Os primeiros casos confirmados da Covid-19 no Brasil estavam restritos a pessoas que haviam viajado para fora do país, de classes sociais altas e moradores de capitais. O cenário mudou muito rapidamente e houve um processo de interiorização da pandemia: o coronavírus agora está espalhado pelo interior do país, e 60% dos 5,5 mil municípios já registram ao menos um caso confirmado da doença.
A interiorização do coronavírus é perigosa por dois fatores principais. Primeiro porque explicita o pouco controle do país em relação ao contágio do vírus – tanto que possivelmente o vírus já circulava no país um mês antes do primeiro caso confirmado. Além disso, essas cidades não contam com redes de saúde estruturadas para tratar os casos graves, o que pressiona os sistemas de municípios maiores, que também podem colapsar.
De acordo com dados do Ministério da Saúde divulgados em boletim na segunda-feira (17), que mostram a situação epidemiológica do Brasil até o dia 17 de maio, 3.270 municípios já haviam registrado casos da doença, o que corresponde a 58,7% do total. Levantamento feito pela Gazeta do Povo aponta que 2.606 dessas cidades têm até 50 mil habitantes.
Apesar da quantidade, elas concentram pouco mais de 30,2 mil dos 241.080 casos que haviam sido confirmados até essa data. Isso acontece porque são 33 cidades brasileiras que concentram mais casos confirmados, com mais de mil ocorrências. Todas elas possuem mais de 100 mil habitantes. A maior parte das cidades – 2.354, no total – tem entre 101 e 1.000 casos confirmados de coronavírus.
Já em relação às mortes, 1.220 municípios já registraram óbitos pela Covid-19, segundo o balanço do Ministério da Saúde, o que representa 21,9% do total. As cidades com até 50 mil habitantes somam quase 1,4 mil mortes das 16.118 que haviam sido confirmadas até o dia 17 de maio, aponta o levantamento feito pela reportagem da Gazeta do Povo. As mortes pelo coronavírus estão concentradas em 35 municípios, que registravam mais de 50 óbitos – juntos, eles somavam 11.075 mortes.
Entenda a interiorização do coronavírus
Tamanho das cidades | Total de cidades | Casos confirmados | Mortes |
Acima de 10 milhões | 1 | 35.931 | 2.835 |
Entre 1 e 10 milhões | 16 | 79.064 | 6.402 |
Entre 500 mil e 1 milhão | 31 | 27.003 | 1.548 |
Entre 100 e 500 mil | 275 | 49.942 | 3.007 |
Entre 50 e 100 mil | 341 | 17.908 | 916 |
Entre 10 e 50 mil | 1.803 | 26.867 | 1.248 |
Entre 5 mil e 10 mil | 496 | 2.337 | 106 |
Até 5 mil habitantes | 307 | 1.049 | 43 |
Os perigos da interiorização do coronavírus
Embora os números de casos e mortes confirmadas pela Covid-19 sejam maiores nos grandes centros, a rápida capilarização do vírus chamou a atenção dos pesquisadores brasileiros.
No início de maio, pesquisadores do Instituto de Comunicação e Informação em Saúde (Icict/Fiocruz) já alertavam para a preocupante tendência de interiorização do coronavírus, porque o vírus chegava de forma acelerada no país. A equipe da Fiocruz se debruçou sobre dados do IBGE, que antecipou a pesquisa Regiões de Influência das Cidades (Regic) 2018 para a Fiocruz e Ministério da Saúde, sobre os deslocamentos da população para cidades em busca de serviços de saúde.
A conclusão foi de que, embora o coronavírus tenha se disseminado inicialmente nas grandes metrópoles, conectadas sobretudo por linhas aéreas nacionais e internacionais, o vírus alcançou outro patamar para chegar aos municípios de menor porte. Seja por via rodoviária ou fluvial, a Covid-19 se alastrou rapidamente em regiões que não possuem recursos de saúde suficientes para fazer frente à epidemia.
“Os municípios do Brasil não funcionam de forma isolada, existe uma rede de conexões de oferta de bens e serviços entre as cidades, que se conectam a partir de estradas, hidrovias e ferrovias e desta maneira permite o deslocamento das populações através dessas redes em busca de serviços especializados, bens e mercadorias”, apontavam os pesquisadores. O vírus se serviu dessa rede para se disseminar.
