e o Tribunal de Contas da União (TCU) estão negociando, em conjunto, uma resolução para tirar do MPF a possibilidade de o órgão, individualmente, negociar e firmar acordos de leniência com empresas envolvidas em casos de corrupção.
Pela minuta da proposta, a condução das negociações dos acordos e a sua assinatura final passariam a ser de responsabilidade de dois órgãos do governo federal: a Controladoria-Geral da União (CGU) e na Advocacia-Geral da União (AGU).
Oficialmente, a proposta é apresentada como uma iniciativa para dar segurança jurídica, pois atualmente haveria muitos órgãos concorrendo nas negociações dos acordos de leniência – uma espécie de delação premiada das empresas.
Mas o anteprojeto permite ao governo federal ter acesso a investigações. Segundo o texto da resolução, se o MPF ou Polícia Federal (PF) verificarem o envolvimento de uma empresa em casos de corrupção, isso tem de ser informado à CGU e à AGU.
Haveria uma exceção: quando isso pudesse colocar as investigações em risco. Mas investigadores do MPF avaliam que, ainda com essa exceção, haverá brecha para que o governo tenha informações de diversas investigações sigilosas em andamento pelo país.
Em paralelo a essa iniciativa, procuradores da Lava Jato também levantaram a suspeita de que a recente ofensiva do procurador-geral da República, Augusto Aras, em obter dados sigilosos da operação tenha como objetivo favorecer o presidente Jair Bolsonaro. Investigadores da força-tarefa temem que as informações coletadas pela Procuradoria-Geral da República (PGR) possam ser usadas para perseguição política de adversários de Bolsonaro.
Aras foi indicado por Bolsonaro ao cargo mesmo não estando na lista tríplice elaborada após eleição interna no MPF. Legalmente, o presidente não é obrigado a indicar um nome da lista para a Procuradoria-Geral da República (PGR), mas Bolsonaro quebrou uma tradição interna do MPF e virou alvo de críticas de que agiu de forma política na escolha de Aras.
O que foi o SNI e quando foi extinto
O Serviço Nacional de Informações (SNI) nasceu dois meses após o golpe que culminou na ditadura militar. Em 13 de junho de 1964, o general-presidente Castelo Branco assinou a Lei n. 4.341, que criou o SNI. Subordinado diretamente ao presidente da República, o serviço tinha a missão de coordenar, em todo o território nacional e no exterior, as atividades de informação e contrainformação.
O SNI se tornou o principal órgão de espionagem da ditadura e peça-chave do Sistema Nacional de Informações (Sisni). Além de se articular com os serviços de informação da Marinha, Exército e Aeronáutica, o SNI também trocava informações com a PF, os Dops estaduais e os serviços secretos das polícias militares.
Em ministérios civis, empresas públicas e estatais foram instaladas as Assessorias de Segurança e Informação (ASIs), que eram um braço do serviço secreto de inteligência, usadas para vigilância política de funcionários e ministros.
No início dos anos 1980, o general Golbery do Couto e Silva (1911-1987), um dos idealizadores do SNI, reconheceu que tinha “criado um monstro”. Atualmente, o acervo de informações produzidas pelo SNI está sob a guarda do Arquivo Nacional, órgão vinculado ao Ministério da Justiça.
Segundo um levantamento dos pesquisadores da coordenação regional do Arquivo Nacional Vivien Ishaq e Pablo Franco, foram produzidos pelo SNI menos 308 mil prontuários de pessoas e instituições, registrados em 220 mil microfichas e 74 caixas-arquivo. Além do acervo conservado, há arquivos que foram destruídos nos anos finais da ditadura.
Com o fim da ditadura, o ex-presidente Fernando Collor de Mello extinguiu o SNI em 1990, atribuindo à Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República a responsabilidade de assumir as funções que não foram transferidas para a Polícia Federal.
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