Para comprovar a capilarização da doença, a Fiocruz usou dois recortes de dados sobre o coronavírus, comparando o acumulado de casos na semana de 27 de março a 2 de abril e na semana de 17 a 23 de abril. Embora a velocidade de dispersão da epidemia fosse maior nas regiões em que havia contingentes populacionais maiores, foi observado rápido aumento nas regiões com menos habitantes, inclusive uma tendência de concentração de casos na faixa litorânea.
Interior não tem redes de saúde adequadas
O rápido avanço para o interior, apontam os pesquisadores da Fiocruz, esbarra nas más condições das redes de saúde dessas cidades. Embora as cidades pequenas até consigam ter uma taxa de médicos por 10 mil habitantes similar a dos municípios maiores, faltam leitos de UTI e respiradores.
De acordo com a pesquisa, considerando um parâmetro recomendado de oito profissionais médicos para cada 10 mil habitantes, havia áreas do interior da Bahia, Pará, Maranhão, norte do Mato Grosso, sul de Rondônia e oeste do Acre e Amazonas abaixo desse indicador. Essas são regiões que já sofrem com a insuficiência desses profissionais, conforme apontamento de levantamentos anteriores, o que evidencia “a necessidade de contratação de profissionais nessas áreas, de forma a atender o mínimo de profissionais recomendados pelo parâmetro utilizado”, diz o documento.
A falta de recursos físicos também chamou a atenção. Os poucos leitos de UTI disponíveis já indicavam problemas para a rede de saúde. O levantamento da Fiocruz mostrou que as regiões em que a quantidade de habitantes era inferior a 20 mil habitantes não tinham leitos de UTI. “Com exceção do contingente com mais de 500 mil habitantes, o valor mínimo da taxa de leitos de UTI por 100 mil habitantes é de zero”, mostrou o estudo.
A Fiocruz também mapeou as localidades mais problemáticas. “As regiões sem disponibilidade de leitos de UTI ocorrem de forma mais frequente nas regiões Norte, Centro-Oeste, Nordeste, e oeste da região Sul do país. Nesse cenário, torna-se evidente que, se essas regiões não abrirem novos leitos de UTI, o envio de pacientes para outras regiões provavelmente sobrecarregará o sistema”, alerta a pesquisa.
Situação pior ocorre com os respiradores, aparelhos que nem o Ministério da Saúde nem os estados conseguem adquirir atualmente. A Fiocruz observou que as regiões com contingentes populacionais de até 500 mil habitantes chegavam a registrar taxas de três equipamentos para cada 100 mil habitantes. Nas localidades com contingente populacional superior a 500 mil, mais de metade das regiões tinha pelo menos 20,6 respiradores para cada 100 mil habitantes.
Busca por cidades referência pode contribuir com colapso da saúde
O epidemiologista do Icict/Fiocruz Diego Xavier comentou, em registro no próprio site da instituição, que a menor capacidade de serviços de saúde das cidades pequenas acaba direcionando a procura por atendimento médico em centros urbanos de referência, pressionando as redes das grandes cidades. “Esse já é um quadro preocupante em cidades polo, como Manaus [no Amazonas], que atende não só aos moradores do município, mas também a pessoas vindas de um conjunto de pequenas cidades e vilas situadas ao longo de rios”, observou.
Quando essa entrevista foi publicada, no dia 5 de maio, o sistema de saúde de Manaus já havia colapsado. Era dia 10 de abril, quando o Hospital Delphina Aziz já não tinha mais condições de atender pacientes com coronavírus. Nelson Teicc, à época ministro da Saúde, chegou a ir até o local para vistoriar o que estava sendo feito, como a disponibilização de hospitais de campanha.
Até o dia 17 de maio, 20.328 casos e 1.413 mortes já haviam sido confirmados no Amazonas – 20 dos 62 municípios possuíam algum tipo de registro da doença. No Brasil, o estado também tinha a maior incidência de casos da doença – 490,5 a cada 100 mil habitantes – e de mortes – 34,1 mil a cada 100 mil habitantes.
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